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"Que percebam que nunca podem parar de lutar por aquilo que querem": histórias de quem saiu à rua no 1.º de Maio para dizer que "a luta continua"

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Foi dia de celebrar os 50 anos do primeiro 1 de Maio, mas, acima de tudo, foi dia de lutar. Da precariedade aos salários, cada um levou as suas reivindicações para a avenida Almirante Reis

Mamadou deixou a mulher no Senegal e veio para Portugal há quatro anos, à procura de uma vida melhor. "Mas é muito complicado", queixa-se. "É tudo caro, as casas são muito caras, a comida é cara." Mamadou fala português, trabalha nas obras e tem um contrato. Mas, apesar disso, não consegue trazer a mulher para Portugal. Vive num quarto, pelo qual paga 350 euros por mês, mas o companheiro que está ao seu lado paga 400 euros e há outro que paga 600. "Por um quarto", sublinha. Foi para se queixar de todos esses problemas que veio participar na manifestação do 1 de Maio em Lisboa. Encontrou-se com os seus colegas da associação Solidariedade Imigrante no Martim Moniz e juntos exibem faixas e cartazes onde se lê "Imigrantes contra a escravatura" ou "Não à Europa Fortaleza". O cartaz de Mamadou diz: "A luta continua".

Abdul veio do Bangadlesh, Ibrahim da Gâmbia, Parkanks da Índia. Ibrahim explica que ganha pouco mais de 700 euros, paga 350 euros de quarto e gasta 40 euros no passe. "O que sobra quase não dá para nada, só dá para comer arroz." Nas mãos, os imigrantes exibem ainda umas folhas de papel. São os "recibos comprovativos do pedido da declaração de residência". Alguns têm também os contratos de trabalho e os recibos dos descontos que têm feito para a Segurança Social. Queixam-se todos dos atrasos nos papéis, sobretudo desde que o SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deu lugar à AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo. "Waiting, waiting, waiting", queixa-se Parkanks, que está em Portugal há já três anos. "AIMA no good." O cartaz de Abdul diz: "Ninguém é ilegal".

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Adélia já tem a nacionalidade portuguesa há muito. Veio da Guiné-Bissau há quase 20 anos. Trabalhou muito tempo como empregada doméstica mas atualmente é auxiliar num lar de terceira idade. Tem 64 anos. "Venho aqui porque temos de lutar pelos direitos humanos", diz. "Também venho pelas empregadas domésticas, que trabalham muito e ganham pouco, trabalham sem contratos e, se forem internas, não têm descanso, não têm hora de refeição. Acordam cedo e deitam-se tarde." Um dos cartazes de Adélia diz: "Eu existo".

Mamadou (ao centro) e Adélia são alguns dos imigrantes que também participaram na manifestação do Dia do Trabalhador

O Dia do Trabalhador é um dia de muitas lutas. Por melhores salários, sim, mas também por contratos justos, por horários dignos, por melhores condições de trabalho - para todos. É por isso que, apesar de a manifestação em Lisboa ser organizada pela CGTP, a avenida Almirante Reis encheu-se não só das bandeiras vermelhas da Intersindical mas de muitas outras bandeiras e de muitos outros gritos. Ao início parecia que iam ser poucos, eram quase três da tarde e os grupos iam-se juntando lentamente, enquanto dos altifalantes saíam canções de Zeca Afonso. Mas, quando a marcha se organizou, quando se enfileiraram todos, percebeu-se que afinal eram muitos, com os animados tambores do grupo Batucando à cabeça, a marcar o ritmo e a chamar os moradores às janelas. A chuva parou, as nuvens abriram-se e o sol animou os manifestantes. "Maio está na rua/ a luta continua", grita uma das organizadoras. E a multidão repete. "A luta continua/ nas empresas e na rua."

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Os trabalhadores da função pública e da metalúrgica marcharam com os sindicatos dos artistas, dos arqueólogos, dos tradutores, dos juristas, dos professores (e lá esteve o STOP com os seus chapéus de chuva), dos informáticos, dos trabalhadores dos supermercados (com os seus cabeçudos), dos trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos. O Manifesto por 1% para a Cultura gritou ao lado dos Migrantes dos Anjos, o Coletivo Marxista, o movimento Vida Independente (que representa as pessoas com deficiência), os movimentos pela habitação e os defensores da "paz sim, guerra não". E nem estamos a enumerar todos, porque seria impossível. "Não podemos aceitar/ empobrecer a trabalhar", gritam todos, independentemente do sindicato ou associação a que pertencem, porque há verdades que são universais: "O custo de vida aumenta/ E o povo não aguenta."

Na frente do desfile vai o "Zé Povinho", vestido a preceito, com barriga redonda e uma barba bem aparada. "Venho representar o povo português", explica o manifestante, sem sair da personagem. "Os direitos dos trabalhadores devem ser lembrados todos os dias, mas hoje é um dia especial. O povo somos todos nós, não nos podemos esquecer disso."

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Até o "Zé Povinho" quis participar na manifestação

Muitos dos que aqui estão hoje também estiveram na semana passada na Avenida da Liberdade, a celebrar os 50 anos do 25 de Abril. "Aqui também estamos a festejar o 25 de Abril, porque foi a Revolução que deu os direitos aos trabalhadores, mas ainda há muito por fazer", explica Célia, que caminha devagar, de braço dado com um grupo de camaradas, todos empunhando cravos e gritando que "o povo unido jamais será vencido". 

A certa altura, caem cravos do céu. A multidão pára para olhar para o terceiro andar do número 74, sede da União de Sindicatos de Lisboa, onde várias pessoas atiram cravos para os manifestantes. É uma alegria. E, nisto, estamos quase a chegar à Alameda Dom Afonso Henriques.

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Rosária e António trouxeram cadeiras e chapéus e ocuparam o seu lugar no relvado muito antes de se ouvirem por ali os tambores da manifestação. "No ano passado, não trouxemos cadeiras e ficámos sentados num muro, mas foi muito desconfortável", conta ela, com um cravo vermelho ao peito. "Desta vez viemos preparados." Estão a comer sardinhas no pão e estão contentes. Conheceram-se ainda jovens, nos Correios, onde ambos trabalhavam, são casados há 54 anos e moram em Lisboa. "O nosso primeiro 1 de Maio foi o dia mais lindo de todos", conta Rosário, referindo-se ao Dia do Trabalhador de 1974, logo a seguir à Revolução de 25 de Abril. "A nossa filha tinha seis meses e o nosso filho tinha um ano e meio, mas, mesmo com as crianças, quisemos participar na manifestação", recorda. "Foi muito bonito. Ainda havia unidade, não havia as divisões sindicais. Durou pouco...", diz, com alguma nostalgia. Rosária e António continuaram a vir, sempre que podem. "Na defesa dos nossos direitos", justifica. "Agora, já somos reformados, mas sabemos quão importantes são as lutas dos trabalhadores."

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Rosária e António participaram na manifestação de 1 de Maio de 1974 

Carlos e Catarina não trouxeram cadeiras mas uma enorme toalha de piquenique que serve para eles, para os filhos, para os amigos e para quem mais aparecer. Chegaram cedo à Alameda para que as crianças aproveitassem para brincar e correr na relva. "Nós ainda não tínhamos nascido quando aconteceu o 25 de Abril, mas os nossos pais sempre nos falaram de como era a vida antes, como era tudo mais difícil e havia muita pobreza", explica Catarina, que tem 34 anos e, tal como o Carlos, é informática. "Nós tivemos alguma sorte porque na nossa área há bastante emprego, mas sabemos que somos privilegiados. No nosso grupo de amigos há muitas pessoas que ainda trabalham a recibos verdes e nunca sabem como vai ser o futuro. E mesmo para quem tem um ordenado razoável a vida é muito complicada, é difícil arranjar uma casa, está tudo caro." Os filhos ainda são muito pequenos, mas Carlos e Catarina gostariam que eles se habituassem a vir às manifestações, a do 1 de Maio e a outras: "Que percebam que nunca podem parar de lutar por aquilo que querem e que consideram justo."

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Aos poucos o relvado, até aqui ocupado por famílias e turistas, vai ficando cheio com os manifestantes vindos do Martim Moniz. Mais perto do palco, os que estão mais ligados às organizações sindicais agitam bandeiras. Espraiados pela Alameda todos os outros, inclusivé do outro lado da estrada, onde há grupos a apanhar a sol e a fazer piqueniques. As barraquinhas de comes e bebes enchem-se de manifestastes que chegam cansados depois de mais de uma hora de caminhada pela Almirante Reis. Há farturas e pipocas, mas a maioria das barraquinhas são de sindicatos e de associações de trabalhadores que vendem cerveja, vinho, pão com queijo ou com linguiça assada.

Junto a uma dessas mesas de madeira, no meio de um grupo animado, está Ilda Santos: "Sou militante do Partido Comunista Português desde 1974. Sou neta de uma 'tarrafalista', a minha mãe era analfabeta e o meu pai era alcoólico", apresenta-se. Ilda cresceu num bairro de lata na Ajuda. No 25 de Abril de 1974 estava prestes a fazer 16 anos e já trabalhava numa fábrica. Rapidamente se envolveu nas lutas dos trabalhadores. Poucos dias depois, a população ocupou o Bairro 2 de Maio. "Foi a primeira vez que fiz cocó numa sanita. Até essa altura fazia na mata porque não tínhamos sanitas nas barracas. Já viu isto? Escreva aí, porque é importante que se saiba. Foi preciso o 25 de Abril para eu usar uma sanita." Ilda Santos não tem papas na língua mas também não tem ódio na voz. "Tento fazer o que é melhor para a sociedade, não quero o mal de ninguém", diz. Ilda faz questão de não falhar uma manifestação de 1 de Maio, assim como também não falha as do 25 de Abril, porque as lutas nunca estão cumpridas. "Fui muito feliz naqueles tempos. Gostava que esta juventude de hoje soubesse o que é sentir a pele arrepiada quando a gente fala do 25 de Abril." E despede-se: "Que a vida te sorria muito."

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Ilda Santos tem quase 66 anos e é militante do PCP desde 1974: "Foram tempos muito felizes", diz, sobre o 25 de Abril

Já Tiago Oliveira, o secretário-geral da CGTP, vai a meio do seu discurso quando chegam à Alameda os últimos participantes na marcha. É o grupo que grita pela "Palestina Livre". Têm música animada e muitos usam os lenços axadrexados (Keffiyeh) que representam a luta do povo palestiniano.

Depois dos discursos, canta-se o hino da CGTP: "Avançai sem medo da luta/ Pelo pão, pelo trabalho, pela paz/ Unidade unidade unidade/ No trabalho contra o Capital/ Camaradas lutemos porque é nossa a vitória final", seguido d'A Internacional e, finalmente, o hino nacional. Há punhos erguidos no ar e gente abraçada a cantar por "uma terra sem amos". No palco ainda há concertos, mas muitos baixam as bandeiras. A luta continua, mas agora é tempo para brindar e comer uma bifana.

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