Mais de metade dos condenados em Portugal por abusos sexuais de crianças fica em liberdade com pena suspensa - TVI

Mais de metade dos condenados em Portugal por abusos sexuais de crianças fica em liberdade com pena suspensa

Criança

Especialistas alertam que a taxa de reincidência é altíssima. E mais: dizem que a vítima "precisa de sentir que o agressor foi sancionado"

A maioria dos arguidos em processos relacionados com abusos sexuais de menores - 65% - é condenada a penas suspensas - por isso, na prática ficam em liberdade. Este é um tipo de crime com uma taxa de reincidência muito elevada - os peritos falam em 75% -  e a falta de psicólogos para os acompanhar, seja dentro ou fora das prisões, “aumenta o risco” de repetição do mesmo.

A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, Renata Benavente, refere à CNN Portugal que os "técnicos que trabalham na área apontam para um valor a rondar os 75%" na reincidência destes crimes.  Por norma, a uma grande parte dos arguidos condenados o tribunal determina também a integração em programas de recuperação e acompanhamento. Seja para quem cumpre pena de prisão ou para quem fica com pena suspensa. Mas este apoio, essencial para minimizar risco de repetição, não chega a todos.

“Esse é um problema sério do nosso sistema de Justiça, porque de facto existe uma carência muito significativa de psicólogos nos contextos prisionais que se reflete na incapacidade de pôr em prática estes programas que existem, estão validados e trazem resultados positivos precisamente ao nível reincidência da prática criminal”, explica Renata Benavente.

Mas não é só nas prisões que falta acompanhamento: “Há de facto uma escassez grande de psicólogos no SNS, quer nos centros de saúde, quer ao nível das unidades hospitalares. Quando não há essa intervenção, essas pessoas tendem a reiterar na prática criminal. É muito importante haver esta intervenção com a aplicação de programas específicos que visam exatamente minimizar este risco. Se isto não é posto em prática, a probabilidade de essas pessoas voltarem a praticar crimes similares é muito aumentada. Era fundamental que isto fosse alterado.”

A vítima "precisa de sentir que o agressor foi sancionado"

Uma semana depois da entrega e divulgação do Relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais de crianças dentro da igreja católica, e numa fase em se questiona o que pode acontecer aos suspeitos destes abusos sexuais que venham a ser acusados pelo Ministério Público, as estatísticas do Ministério da Justiça revelam-nos a realidade portuguesa. 

Olhando para as decisões finais condenatórias, 35% dos arguidos ficam em “prisão efetiva”; 50% ficam com “prisão suspensa com regime de prova”; 4% ficam com “prisão suspensa com sujeição a deveres”; outros 4% ficam com “prisão suspensa simples” e, por fim, aparecem 7% onde apenas se referem “outras” opções condenatórias.

As penas a que os abusadores sexuais são condenados afeta também as vítimas. “Esta questão da condenação da pessoa que agrediu, que a abusou, é muito importante até para o próprio processo de recuperação - sentir que o agressor foi sancionado, punido de alguma forma pela Justiça. Portanto, quando isso não acontece, é muito comum que a vítima sinta alguma injustiça”, explica Renata Benavente.

Mas não só. “A prisão é a pena mais grave, a privação da liberdade, e, portanto, as pessoas têm muito essa expectativa. Também há aqui uma ideia de que a pessoa, estando presa, não vai praticar este crime novamente. De alguma forma a sociedade está protegida daquela pessoa. E isso é uma coisa que muitas vezes preocupa as vítimas. ‘Não podem voltar a fazer aquilo a outras pessoas, a outras crianças’, muitas crianças dizem isto”, acrescenta a especialista.

Estabelecer um novo protocolo para as vítimas

As etapas que as vítimas de abusos sexuais precisam de ultrapassar são muitas. A primeira é o próprio abuso sofrido e depois ser capaz de contar o que aconteceu. E nada fica mais fácil na investigação - ou depois, em tribunal. 

“Estes processos são muito difíceis do ponto de vista emocional, partilhar estas experiências íntimas. Muitas vezes é essencial que a vítima detalhe, com muito rigor, tudo o que se passou e a prova testemunhal é muitas vezes a única que permite a condenação do agressor”. Nem sempre “há vestígios físicos ou lesões”.

E se os agressores precisam de programas de acompanhamento para evitar que voltem a repetir o crime, “as vítimas precisam de intervenção o mais rapidamente possível”, alerta a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos. “Era fundamental que se desenvolvesse mecanismos de atuação imediata. Podia estabelecer-se uma espécie de protocolo, estar protocolado que a criança que teve aquela situação de abuso deve ser de imediato referenciada para uma consulta e ter uma resposta o quanto antes.”

O ideal seria uma intervenção logo após o abuso, a experiência traumática, mas nem sempre é possível porque muitas guardam segredo durante anos. “É muito importante que assim que se toma conhecimento da situação haja uma intervenção para que a pessoa - criança ou adolescente - possa trabalhar do ponto de vista emocional e do impacto destas experiências que nós denominamos 'potencialmente traumáticas'”. Sem isso “podem, eventualmente desenvolver quadros de stress pós-traumático, uma série de alterações sérias e que nesta fase de desenvolvimento são cruciais”.

“O que as vítimas esperam é que acreditem na sua voz e mais nada”

Miguel Matias foi advogados das vítimas no processo da Casa Pia. Um caso que, para o bem e para o mal, ajudou a levantar o véu sobre este tema e este crime em Portugal. Se hoje as vítimas estão mais protegidas, muito se deve a este processo.

“Todo o processo judicial é muito difícil porque começa logo com a questão do segredo que vítima não consegue muitas vezes superar e por isso é que se discute hoje em dia a questão da prescrição e alargar esse tempo”, afirma o advogado à CNN Portugal.

“No julgamento em si, na altura em que foi feito o julgamento da Casa Pia, era muito mais difícil porque as declarações para memória futura não eram obrigatórias. Hoje são neste tipo de crimes”, acrescenta.

E o que significou isso, na altura, para as vítimas? “Aconteceu que as vítimas do processo tiveram todas que ser ouvidas novamente em julgamento. Algumas delas sensivelmente durante 30 dias. Isto significou o quê? Um reviver do horror do abuso. Significou uma revitimização que, naturalmente, produz grandes efeitos.”

Décadas depois, Miguel Matias ainda se cruza com processos desta natureza e há algo comum a todas as vítimas: “O que as vítimas esperam é que acreditem na sua voz e mais nada”. Quando os arguidos foram condenados a penas de prisão efetiva no processo da Casa Pia, recorda Miguel Matias, as vítimas “ficaram contentes, como é obvio, precisamente por os adultos terem acreditado neles”. 

Mas nem isso evitou o que se seguiu: “Teve sequelas, continua a ter. Alguns sofrem de elevado stress pós-traumático, resultado dos abusos e da vida que tiveram. Não conseguem estabilizar, não conseguem ter relações permanentes, não conseguem manter trabalhos, Há toxicodependência, há alcoolismo”.

Dentro das salas de tribunal estes processos são difíceis “porque é uma prova naturalmente baseada nos depoimentos da vítima e contrariada pelos arguidos. Normalmente, neste tipo de casos não há assunção do facto, nunca. Daí a necessidade de os tribunais se socorreram de perícias médico-legais e de perícias de personalidade que possam atestar a credibilidade dos relatos feitos pelas vítimas”.

Dependendo dos casos, do tipo de abuso sexual - que pode ser (ou não) mais gravoso -, da pena aplicada, da avaliação feita pelo tribunal, “pode acontecer as vítimas não se sentirem devidamente reparadas”. E a sua experiência também o faz ter certeza de que “os que estão presos e cumprem penas de prisão têm os apoios psicológicos que todos os presos têm e isso é claramente insuficiente”. E lembra que “neste tipo de crime há muita possibilidade de reincidência porque é um crime de impulso. Há casos de parafilias, distúrbios de personalidade, que acabam por impulsionar as pessoas para esse tipo de comportamento”.

Quanto tempo dura em média um julgamento?

Olhando para as estatísticas oficiais do Ministério da Justiça, um julgamento pelo crime de abusos sexuais de crianças dura em média oito meses. Mas deixamos mais alguns dados estatísticos relacionados com este crime de abuso sexual de crianças.

Olhando para o número de arguidos e condenações, é fácil perceber que a maioria acaba por ver o crime provado em tribunal.

  Arguidos Condenados
2019 363 285
2020 313 254
2021 397 293

 

Em relação ao género, há uma enorme diferença entre os condenados do sexo masculino e do sexo feminino.

  Masculino Feminino
2019 275 10
2020 242 11
2021 280 12

 

Quanto às idades dos agressores condenados, a percentagem maior está na faixa etária dos 50 aos 64 anos.

Idades %
Entre 16 e 17 7%
Entre 18 e 20 7%
Entre 21 e 29 11%
Entre 30 e 39 20%
Entre 40 e 49 20%
Entre 50 e 64 25%
Igual ou maior que 65 10%


Em relação aos cinco distritos com mais crimes registados, Lisboa lidera.

Distritos  
Lisboa 515
Porto 344
Não Especificado 236
Setúbal 223
Ilha de São Miguel 163


Quando o tribunal determina o acompanhamento psicológico dos arguidos, no caso das penas suspensas estes são acompanhados por técnicos que fiscalizam o cumprimento do que foi decido. Nesta situação, os arguidos devem procurar alguém que os siga do ponto de vista clínico. Podem recorrer ao centro de saúde da sua área ou a unidades hospitalares. A falta de resposta do SNS pode obrigar os arguidos a recorrer ao privado. Mas têm de fazer prova de que estão a ser seguidos.

Vários psicólogos ouvidos pela CNN Portugal consideram que esta fórmula não é a mais adequada e justificam, a título de exemplo, que apresentar faturas de consultas não chega para provar que estão a ser acompanhados pelo motivo que foram levados à justiça e depois condenados.

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