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Iliteracia financeira ("até entre os intermediadores"), um "mau indicador" e a ausência de uma medida que "deveria ter sido a primeira." Há solução para o problema da habitação?

ENTREVISTA | É um setor com vários problemas, desde logo a ausência de um diagnóstico sobre os mesmos. A especialista Vera Gouveia Barros diz que há medidas desadequadas no programa do Governo e avança com alternativas

Portugal Habita é a próxima CNN Summit, que decorre esta quinta-feira na FIL e tem a presença de figuras como o ministro das Infraestruturas e da Habitação, Miguel Pinto Luz, ou os presidentes das câmaras municipais de Porto e Oeiras, Rui Moreira e Isaltino Morais, respetivamente. Para lançar o encontro a CNN Portugal falou com Vera Gouveia Barros, uma das maiores especialistas na área em Portugal.

O problema da habitação é muito mais do que nacional, é europeu. De acordo com o Eurofund, quase metade das pessoas temiam, a meio de 2023, vir a perder a casa nos três meses seguintes. A situação é mais grave em Portugal, ou há mesmo uma questão global? Eu começaria por tentar perceber o que é “o problema da habitação”. De uma forma aparentemente simples, entendo que o problema da habitação consiste no desrespeito pelo direito à habitação. Mas este direito é bastante mais do que apenas ter um tecto sob o qual morar. Sem me alongar, ele compreende os seguintes elementos: segurança legal da ocupação; disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e infraestruturas; acessibilidade económica; habitabilidade; facilidade de acesso; localização e respeito pelo meio cultural.

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O facto que refere, o do receio de perder a casa, tem que ver com o primeiro dos elementos, a segurança legal da habitação. Segundo o Barómetro da Habitação, em Portugal uma em cada nove pessoas tem receio de perder a sua casa nos próximos cinco anos. Bastante menos de metade, portanto. O que não surpreende, se pensarmos que 70% das famílias portuguesas vive em casa própria e destes 60% já tem a casa paga (Censos de 2021).

Há algum país europeu a conseguir fazer face ao problema de forma mais efetiva, ou é algo mais de fundo? Em França, e segundo um estudo da Fitch, já podemos começar a ver os preços da habitação a cair. Fizeram alguma coisa diferente? Não conheço as políticas públicas em matéria de habitação adoptadas em França. Mas há uma coisa que eu sei: o bem habitação tem características muito próprias que fazem com que o funcionamento do seu mercado seja muito especial, pelo que olhar para o preço como indicador é mau. Em termos de acessibilidade económica – um dos elementos do direito à habitação –, o que nos interessa é saber se as pessoas conseguem ter uma casa digna cujo pagamento não implique ficar sem dinheiro para fazer face a outras necessidades básicas. Olhando para os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, vemos que, em 2022, a taxa de sobrecarga com despesas de habitação em Portugal era de 5%, ou seja, mais baixa que os 8,3% de 2012, mais baixa que os 9,1% da média europeia. Também vemos que esse valor tem vindo a baixar desde 2015, não obstante uma subida entre 2020 e 2021, enquanto os preços da habitação subiam… Portanto, já vê que é mesmo um mau indicador.

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Quanto ao programa do Governo, temos medidas muito focadas nos jovens e também numa maior aposta da iniciativa privada, nomeadamente com a reversão de algumas medidas que tiravam poder ao Alojamento Local. Destaca alguma medida? Destaco, sobretudo, a ausência de uma medida que deveria ser a primeira: fazer um verdadeiro diagnóstico do(s) problema(s) da habitação. Para alguns temos dados como os relativos aos 68% de pessoas com dificuldades em andar ou subir escadas que vivem em casas que não estão preparadas para quem tem problemas de mobilidade (Censos 2021). Isso também é um desrespeito do direito à habitação.

A isenção de IMT e Imposto de Selo para compra de habitação própria por jovens até aos 35 anos pode funcionar? O peso da fiscalidade é assim tão relevante para a aquisição de uma casa? Uma coisa que se aprende logo nas primeiras aulas de Microeconomia é que saber quem suporta o peso da fiscalidade depende das elasticidades da procura e da oferta. Numa altura em que a oferta parece não ser suficiente para satisfazer a procura (repare-se que o preço da habitação tem aumentado, mas as vendas de casas também, apesar da descida em 2023), o poder negocial está do lado de quem vende, o que significa que é o comprador a efectivamente pagar o IMT e o Imposto de Selo. E são montantes não irrelevantes, que se somam às maiores dificuldades de acesso ao crédito, resultantes das alterações que a banca implementou motivadas pela crise financeira. Agora, no caso dos jovens, parece-me que o problema estará, sobretudo, do lado dos rendimentos. Com as taxas de desemprego que os atingem, com as baixas remunerações, com a precariedade dos seus empregos, não será mais IMT ou menos IMT a fazer diferença. Uma pessoa que não saiba nadar morre afogada se não tiver pé, quer não o tenha por 20 cm ou por um metro.

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Que tipo de medidas fiscais podem ajudar a resolver o problema para lá do IMT ou Imposto de Selo? Medidas fiscais ao nível do IRS. Por uma questão de justiça, parece-me que a despesa em juros do crédito à habitação devia ser dedutível, como já foi e como acontece com as rendas. Também defendo que a tributação de rendimentos prediais devia ser em função da taxa de esforço e da duração do contrato, premiando os senhorios que garantam a acessibilidade económica à habitação, um bocadinho na lógica de um artigo que escrevi sobre o Programa de Arrendamento Acessível, e a sua segurança legal (mas não como o disparate em patamares que está em vigor). Afinal, são duas das dimensões do direito à habitação.

A utilização de mais iniciativa privada, ou até de Parcerias Público-Privadas na Habitação, pode ajudar? De que forma? Não estaremos a correr o risco de estimular o lucro dos privados? Não sabia que estimular o lucro dos privados era um risco. Para mim não é, contando que ele não resulte do abuso do poder de mercado. De resto, Alvalade é um bom exemplo de como essas parcerias público-privadas podem funcionar bem, principalmente se existir planeamento urbanístico. Atrevo-me – porque é “achismo” meu – a dizer que parte do problema da habitação resulta da falta dele.

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E sobre o Alojamento Local, houve mesmo um ataque do Governo anterior, ou há alguma medida que possa regular melhor o setor para ajudar a controlar os preços? As duas hipóteses não são mutuamente exclusivas. Criou-se na sociedade a convicção de que o alojamento local era o grande responsável pela subida dos preços da habitação. Não vou repetir que o preço é um mau indicador, vou citar o estudo da Susana Peralta, do João Pereira dos Santos e do Duarte Gonçalves que mostrou que o alojamento local teve efeito, mas está longe de ser o principal responsável. Mas as decisões políticas têm esta coisa de, muitas vezes, se basearem mais em percepções que em dados, estudos e conhecimento. Por isso, o pacote Mais Habitação adoptou um conjunto de medidas que facilmente se pode descrever como um ataque ao alojamento local, em certa medida cobarde, porque colocou nas mãos dos condomínios parte da sua execução. Isto não significa que não se possam implementar medidas regulatórias. Claro que se pode. Aliás, já em várias ocasiões propus que se usasse a taxa turística como instrumento de política pública. Em vez de ser um valor fixo, igual para todas as dormidas, seria mais alta em zonas de maior intensidade turística. E podia pensar-se em diferenciá-la em função de outros critérios, ligados à sustentabilidade ambiental e ao combate à sazonalidade, por exemplo.

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E a garantia pública para viabilizar o financiamento bancário da totalidade do preço de aquisição por jovens. É viável financeiramente? Pode funcionar? Um outro “achismo” meu é o de que a alteração das condições de acesso ao crédito à habitação é um factor muito importante nas dificuldades que as pessoas sentem em adquirir casa. Tal como as alterações sociológicas na composição da família, com um número crescente de pessoas a viver sozinhas ou de famílias monoparentais. Há uns anos, as pessoas saíam de casa dos pais para irem viver com outra pessoa; a dimensão de uma casa para um casal não é diferente da para um(a) solteiro(a) e, no entanto, no primeiro caso, há uma divisão do seu custo. Hoje em dia, suspeito que são mais as pessoas a querer emancipar-se fora de uma relação a dois e esta alteração não deixa de ser importante. Contudo, o principal problema para os jovens é o que já mencionei: 10% da população entre os 25 e os 34 anos não está empregada (e também não está no ensino ou a fazer formação), um terço dos que estão empregados tem uma situação laboral precária (tem um contrato com termo) e os salários são baixos. Ora, com estas condições é difícil que algum banco lhes conceda crédito. O problema não é a entrada que têm de dar por já não haver financiamento a 100%.

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Quanto ao mercado de arrendamento, tanto o Mais Habitação, do Governo PS, como o Programa do Governo da AD parecem concordar que é preciso estimular a confiança dos senhorios. Mas como é que isso se faz? Eu também concordo. Mas diz-se que a confiança leva anos a construir, segundos para destruir e uma vida para reconstruir, não é? O Governo da AD abandonou o discurso de diabolização dos senhorios e isso deve ajudar, mas não basta. Um ingrediente fundamental – não apenas para o arrendamento, mas para todas as relações económicas – é ter um sistema judicial acessível e célere. Para senhorios e para inquilinos. É difícil alguém envolver-se numa relação supostamente estável como o arrendamento, quando sabe que, se tiver algum problema com a outra parte, vai demorar anos para o ver resolvido e gastar bastante dinheiro e energia pelo caminho. Note-se que, no Inquérito à Situação Financeira das Famílias, 44,5% dos proprietários responderam que tinha preferido viver em casa própria, independentemente de a casa ser ou não um bom investimento, e 63,5% dos arrendatários queriam ter comprado, só não tiveram condições financeiras para tal. Isto é capaz de nos dizer alguma coisa…

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O Governo de Luís Montenegro alerta para um efeito nocivo do congelamento ou travão das rendas. É mesmo assim? Há mesmo consequências a longo prazo para senhorios e arrendatários? Bom, convém esclarecer que, na literatura económica, o termo “controlo de rendas” abrange um leque de medidas diversas, desde umas mais “suaves” até outras mais “robustas”, falando-se de várias gerações de controlo de rendas. Presumo que a questão tem que ver com a medida mais robusta da primeira geração, ou seja, com a imposição de um limite nominal às rendas. É um resultado bem estabelecido na literatura económica, sobre o qual Paul Krugman já escreveu um eloquente artigo no New York Times: a limitação de rendas beneficia, no imediato, quem já tem um contrato de arrendamento, prejudicando quem quer entrar no mercado, já que os senhorios irão pedir rendas mais altas para compensar o congelamento ou simplesmente não colocar as casas no mercado; no longo prazo, prejudica inclusivamente quem já estava no mercado, porque as rendas não sobem, mas as casas também não são devidamente mantidas, degradando-se as suas condições. Kenneth Gibb, Adriana Mihaela Soaita e Alex Marsh fizeram, em 2022, uma revisão de literatura sobre o tema e, a partir dela, concluem que este tipo de medida deve ser evitado. Outros tipos de regulação podem ser considerados, mas tendo sempre em conta o contexto, nomeadamente no que concerne à estrutura da oferta (estamos a falar de um mercado detido por meia dúzia de grandes empresas ou por um conjunto grande de pequenos proprietários?). 

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O Governo também fala em novos conceitos: regulatory sand box, build to rent, mixed housing, co-living, habitação modelar… em que consistem estas medidas?Regulatory sand box não tem que ver com habitação. É apenas um ambiente em que se permite uma excepção à legislação geral para testar novas soluções. O built to rent explica-se pela tradução da expressão: consiste em construir habitações especificamente para as arrendar. Mixed housing não sei bem o que quer dizer, porque a “mistura” pode ser de diferentes coisas, mas presumo que seja de classes socioeconómicas. O co-living é um sistema de habitação em que certos espaços passam a ser partilhados, ou seja, as pessoas têm o seu espaço, mas parte das funções passam a acontecer em espaços comuns. A habitação modular trata-se de uma técnica de construção.

E podem fazer sentido? Podem, sim. Mas é engraçado que, apesar de terem novos nomes com a pompa do inglês, estes conceitos não são propriamente novos. O built to rent não é muito diferente dos prédios de rendimento, a mescla social (mixed housing) foi uma preocupação de quem projectou a urbanização de Alvalade, os apartamentos comunais da URSS do princípio do século XX são um exemplo de co-living e vários bairros sociais do Estado Novo recorreram à construção modular.

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E do Mais Habitação deixado por António Costa, o que é que podemos retirar? Por uma questão de princípio, não de eficácia, sou favorável ao fim dos vistos gold. A parte da simplificação de licenciamentos também me parece positiva (a ideia geral, não vou discutir os aspectos particulares da sua implementação). As medidas de protecção de emergência às famílias também foram de saudar.

Tudo isto para resolver o problema atual. Mas não devemos também pensar no futuro? Não devemos pensar numa questão de literacia financeira? Portugal é o quinto país com mais taxa de juro variável... Eu sei que o BE discorda, mas a questão da literacia financeira é importante e não apenas por causa da habitação. Da literacia em geral, na verdade, de todas as variantes (estatística, jurídica e as que mais inventarem). O Banco de Portugal tem programas específicos de promoção da literacia financeira; era fundamental avaliá-los, ver se estão a produzir os resultados esperados, se podiam ser mais eficazes e mais eficientes. Da minha experiência pessoal – que vale o que vale e é pouco – a iliteracia financeira existe até entre os intermediadores de crédito, que são supostamente pessoas qualificadas em quem devíamos poder confiar. Posso contar que, a certa altura, tive os serviços de um que, apesar de eu ter sido clara a pedir simulações unicamente para taxa fixa, me enviava só propostas com taxa variável; depois de ter insistido com assertividade que era taxa fixa que queria, lá me mandou umas fichas, mas continuando a apontar para uma variável como a melhor proposta. Isto foi em 2022…

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O mesmo estudo do Eurofund dá precisamente o exemplo da Bélgica, que diz ter uma grande aplicabilidade de taxa de juro fixa. Já os portugueses foram dos que mais sofreram com as oscilações nos juros. É uma questão de mentalidade que pode ajudar no futuro? É curioso porque a ideia que se tem dos portugueses é a de serem avessos ao risco. Alguém que não gosta de arriscar deveria escolher uma taxa de juro fixa, seria essa a minha expectativa. Portanto, acho que há mesmo aqui o resultado da iliteracia financeira. Quantas pessoas pegaram na FINE que o banco lhes deu e a leram cuidadosamente na sua totalidade? Foram ver o historial das taxas Euribor? Fizeram as contas todas, considerando as demais despesas que uma habitação própria acarreta? A isto soma-se um sector bancário com pouca concorrência.

A CNN Summit sobre habitação também vai discutir o futuro do mercado imobiliário. Qual é esse futuro? Há novas tecnologias em vista que podem ajudar em breve? Se eu soubesse o futuro, possivelmente não estava aqui a responder a esta entrevista (ok, talvez estivesse ainda assim…). A História mostra-nos que há sempre inovação, portanto não vejo porque haveria de ser diferente no mercado imobiliário. Haverá certamente novas tecnologias na construção, inclusivamente na senda da eficiência energética e da economia circular; haverá novos modelos de negócio, haverá novos segmentos de procura, etc. Mas eu sou uma optimista confessa. No entanto, como dizia há pouco, muitas vezes as novidades são apenas o regresso da História com outra roupagem e, também por isso, é tão importante estudar o passado.

No caso português, o investimento também está muito do lado da construção e do licenciamento? É um problema que ambos os governos focaram, mas há medidas concretas e eficazes? Tivemos recentemente a entrada em vigor de um decreto-lei que veio procurar dar resposta a este problema. Creio que é importante monitorizar a sua implementação, ir ouvindo as partes interessadas, recolher dados, para daqui a uns tempos podermos avaliar e fazer os eventuais ajustes necessários. Está também prevista a revogação do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e a aprovação de um código da construção. Note-se, porém, que, não raras vezes, o problema não está na legislação, mas na sua aplicação; mudar hábitos, alterar práticas é bastante mais complicado que revogar um qualquer decreto-lei.

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