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Destino Paris: da rua para os Jogos, Vanessa Marina quer «fazer muitos estragos»

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O breaking vai estrear-se como modalidade olímpica e terá representação portuguesa. O percurso da Bgirl que começou por dançar ballet antes de descobrir o hip hop, fascinada a tentar imitar os movimentos frente à televisão. Dançou na Gare do Oriente e viveu nove anos em Inglaterra, a trabalhar num restaurante enquanto se dedicava à forma de expressão que exige, diz, corpo de atleta e espírito de artista. O apuramento chegou no fim de uma qualificação intensa, que «parecia os Hunger Games»

A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 62 até agora, quando se definem as últimas modalidades. Estas são as suas histórias

Vanessa Marina sempre dançou. Começou pelo ballet contemporâneo, até que descobriu as coreografias de hip hop. Gravava videoclips por cima de cassetes do pai e treinava em frente à televisão, antes de encontrar em Lisboa a sua crew e viver no chão da Gare do Oriente o espírito da cultura urbana em que se inspira o breaking. Batalhas de rua, com ritmo e arte. Depois foi viver para Inglaterra e estava em Londres quando a sua forma de expressão se tornou modalidade olímpica. Durante dois anos, definiu Paris como o grande objetivo. E conseguiu, finalmente.

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Vanessa, o nome artístico da Bgirl portuguesa de 32 anos, ainda está a recuperar das emoções do apuramento quando fala com o Maisfutebol, a descrever o momento em que recebeu na última etapa de qualificação, em Budapeste, o bilhete que garantia que faria parte da história da estreia do breaking nos Jogos Olímpicos. «Nós fizemos as contas das pontuações entre as duas qualificações quando acabou a fase das meninas, por isso eu já sabia mais ou menos que iria passar. Só que era muita gente a dizer muita coisa, eu não tinha a certeza e disse: ‘Só quando eu tiver o bilhete na mão é que vou acreditar.’ Quando me deram o bilhete foi, pfff, foi indescritível.»

«Ainda por cima uma das minhas melhores amigas também conseguiu passar e então festejámos as duas no palco e foi incrível», continua a portuguesa, a recordar a festa ao lado da ucraniana Kate depois de ter terminado em nono lugar numa qualificação em que havia apenas 10 lugares de entrada direta entre 40 concorrentes. «Foi tãaooo difícil a qualificação, acho que ainda mais do que nas outras modalidades», desafaba.

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Difícil e muito intensa. Na estreia da modalidade nos Jogos, começou por haver um circuito para definir o ranking, esse ainda com vários portugueses em competição. A partir daí, só os 40 primeiros do ranking é que entraram na qualificação propriamente dita e Vanessa foi a única portuguesa a estar nessa fase. «Desde o ano passado tivemos quase todos os meses uma qualificação. Foi muito intensivo, mentalmente e fisicamente também», diz. E um bocado confuso, acrescenta.

A qualificação intensa: «Parecia os Hunger Games»

«É a primeira vez, então acho que foi tudo organizado um bocadinho à medida que iam avançando para ver o que resultava e o que não resultava. Fomos um bocadinho as cobaias disto tudo. É normal, porque tem de haver erros para se fazer as coisas como deve ser. Só que foi desgastante para nós, porque no ano passado tivemos um circuito em que tínhamos de participar em vários eventos para angariar pontos, e ainda não sabíamos, mas aqueles pontos só nos valeriam para ver quem era o top 40. Ou seja, matámo-nos todos para ficar só no top 40. Achei um bocadinho injusto para todo o trabalho que tivemos.»

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Vanessa recorre a uma imagem da ficção para descrever estes meses, ela que ainda para mais sofreu uma lesão no cotovelo três meses antes das últimas decisões. «Pareci os Hunger Games», ri-se. «Estávamos na sala de aquecimento e éramos chamados aos grupos, por battle, para ir para o palco. E depois ou vinha de lá alguém a chorar, ou a festejar… Como ficámos todos muito próximos uns dos outros, sentíamos também pelos nossos oponentes. Às vezes uma competição não corria tão bem e parecia que estávamos a agarrar-nos num pedestal, que saía uma mão, mas na outra competição já era como se uma mão conseguisse outra vez voltar ao pedestal. Foi mesmo muito desgastante.»

O breaking, ou break, ou ainda break dancing, envolve uma batalha, um confronto entre dois oponentes. Sem contacto nem agressividade, mas com alguma dose de intimidação. «Não podemos vacilar. Nós queremos ganhar contra o outro. Se eu entrar em primeiro e for mais soft, a outra pessoa pode responder muito mais confiante, muito mais a querer ganhar do que eu», explica Vanessa. E tem de se incorporar esse papel mesmo quando do outro lado está uma amiga.

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Como aconteceu com ela, numa etapa de qualificação em Xangai, quando teve de defrontar a alemã Pauline, que faz parte da sua crew. Um grupo que, explica, «tem como objetivo empoderar as Bgirls de todo o mundo». Ela também vê o breaking como uma forma de intervenção em relação à condição feminina e essa plataforma, que organiza uma competição nos Países Baixos, tem esse objetivo, procurando «dar maior visibilidade às meninas que competem».

A gravar videoclips da MTV por cima das cassetes do pai

Vanessa Marina descobriu o mundo do hip hop, de onde deriva o breaking, na adolescência. «Eu sempre treinei ballet contemporâneo, os meus pais colocaram-me no ballet aos três anos. E sempre mantive esta conexão com a dança», conta. E com a música. «Os meus pais tinham em casa ainda em vinil discos do Stevie Wonder, da Mariah Carey, foi aí que eu comecei a descobrir. Foi um crescendo de envolvimento e a música influenciou muito.»

Depois veio a fase da MTV, a ouvir e ver videoclips. «Quando estava no secundário integrei um grupo de coreografias de hip hop. Na altura os videoclips de R&B eram muito fortes em coreografia, e então eu estava sempre a tentar reproduzir. Destiny Child, Chris Brown, Justin Timberlake, Mariah Carey, havia muitos. Eu gravava nas cassetes de VHS por cima. O meu pai tinha um filme gravado e eu perguntava se ele já não queria. Então está tipo metade do filme e depois aparece lá a cena da MTV. Depois, saiu o filme You got served, que foi o melhor filme de hip hop feito até à data. E os meus pais deram-me no Natal um DVD para aprender as coreografias desse filme. Eu lembro-me de estar a aprender as coreografias em frente à televisão.»

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Em Leiria, encontrou uma escola que tinha aulas de hip hop e foi aí que tomou contacto com o lado «mais underground» desse movimento, como ela diz. «Havia a parte coreográfica e depois havia as batalhas dos vários elementos que integram o hip hop. Eles começaram a levar-me para essas batalhas.»

Na Gare do Oriente, com os sem-abrigo como público

Quando se mudou para Lisboa, para tirar a licenciatura na Escola Superior de Dança, encontrou a sua crew e o seu palco de rua, na Gare do Oriente. Foi com um amigo, que também dançava break. «Já havia um movimento, o pessoal de Lisboa já treinava lá e nós juntámo-nos e começámos a treinar para as batalhas de rua.»

Não eram exibições para ganhar uns trocos, diz. Era uma «cena» deles. «A gente não metia chapéu nenhum, não estávamos a dar show a ninguém. Levávamos a nossa coluna, ficávamos lá num canto, não incomodávamos ninguém, os polícias também eram super tranquilos connosco. Só os sem-abrigo é que ficavam lá connosco e gostavam de nos ver dançar. Éramos de certo modo uma companhia também para eles.»

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Também participavam em eventos mais organizados, em estúdios de dança ou noutros espaços, «com o apoio muitas vezes da Câmara Municipal de Lisboa».

Vanessa continuava a estudar e quando terminou o curso ainda começou por dar aulas de dança a crianças. Mas não era o que queria fazer. «Não era uma coisa que me satisfizesse. Eu não queria ser professora logo, queria ainda dançar.» Então, decidiu tentar a sorte em Inglaterra. Ficou lá nove anos.

Nove anos em Londres, entre o trabalho num restaurante e o break

Começou por fazer audições para companhias de dança contemporânea, sem grande sucesso. «Diria que por causa da minha estrutura de corpo, além de que também tem de se estar integrado já um bocadinho na cena lá de Londres e eu não estava.» Mas juntou-se a grupos de dança e tirou dois cursos, um deles de personal training. Também integrou um programa da Royal Academy of Dance para dar aulas em escolas secundárias. Ao mesmo tempo, trabalhava num restaurante, «para conseguir equilibrar as contas».

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Nunca deixou o break. «Em Londres têm uma cena muito maior que a nossa, e é muito mais valorizado. Há muitas companhias independentes de dança urbana e fazem muitos espetáculos», nota. Passou também a entrar no circuito de competições. «Houve um momento em que eu já conseguia viver só da dança, mas ficava muito limitada para viajar.» Deixou então as aulas e voltou então ao restaurante onde trabalhou durante seis anos e onde tinha a flexibilidade de tempo de que precisava.

Ainda lá estava quando o breaking foi anunciado como modalidade olímpica, a única a ser introduzida para 2024. A estreia foi em 2018, nos Jogos Olímpicos da Juventude, mas a grande oportunidade seria Paris. De início, Vanessa preferiu esperar para ver. «Pensei, ‘OK, é tudo muito bonito, mas quão sério é que isto é?’ Nós já tínhamos muitos eventos culturais e já fazíamos disto vida. Já viajávamos, já representávamos o nosso país. Não sabíamos o quão sério se iria tornar.»

Foi participando nas várias fases do processo, de início em part time. Competia e depois voltava ao seu trabalho no restaurante. Isso mudou depois de ter conseguido o terceiro lugar no Campeonato da Europa, em 2022. «Aí passei a ter o estatuto de elite, com uma bolsa, e já ponderei fazer isto a tempo inteiro. Pensei, ‘Se vão estar a pagar-me para fazer isto a tempo inteiro, então vou entrar a 100 por cento’. Eu não gosto de fazer as coisas a meio termo. Daí ter-me mudado outra vez para Portugal.»

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Passou a ter foco absoluto na qualificação olímpica. «Não estou a dar aulas, não estou a ensinar. Não queria que fosse uma distração.» Os seus dias giram agora à volta da preparação olímpica. Mas sem treino obsessivo. «Normalmente faço ginásio, treino e tento fazer tudo da parte da manhã. Porque quando eu estou muito focada numa coisa acabo por estar obcecada e isso tem um impacto negativo. Então, tenho de ter o equilíbrio de um tempo livre para mim, para fazer o que eu quiser para a minha cabeça estar bem.»

«Corpo de atleta e espírito de artista»

O breaking, com a sua combinação de movimentos e improviso ao som da música, exige criatividade e inspiração, diz. «É nisso que se diferencia mais, se calhar, doutros desportos. Se eu for forçada a dançar, já começa a descambar. Eu preciso de sentir aquela vontade de dançar, aquela saudade. Por isso é que antes das competições tiro três ou quatro dias em que não faço nada. Para depois chegar à competição e querer dançar.»

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Para Vanessa, este é um desporto, mas também é arte. «Acho que tem de ser uma mistura dos dois. Mesmo antes de ser olímpico e deste processo todo, eu tive de fazer treinos e de adaptar exercício físico, para poder perder peso, para ser rápida no chão. Tem de se ter o corpo de um atleta e o espírito de um artista.»

Foi o espírito de rua que lhe deu origem, mas hoje o break já é uma modalidade com enquadramento mais convencional. «Já havia competições a nível mundial muito antes dos Olímpicos. Ou seja, não é uma coisa super desorganizada. As pessoas ainda têm cá em Portugal um bocadinho essa ideia.»

A desconfiança em relação ao break: «Há muitos pais que têm medo»

Em Portugal, estima, haverá algo acima de uma centena de pessoas a praticar break e a modalidade já faz parte dos programas da maioria das escolas de dança. Mas há ainda alguma desconfiança, diz, pela associação à rua e a comportamentos marginais.

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«Nós tentamos levar a nova geração para estas competições. Sei que há muitos pais que têm medo, porque é desconhecido. Mas lá está, os eventos não acontecem na rua. Pode ser em vários espaços e pode ser uma tarde divertida. Não acontece no fundo da discoteca, com pessoas a fumar lá dentro», diz Vanessa. «Já não é assim. Mas há muitos pais que não deixam os miúdos à responsabilidade do professor porque têm medo que ele os leve, sei lá, para outro lado…»

Também falta divulgação, na sua opinião. «Isto é um ciclo. Se não há divulgação, não atinge a nova geração, não atinge os pais para incentivarem também os miúdos a irem para esta modalidade. Se não há isso a modalidade não cresce. Se não cresce não há competições. Se não há competições não há uma divulgação maior. Acho que tem de vir também um bocadinho dos media, porque já tive pessoas a perguntarem-me se isto é uma coisa muito recente, ou como é que foi da rua para os Olímpicos, quando nós já temos competições de nível profissional há anos.»

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Exclusão dos Jogos de 2028 foi «decisão devastadora»

Agora que é olímpico, o break vai ter outra visibilidade. Mas corre o risco de que isso dure pouco tempo. Depois de ter sido introduzida para os Jogos de Paris, a modalidade foi excluída do programa para Los Angeles, em 2028. Apesar de os Estados Unidos serem o berço do hip hop e do movimento na origem de tudo isto.

«Não faz sentido nenhum. Foi uma decisão completamente devastadora, até porque o break nasceu nos Estados Unidos. Mas toda a gente sabe que vai tudo dar a uma questão de interesses. O que tem mais probabilidade de se ganhar medalhas, o que tem mais probabilidade de visualização, um impacto maior no mundo. A nossa modalidade cresceu muito, exponencialmente, mas é uma coisa ainda muito recente. O hip hop tem 40, 50 anos», observa.

Mas ela acredita que a exclusão será temporária e que, depois de se mostrar em Paris, o break voltará a ser olímpico quatro anos mais tarde, em Brisbane. «Acho que vão arrepender-se, depois de verem o impacto que terá com estes Olímpicos. De certeza que vai voltar em 2032.»

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«Posso fazer muitos estragos em Paris»

Para já, ela foca-se em Paris. Onde acredita que pode ir longe, numa competição que decorre num só dia, a 9 de agosto, e terá uma primeira fase de grupos, apurando depois as melhores oito. «Ter-me qualificado já foi muito bom. Vou tentar fazer o meu melhor e conseguir top 8 é o meu objetivo. Se conseguir pódio ainda melhor», começa por dizer, sem esconder a ambição. «Acho que posso fazer muitos estragos. Eu sou uma atleta que pode ser imprevisível. As pessoas não conseguem decifrar o que eu vou ser ou vou fazer naquele momento. Sou uma oponente um bocadinho difícil de ler, porque de mim podem esperar muita coisa.»

Não se considera favorita, mas está preparada para surpreender. «Japão e França devem ser os favoritos. Os atletas franceses têm um apoio muito grande, do próprio país e de patrocínios. Portugal fica muito aquém. Mas acho que toda a gente gosta de um underdog e nós, como vimos de um país pequenino, somos um bocadinho underdog ali.»

Vai ter muita gente a torcer por ela, mesmo que seja à distância. Será difícil ter a família presente, por causa dos custos, mais pesados ainda com a qualificação a ter sido garantida muito perto do arranque dos Jogos. Mas contará sempre com o apoio dos pais. «Eles estão sempre comigo. Agora não estiveram em Budapeste e a minha mãe e o meu pai disseram-me: ‘Olha para a bancada que a gente está lá’.»

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