"Para o alcoólico tudo pode levar ao copo", dos bons aos maus momentos, da discussão à celebração. O relato de um homem e uma mulher que assumem a doença - TVI

"Para o alcoólico tudo pode levar ao copo", dos bons aos maus momentos, da discussão à celebração. O relato de um homem e uma mulher que assumem a doença

Alcoólicos Anónimos (Fotografia de Miguel Mateus/CNN)

Miguel, 42 anos, e Sara, de 36 contam que viveram anos escudados em mentiras, máscaras e manipulações e quando perceberam estavam num "beco sem saída". Assumem que têm problema de alcoolismo para a vida e explicam como os AA os ajudam a viver um dia de cada vez

Miguel e Sara são alcoólicos. Ele tem 42 anos e há quinze que frequenta os Alcoólicos Anónimos (AA); ela tem 36 e pediu ajuda há três. Hoje, para além de participarem nas reuniões dos AA  têm um papel ativo na organização da associação.  Ambos estão em total sobriedade e aceitaram contar a sua história à CNN Portugal.

Os dois nunca recaíram, mas garantem que sem as reuniões periódicas nos Alcoólicos Anónimos a história teria sido diferente. Sara é a primeira a explicar como entrou, o que ganhou e por que se mantém no "processo". Recorda o tempo em que "já tinha perdido tudo e não tinha outra opção" e avisa que a doença do alcoolismo é progressiva, adiantando que com o tempo se acaba por beber cada vez mais e mais cedo.

E assume que aos poucos, "foi perdendo tudo". Começou pelo trabalho, seguiu-se a estabilidade financeira e pelo caminho foi-se ainda afastando da família e dos amigos. "Deparei-me num beco sem saída, sem opção, mas longe de mim saber que era alcoólica", conta, esclarecendo que a fase da negação durou muito tempo, provavelmente "por desconhecimento". Só quando deu entrada num centro de tratamento percebeu que "o que tinha era uma doença". Foi este o passo que lhe permitiu perceber "que havia solução". No seu caso foram os AA, onde garante que nunca se sentiu colocada à parte por ser mulher.

"Percebia que as coisas não estavam bem, que o consumo era excessivo, que tinha perdido o controlo algures, mas era impossível precisar onde ou quando. O desconhecimento era enorme. Até esse momento, estive em negação, muito provavelmente por desconhecimento, mas estava”, conta Sara, continuando: “Quando me explicaram a doença do alcoolismo, aí eu percebi que tinha. Percebi que era alcoólica, foi só aí que a ideia foi aceite por mim, talvez por ter sido dito por um técnico de saúde. Se calhar, se tivesse sido dito pela minha família, provavelmente não iria aceitar. Felizmente, foi também nesse centro de tratamento que tive o primeiro contacto com os Alcoólicos Anónimos. Esse para mim foi o primeiro passo para entrar em recuperação".

"Uma doença de emoções e sentimentos"

Miguel não tem "dúvidas que o alcoolismo foi um problema", que o impediu de, até aos 27 anos, construir algo na vida e reconhece "que precisava de ajuda". Lembra o momento em que percebeu "que queria outra vida". Mas confessa que, 15 anos de sobriedade depois, ainda "desconfia de si próprio quando as coisas começam a resultar".

Esta é "uma doença de emoções e sentimentos" - é assim que Miguel classifica o alcoolismo.  Lembrando que "para o alcoólico tudo pode levar ao copo" dos bons aos maus momentos, da discussão à celebração, basta apenas um percalço na rotina. 

Miguel e Sara alertam que "recair faz parte da doença", mas admitem que o comprometimento com a recuperação e com os "companheiros" pode fazer a diferença. (Fotografia de Miguel Mateus/CNN)

"O primeiro passo"

Miguel sinaliza como "primeiro passo" o momento em que percebeu que o alcoolismo "não era um vício, mas sim uma doença". Uma perspetiva que só se alterou já nas reuniões dos AA, onde realizou que "não tinha culpa de ter esta doença, mas era responsável por ela e responsável por se tratar". Aqueles a quem hoje chama "companheiros" foram fulcrais. "Davam-me um abraço, percebiam, compreendiam". O AA lembra que teve de ultrapassar muitos dias que pareciam derrotas. "Pensava 'volto amanhã, hoje não passou, amanhã passa'. E foi assim. Um dia de cada vez. Sabia que podia não se resolver hoje, mas amanhã tentava-se outra vez e no outro dia tentava-se outra vez".

Houve, contudo, momentos decisivos. "Tinha um problema, mas não consiga explicá-lo. Nas reuniões, houve identificação. Também sou assim, também fiz assim, também fiz assado, também controlei e não consegui controlar", conta, explicando que ao mesmo tempo sentia "falta de amor". "Todas estas características de sentimentos fazem a tal doença chamar-se alcoolismo. Não é o copo, é a maneira diferente com que eu sinto as coisas", refere.

Todavia, Sara alerta que enquanto não houver vontade de "mudar alguma coisa" por parte do alcoólico "é sempre muito complicado" dar início ao tratamento. No seu caso, não esconde que "pôs sempre os consumos em primeiro lugar". Uma noite só era "fixe se houvesse consumos", caso contrário, confessa, "nem ia". Esta linha de pensamento levou-a a afastar-se de tudo e de todos. Ou seja, daqueles que não tinham "padrões de consumo semelhantes" ao seu.

"A única forma de controlar esta minha doença"

Questionada sobre se atulamente poderia beber com moderação, Sara esclarece que "não tem esse controlo sobre o álcool e que sempre foi assim". "A única forma de me manter em sobriedade é não tocar no primeiro copo", garante. Para ela, a estratégia passa por evitar o primeiro golo.

A luta contra a recaída nunca acaba. Miguel refere que "para o alcoólico, tudo é difícil, quer para ele. quer para a família": "É um dia de cada vez", assegura, explicando que o seu pensamento passa por saber que o que fizer num dia vai ter reflexo no dia seguinte. Tal como Sara, evidencia que a experiência do passado já lhe provou "que assim que começa a beber não sabe como parar, porque não consegue controlar o álcool".

"O meu seguro é de um dia. Portanto, se fizer as coisas certas hoje, se fizer a minha reunião, se partilhar, se tiver aqui a fazer serviço e dar aos outros, a grande probabilidade é que amanhã não volte a beber e assim sucessivamente. Agora, não são as circunstâncias, não são os momentos, é muito o que eu consigo mudar e na minha cabeça", explica Miguel.

"Não consigo controlar o álcool é sempre muito, é sempre de mais e não há só um copo. Desde que haja uma pinga de álcool a doença reacende", o conselho de Sara e Miguel. (Fotografia de Miguel Mateus/CNN)

"A mentira foi constante, o álcool traz isso"

Enquanto o álcool imperava na escolha do dia a dia, "tudo era escondido e a manipulação acabava por surtir efeito". As palavras são de Sara, mas em pouco ou nada divergem do que relata Miguel: "Houve alguns pedidos de desculpa, a mentira foi constante, o álcool traz isso".

"Dá para esconder; dá para esconder muito tempo. No meu caso, durante muito tempo os meus pais não se aperceberam. Escondia o alcoolismo. Eram várias mentiras: dizia que tinha uma namorada e que ia dormir a casa dela quando essa namorada nem existia ou que ia dormir a casa de um amigo e dormia no carro. Isto aconteceu e aconteceu muitas vezes. O que é que fez? Fez com que as pessoas em casa não se apercebessem tão cedo do que estava a acontecer", diz Miguel.

A situação só mudou quando aceitou o problema: "Depois de entrar em recuperação e ao ficar abstinente, vieram os reflexos de consciência, de recordações e de memórias. Através das partilhas dos outros identifiquei-me e percebi que afinal também era assim. Aí, comecei a sentir, vergonha e a vontade de repor algumas verdades". Esse foi um passo importante. "Quando me dispus  a dizer aos outros o que é que realmente eu era, o que estava a acontecer comigo e que tinha esta doença começei a comprometer-me comigo próprio de que era esta a vida que eu queria".

A família também foi "imprescindível" em todo o processo para ambos. No entanto, salientam que há vários casos de sucesso com contextos familiares completamente diferentes nos AA. Miguel acredita, porém, que para a família é muito difícil, porque estão a ver alguém que gostam a sofrer".

"Há uma porta aberta nos AA"

É comum existir um certo secretismo à volta dos Alcoólicos Anónimos. mas tem apenas o propósito de proteger os seus membros. Miguel explica que o anonimato escuda todos aqueles que chegam pela primeira vez "dos familiares ou da entidade patronal e salvaguarda a segurança para admitir a doença". Quanto à ideia de que os AA e a Igreja têm uma ligação, o AA alerta que é "importante" que a sociedade interiorize que os "AA não estão ligado a nada nem à religião, nem ao Governo, nem a uma seita, nem a qualquer entidade pública", realçando que este organismo "paga os seus impostos, recebe o dinheiro dos seus próprios membros, não recebendo contribuições de fora", Ou seja, diz : "Vive com dificuldades, mas com o seu próprio dinheiro".

"A verdade é que não nos pedem dinheiro nem pedem nada", refere Miguel, garantindo: "Qualquer pessoa que sinta que precisa de ajuda e que quer uma solução nós estamos de porta aberta".

Para contatar os AA dispõe do número 217 162 969, podendo também aceder ao site www.aaportugal.org

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