5G em Portugal: "a porta dos fundos" que pode permitir à China "colocar em causa o nosso modo de vida" - TVI

5G em Portugal: "a porta dos fundos" que pode permitir à China "colocar em causa o nosso modo de vida"

NOS e Vodafone garantem que os fornecedores escolhidos para implementar o 5G são europeus e norte-americanos. A Altice, dona da operadora MEO, diz o mesmo em relação à tecnologia core, mas não responde quanto ao fornecedor das antenas

Relacionados

Portugal foi apanhado numa guerra científica entre os Estados Unidos e a China, onde a supremacia tecnológica pode empurrar o outro lado a obter uma vantagem vital. Esta semana, as autoridades portuguesas consideraram a implementação da tecnologia 5G de fornecedores chineses como “alto risco” e os especialistas consideram que esta tecnologia pode tornar-se uma porta dos fundos para o roubo de propriedade intelectual, controlo da população e um autêntico paraíso para os hackers. 

“Esta tecnologia abre muitos alçapões que podem permitir a empresas com ligações estatais, como é o caso das empresas chinesas, de acederem e roubarem informação e propriedade intelectual. Isto é ainda mais grave se considerarmos que algumas destas empresas, como a Huawei e a ZTE, têm ligações à indústria militar chinesa”, alerta o diretor do Laboratório de Privacidade e Segurança em Sistemas Informáticos (LAPI2S), Nuno Mateus-Coelho.

A Comissão de Avaliação de Segurança, que funciona no âmbito do Conselho Superior de Segurança do Ciberespaço, parece partilhar esta opinião e publicou uma deliberação que abre o caminho para uma interdição de empresas chinesas, mas também de potenciais companhias russas ou brasileiras, por exemplo. Isto porque a comissão determina que empresas sediadas em países fora da União Europeia, NATO ou OCDE representam um perigo para a segurança. O documento acrescenta também preocupações para países responsáveis por “ações hostis” à segurança nacional ou dos nossos aliados, como atos de “espionagem ou de sabotagem”.

A maior parte das preocupações em relação a esta tecnologia prendem-se precisamente nas possibilidades que abre no campo da espionagem e no roubo de propriedade intelectual. A tecnologia do 5G representa um salto na capacidade de transferir informação. Esta inovação vai permitir conectar ainda mais dispositivos e aproximar-nos da “internet das coisas” (IoT). O efeito que isso pode ter na economia é descrito por muitos como algo verdadeiramente disruptivo, que vai permitir explorar novas aplicações em quase todos os setores da economia. Mas os especialistas alertam que isso traz também novos pontos de ataque. 

Imagine que os seus eletrodomésticos, a sua máquina de lavar a roupa ou loiça, o seu frigorífico e os sistemas de climatização estão todos conectados à mesma rede. Em teoria, um ataque pode conseguir atacar um destes dispositivos e, a partir dele, sequestrar o seu acesso a ele e exigir um resgate para que possa voltar a ter acesso aos seus próprios eletrodomésticos. Foi precisamente esse tipo de vulnerabilidade que dois investigadores encontraram e publicaram numa conferência de cibersegurança, em 2022, em Las Vegas. O estudo demonstrou que muitos destes dispositivos possuem acessos de controlo fracos e métodos de autenticação que podem permitir aos hackers a entrada no sistema.  

"Se o caminho entre a IoT e o mundo é feito através de um equipamento que não é seguro, isso significa que, na melhor das hipóteses, as nossas ligações são 'escutáveis'. No fundo, o que isso significa é que não são seguras. Quanto mais pontos de acesso à rede, maiores as possibilidades de entrar", garante o especialista.

Grande poder, grandes vulnerabilidades

Mas, para as autoridades, a principal preocupação ainda é o elevado risco de espionagem que estes sistemas permitem. Os Estados Unidos têm vindo a criticar aquilo que consideram ser uma "mistura" entre as empresas civis, estatais e militares na China. Outro dos problemas prende-se no facto de que o 5G é muito mais preciso a detetar a localização de um dispositivo e rastrear a sua localização em tempo real, dentro e fora de edifícios. Além disso, o 5G já demonstrou algumas vulnerabilidades que lhe permitem capturar o International Mobile Subscriber Identity (IMSI) de um dispositivo e monitorizar todas as chamadas e as mensagens desse telemóvel, embora não consiga observar o seu conteúdo.

Durante o último ano da administração de Donald Trump o governo norte-americano publicou uma lista de 20 empresas que considera fazerem parte ou, pelo menos, serem parcialmente controladas pelo Exército de Libertação Popular chinês. Entre elas, está a Huawei, que sempre rejeitou qualquer acusação. Além disso, a própria lei chinesa obriga as suas empresas a entregar informação ao Estado caso este a requisite. Quase todas as redes, incluindo as militares, estarão conectadas ao 5G num futuro próximo. Os especialistas temem que esse facto possa vir a aumentar ainda mais o risco de fugas de informação sensível, à semelhança do que aconteceu em setembro de 2022, quando Portugal foi vítima de "um ciberataque prolongado e sem precedentes" que acabou com a exfiltração de diversos documentos classificados da Aliança Atlântica. A escala destes ataques pode ser ainda maior, no futuro, catapultada por esta tecnologia. 

Ainda este ano, o Federal Bureau of Investigation (FBI), responsável pela investigação criminal nos Estados Unidos da América, descobriu um plano chinês para colocar equipamentos da Huawei numa torre telefónica, perto de algumas das principais bases militares no centro do país. A descoberta determinou que o material instalado era capaz de intercetar comunicações, incluindo do departamento que supervisiona o arsenal nuclear americano. 

“Estamos em guerra. Quando existe guerra, existe espionagem. Estes equipamentos têm a possibilidade de criar alçapões de toda a espécie que podem servir para espiar os cidadãos europeus, obter dados sensíveis que comprometam a segurança das pessoas e de empresas”, afirma Elsa Veloso, advogada especialista em proteção de dados.

Com grande inovação vem um grande poder e os especialistas alertam que esta rede vai criar muitas vulnerabilidades e pontos de entrada para potenciais atacantes. É isso que os especialistas temem com a proliferação da “internet das coisas” (IoT), que vai levar à ligação de um número cada vez maior de dispositivos, aumentando o número de oportunidades de ataque por parte de atores mal-intencionados. Ligações pouco seguras podem permitir aos atacantes ganhar acesso à rede e lançar ataques contra as vítimas.

Se pensarmos na dimensão e importância da rede 4G, que está presente em quase todas as áreas da nossa economia, é fácil antever que a sua evolução, o 5G, pode ir ainda mais além. A própria Comissão Europeia acredita que esta tecnologia vai ser a base económica do bloco e admite que, no futuro, será “a espinha dorsal das nossas economias” com particular impacto em setores críticos como “a energia, os transportes, a banca e a saúde, bem como em sistemas de controlo industriais”. No entanto, esta tecnologia possui uma estrutura mais descentralizada, com um número de antenas mais elevado e maior dependência de software que faz uma gestão computacional inteligente.

“Não há qualquer controlo do software fonte destes equipamentos. Não se sabe ao certo se estes não podem começar a permitir acesso de fora aos equipamentos a que estão ligados. Nós até podemos não detetar nenhuma atividade maliciosa na rede, mas isso não quer dizer que não exista um alçapão que está à espera de ser aberto”, avisa o especialista em cibersegurança, Nuno Mateus-Coelho.

Em Portugal, os principais operadores parecem ter-se antecipado a potenciais restrições aos fornecedores chineses por parte das autoridades nacionais. Em declarações à CNN Portugal, fonte oficial da Vodafone garantiu que a empresa que escolheu para a implementação da rede 5G em Portugal foi a sueca Ericsson e a americana Mavenir como parceiro estratégico para o núcleo 5G, o coração da rede, que gere a informação da rede e a sua segurança. Por sua vez, a NOS, a operadora com a maior taxa de implementação em solo nacional, escolheu como parceiros as europeias Ericsson e Nokia.

Contactada pela CNN Portugal, a Altice, dona da MEO, disse que utilizada a americana Cisco, que em 2003 acusou formalmente a Huawei de roubo de propriedade intelectual, para a implementação da tecnologia core do 5G e a Nokia para a tecnologia core Stand Alone, mas não respondeu quanto à utilização de equipamentos Huawei nas suas antenas. 

De acordo com dados da Anacom, a NOS é a empresa portuguesa com mais estações de 5G instaladas, seguido da Vodafone e da MEO, sendo que esta última tem mais estações num maior número de município. No final do primeiro trimestre de 2023, o número de estações de base instaladas no território nacional com tecnologia 5G ascendia a 6.992 estações. Segundo o regulador, existe uma estação de base 5G a cada 13 quilómetros quadrados.

Esmagado entre gigantes

Outro dos problemas levantados pela possível escolha de fornecedores chineses como a Huawei e a ZTE prende-se com os riscos de tensões geopolíticas. Neste momento, Washington e Pequim têm aumentado a agressividade retórica e muitos especialistas temem que os desentendimentos entre os dois países em relação a Taiwan possam vir a causar graves disrupções no fornecimento destes equipamentos. Em caso de confronto entre potências, a dependência de fornecedores chineses podia colocar em causa a segurança do país e a Comissão de Avaliação de Segurança vai até mais longe e escreve na sua deliberação que deve-se evitar até “cadeias de produção e fornecimento” que estejam ligados aos países que não pertencem à UE, NATO ou OCDE. 

Diana Soller, professora e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade NOVA de Lisboa, considera que, a avançar, a restrição de tecnologias chinesas para o desenvolvimento do 5G é uma boa decisão por parte das autoridades portuguesas que “souberam fazer uma boa leitura” do cenário geopolítico e dos seus desafios. Portugal está a meio de uma guerra tecnológica e os riscos que esta tecnologia pode trazer justificam banir.

“Portugal foi apanhado numa guerra tecnológica entre os EUA e a China. No entanto, a China já provou que está a utilizar estas tecnologias de nova geração para controlar a sua população numa escala tão grande que já lhe valeu o nome de ‘autoritarismo digital’. Portugal fez uma boa decisão de política externa para assegurar a sua segurança”, afirma a especialista em Relações Internacionais.

Mas a decisão não terá sido fácil. A tecnologia chinesa tem uma grande vantagem em relação aos seus concorrentes diretos que é difícil de ignorar por parte das operadoras: o preço. Devido à capacidade de produzir um número consideravelmente superior, a China consegue colocar vários dos seus produtos no mercado com valores mais competitivos. Para os especialistas, as questões de segurança levantadas pela tecnologia justificam o impacto económico que essa decisão poderá ter.

"É preciso garantir que toda a infraestrutura de rede crítica da NATO e dos parceiros é totalmente fechada a tecnologia chinesa", considera Nuno Mateus-Coelho.

Empresas como a Hikvision, Dahua, ZTE e a Huawei são acusadas pelos Estados Unidos de fornecer tecnologia de vigilância com recurso a inteligência artificial a países como a Venezuela, Equador ou o Zimbábue, que utilizam estes mecanismos para controlar e censurar a sua população. E estas tecnologias ainda estão na sua infância. Para Diana Soller, o uso da inteligência artificial pode ter consequências muito profundas em diversos domínios da nossa sociedade, que vão desde a segurança à garantia de manutenção dos direitos humanos.

“Independente do preço económico que a medida possa ter, estas decisões têm de ser ponderadas porque põem em risco a nossa forma de vida, no Ocidente. Da segurança nacional à privacidade e liberdade do cidadão, tudo isso pode estar em risco. Por isso, parece-me que as autoridades leram bem a situação”, frisa.

No fundo, Portugal vê-se no meio de uma guerra tecnológica entre os Estados Unidos e a China, fruto daquilo que os especialistas já apelidaram de “uma nova Guerra Fria”, acentuada com a aproximação de Pequim a Moscovo, mesmo depois da invasão russa da Ucrânia. A tendência deverá ser para se acentuar nos próximos anos.

“A tendência é para acentuar as restrições. Há uma nova Guerra Fria entre os EUA e a China. Estas decisões são difíceis de tomar, mas esta vai ser a tendência. A característica tecnológica desta Guerra Fria está relacionada com temas muito sensíveis e as suas consequências ainda são muito difíceis de prever, mas que podem colocar em causa o nosso modo de vida no ocidente”, conclui a especialista.

Continue a ler esta notícia

Relacionados