Alex Murdaugh já não tinha muito a seu favor quando começou a falar em tribunal. E com menos ficou quando admitiu o que já várias testemunhas tinham relatado: era a sua voz que se ouvia num vídeo gravado por uma das vítimas e publicado no Snapchat pouco antes do duplo homicídio de que o ex-advogado é suspeito. “Anda cá, Bubba!” é tudo o que se ouve no pequeno clipe. Alex chamava um cão, enquanto Paul Murdaugh, o filho, filmava o canil da propriedade da família. Na cronologia da acusação, isto aconteceu minutos antes dos crimes.
O problema é que Alex tinha sempre garantido às autoridades que só chegou ao local - a casa da sua família em Islandton, naquela noite de 7 de junho de 2021 - depois destes acontecerem, tendo, na sua versão, encontrado a mulher e o filho já baleados. A chamada para o 911 (número de emergência nos EUA) foi, aliás, feita pelo próprio. Mas o que a acusação acredita é que a voz que pediu socorro pela família (a mesma voz que afinal estava com as vítimas pouco antes de tudo acontecer) tinha acabado de matar e nem sequer ia ficar por aqui.
Nas alegações finais do julgamento, esta quarta-feira, o procurador Creighton Waters chamou-lhe o momento que “mudou tudo”. Ou seja, quando os investigadores ouviram a voz de Alex no tal vídeo filmado por Paul Murdaugh, o filho assassinado ao lado da mãe, Maggie, perceberam que o pai tinha tido, pelo menos, a oportunidade de os matar.
“Ficaram expostas as mentiras do arguido sobre a coisa mais importante que ele podia ter dito às autoridades: ‘Quando é que foi a última vez que vi a minha mulher e o meu filho vivos?’ Porque raio é que um pai e marido inocente e razoável iria mentir sobre isto, e logo tão cedo? Ele não sabia que o vídeo existia”, argumentou o procurador, cuja teoria é que Alex Murdaugh matou a mulher e o filho por causa dos problemas financeiros e relacionados com a dependência de droga que tinha. Oportunidade e motivo: as duas bases da acusação.
A resposta de Alex Murdaugh já tinha sido dada, dias antes, também no tribunal de Walterboro, na Carolina do Sul, onde está a decorrer o julgamento: “Eu menti. Não estava a pensar com clareza. Acho que não fui capaz de raciocinar e menti, e lamento por isso”. A culpa, alega, foi dos analgésicos em que estava viciado na altura, que o deixaram tão "paranoico" que não conseguiu dizer a verdade. “Eu nunca faria intencionalmente algo para os magoar. Nunca”. Mas desde aquele “sim” à pergunta “É o senhor naquele vídeo filmado no canil da propriedade, às 20h44 do dia 7 de junho de 2021, a noite em que Maggie e Paul foram assassinados?” que poucos terão acreditado nele.
O que se sabe sobre a noite do duplo homicídio
Poucas famílias têm o luxo de deter uma propriedade de caça, mas era o caso dos Murdaugh (e já lá vamos no porquê). Em Islandton, na Carolina do Sul, os corpos de Margaret, de 52 anos, e Paul, de 22, foram encontrados, junto aos cães, baleados por duas armas diferentes.
Na versão agora assumida por Alex, ele teria ido ao canil à hora do vídeo e estado com a mulher e o filho brevemente, tendo regressado a casa e adormecido. Após supostamente ter acordado, o ex-advogado foi então a casa da mãe e duas testemunhas contaram o que sabiam sobre este momento em tribunal: uma disse que tinha pedido a Alex para ir ver a mãe porque estava “agitada”, outra admitiu que a hora a que ele apareceu não foi nada normal. Em tribunal, o ex-advogado relatou então o regresso à sua propriedade e o estado em que teria encontrado os corpos.
Segundo o procurador Creighton Waters veio a referir em tribunal, as provas sustentam que ambas as armas utilizadas no duplo homicídio pertenciam à família. Pelo menos é no que acreditam os peritos que analisaram as munições no local do crime. Problema: as armas nunca apareceram.
Quem matou Maggie e Paul teve tempo de as fazer desaparecer. Alex, o único suspeito, está presente no tal vídeo às 20h44 e volta a aparecer na fita dos crimes às 22h07, quando liga para o 911. Confrontado agora em tribunal com os dados de GPS do seu automóvel, que revelam uma paragem suspeita entre o trajeto da sua propriedade à casa da mãe, Alex Murdaugh negou ter sido o breve momento em que se teria livrado das armas.
Já a chamada para o número de emergência foi passada em tribunal, mas tinha sido também divulgada na comunicação social e num documentário da Netflix. Nela, Murdaugh repete a morada às autoridades. Está nervoso, diz que a mulher e o filho foram baleados e que não estão a respirar. E diz logo que acabou de chegar ali.
Quando a polícia chegou ao local, manteve e estendeu a mentira: só tinha ido a Islandton pouco antes da chamada para o número de emergência, pois tinha ido visitar a mãe, e encontrou os corpos da família. E deu logo aos investigadores um motivo para o crime: alguém ainda estava chateado com o que tinha acontecido dois anos antes.
A jovem que morreu num acidente de barco
A tal série da Netflix – “As Mortes dos Murdaugh: Crimes Numa Família Sulista” – começa por contar esta história. A 24 de fevereiro de 2019, o jovem Paul foi sair à noite com os amigos. Mas, como em quase tudo nos Murdaugh, foi sair à grande. Levou o barco da família, comprou bebidas e transportou os amigos até uma festa. Eram três casais supostamente a divertir-se, mas os habituais excessos de Paul desta vez tiveram consequências.
No regresso, visivelmente embriagado nas imagens de videovigilância que o documentário mostra, os amigos contam como Paul insistiu em conduzir o barco e fazer manobras perigosas. O barco acabou por colidir contra uma ponte, alguns jovens caíram à água e Mallory Beach, de 19 anos, morreu assim.
Os sobreviventes e as suas famílias relatam que, desde o minuto em que chegaram ao local, o pai e o avô de Paul tentaram controlar tudo: quem dizia o quê, que versão contar às autoridades e o que fazer a seguir. Era assim que os Murdaugh, uma poderosa família de advogados da Carolina do Sul, atuava. Habituados a controlar a polícia, e sobretudo os vários intervenientes da justiça, conseguiram criar alguns bloqueios, mas não conseguiram evitar que Paul fosse acusado. O caso nunca chegou a julgamento. Estava uma audiência marcada para dia 10 de junho de 2021, mas, três dias antes, Alex terá assassinado o filho.
Os outros crimes ligados à família
Mas Mallory Beach não terá sido a única vítima de alguma forma ligada à família Murdaugh, com várias gerações de advogados e grande proximidade com o poder local. Já em 2015, um jovem foi encontrado morto numa estrada, em Hampton County, e as suspeitas recaíram sobre o filho mais velho de Alex, conhecido como Buster. A vítima, Stephen Smith, era seu colega de escola e assumidamente homossexual. Como em todas as localidades pequenas, os rumores foram crescendo: Buster teria uma relação com Stephen e, numa família homofóbica e conservadora, isto não se podia saber.
O adolescente pode ter sido atropelado ou espancado, mas na altura a investigação não foi grande coisa. Porquê? Dizem os testemunhos ouvidos no documentário que já seria a família Murdaugh a controlar tudo. Por isto mesmo, na sequência das mortes de Maggie e Paul, em 2021, este caso foi reaberto (e até ao momento não tem acusações).
Cerca de três anos depois da misteriosa morte de Stephen Smith, Gloria Satterfield também morreu em circunstâncias no mínimo curiosas. Tratava-se de uma empregada que trabalhava para os Murdaugh há muitos anos, foi a ama de Paul inclusivamente, e caiu nas escadas da casa de Alex e Maggie, tendo vindo a morrer depois no hospital. O casal contou às autoridades que Gloria escorregou nos cães e caiu de forma aparatosa.
Não houve autópsia e o certificado de óbito até lhe chamou uma “morte natural”. Mas Alex tinha feito recentemente um seguro que viria a garantir à família de Gloria uma indemnização milionária. Sabe-se agora que o ex-advogado montou um esquema para ficar ele com o dinheiro. Este caso de 2018 também já foi reaberto e o corpo da empregada da família será exumado. Os filhos de Gloria vão receber parte do dinheiro.
O que trouxe Alex até aqui
Com Maggie e Paul mortos, e todas as circunstâncias suspeitas à volta, nem a força dos Murdaugh foi capaz de travar a investigação a Alex. Com o cerco a apertar, quase três meses após o duplo homicídio, o advogado teve de demitir-se da firma Peters Murdaugh Parker Eltzroth & Detrick. Mas depressa engendrou um plano.
No dia seguinte à demissão, a 4 de setembro de 2021, foi encontrado ferido na já aqui referida estrada de Hampton County, não muito longe de onde Stephen Smith morreu em 2015. Tinha sido baleado “superficialmente”. Descobriu-se depois que tinha pago a Curtis Edward Smith, um dos seus fornecedores de oxicodona, para o matar. O objetivo era que Buster, o filho que lhe restava, recebesse os cerca de 10 milhões de dólares do seguro de vida.
Como não morreu, o plano mudou. Assumiu o vício em opioides e entrou para a reabilitação. Só que, entretanto, o escritório de advogados onde tinha trabalhado revelou que a demissão se devia à descoberta de que Alex Murdaugh teria desviado milhões de dólares. E que teria sido na manhã do duplo homicídio que foi confrontado pela primeira vez com essa suspeita.
Poucos dias depois, Alex foi detido e o que se seguiu foi uma série de acusações até à final, de duplo homicídio. O ex-advogado está ainda acusado de 99 crimes financeiros devido aos esquemas que terá montado ao longo dos anos para se apropriar de milhões de dólares dos clientes, do escritório e até do Estado.
A “tempestade" que se “aproximava”
A teoria da acusação é, então, que Alex matou a mulher e o filho porque “a tempestade se aproximava”. Segundo o procurador Creighton Waters já tinha afirmado no início do julgamento, o ex-advogado não terá aguentado a humilhação dos seus crimes serem expostos.
As nuvens começaram a formar-se desde o acidente de barco em que o filho Paul esteve envolvido, alega a acusação, quando Alex sentiu “a ameaça da exposição” de “quem ele realmente era”. O medo de perder a licença para exercer advocacia, a carreira e o legado da família foram crescendo. Os vícios não ajudaram. E os esquemas financeiros só avolumaram o problema.
“A pressão sobre este homem era insuportável e estava a chegar a um crescendo no dia em que ele assassinou a mulher e o filho”, afirmou Creighton Waters.
No entanto, até ao momento, e depois de terem sido ouvidas dezenas de testemunhas, Alex Murdaugh continua a declarar-se inocente do duplo homicídio que pode condená-lo a prisão perpétua. O objetivo do acusado parece ser mesmo só evitar esta condenação, uma vez que já admitiu os crimes financeiros: “Tirei dinheiro que não era meu e não devia tê-lo feito. Detesto esse facto. Tenho vergonha disso. Tenho vergonha pelo meu filho, pela minha família, e não contesto que fiz isso”.
A melhor "arma" da defesa
A estratégia da defesa também tem passado por sublinhar em tribunal a falta de provas em relação ao duplo homicídio. É que, tirando o vídeo que o coloca no local dos crimes naquela noite, têm faltado outros trunfos concretos à acusação.
A questão das duas armas diferentes é mesmo o principal foco da defesa de Alex, que chamou um especialista para garantir que há indícios que apontam para dois atiradores. A defesa sublinhou ainda o que considera ter sido um mau trabalho dos investigadores, referindo em tribunal que estes deixaram o local do crime com restos mortais de Paul, para a família limpar.
Esta quinta-feira será a vez dos advogados de defesa de Alex Murdaugh fazerem as suas alegações finais, depois da acusação ter terminado. As últimas palavras do procurador para tentar convencer o júri da culpa do ex-advogado e pai das vítimas foram estas: “Só há uma pessoa que tinha o motivo, os meios e a oportunidade para cometer estes crimes, e também cuja conduta depois destes crimes o traiu. Este arguido estava a viver uma mentira, tinha uma tempestade a aproximar-se e que ia ter consequências para a Maggie e para o Paul."