Tinha preparado para este artigo um título com um trocadilho relativamente fácil, mas totalmente certo para os últimos dez dias na Casa Branca: "As escaramuças de Scaramucci".
Mas já não fui a tempo: Donald Trump despedir o seu diretor de comunicação na segunda-feira à tarde, apenas semana e meia depois de o ter anunciado como o tipo que ia resolver as fugas de informação.
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O Presidente terá dado ouvidos ao seu novo "chief of staff", o general John Kelly (ele próprio novo na função, graças à queda de Reince Priebus, acusado por Scaramucci de ser um dos “leakers” das fugas de informação que têm afetado a Casa Branca nos últimos meses).
Kelly, até agora responsável pela Homeland Security e um homem próximo do Presidente, terá considerado "inadmissível" o comportamento público de Anthony Scaramucci, sobretudo a linguagem usada na entrevista à New Yorker.
Scaramucci era uma personagem que parecia saída da série televisiva «Os Sopranos». Até Donald Trump até achou que aquilo era demais.
Este texto também é sobre a ascensão e queda de Scaramucci em apenas dez dias, claro.
Mas trata de algo muito mais fundo: Donald Trump ainda nem 200 dias completou na Casa Branca (falta uma semana) e já transformou a figura do Presidente dos EUA (que Obama elevara a uma referência de seriedade e dignidade) num posto assumido por alguém sem dimensão, que muda de opinião, literalmente, de um dia para o outro e a quem faltam valores fundamentais para ocupar o cargo político eleito mais influente do mundo.
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Barack Obama podia não ser um Presidente consensual – estava longe de o ser, como é sabido.
Mas manteve, durante oito anos, um comportamento público exemplar, liderando uma Casa Branca que, durante dois mandatos, cumpriu o seu papel de liderança política de Washington sem casos de maior.
Donald Trump é motivo de chacota de adversários e até supostos aliados. E de receios protocolares nas cimeiras
(sobre ele disse Raul Castro, líder cubano, que é “alguém profundamente retrógrado e incapaz”).
É visto por líderes de outros países como alguém infantil, manipulável e especialmente permeável a quem souber afagar-lhe o ego.
Um Presidente sem estratégiaMais do que "revolucionário na agenda", "extremista anti-imigração" ou "crítico do establishment", os rótulos de campanha, Donald Trump realmente tem sido, como Presidente, profundamente instável e incompetente.
A permeabilidade que Trump revela nas posições que toma é assustadora: depois de fazer um discurso especialmente agressivo e ignorante (“We’re getting out”), para legitimar a pretensão de rasgar o Acordo de Paris, bastou umas horas de conversa com Macron para manifestar a possibilidade de “mudar de ideias”.
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Há dias anunciou que iria reverter a medida de Obama de aprovar os transgéneros no exército, mas após ouvir a opinião de militares credenciados que respeita já deixou a entender que pode voltar atrás nessa decisão.
Começa a ser difícil dizer se Donald quer seguir mais "a via radical de Steve Bannon" ou "institucionalista moderada" do general James Mattis.
O Presidente limita-se a desrespeitar o sistema, a fazer guerra ao "mainstream media" e a alimentar, em comícios como se ainda estivesse em campanha, a sua base furiosa e ignorante que, sobretudo nos estados do Midwest, continua a acreditar que Trump "apesar do que escreve no Twitter vai dar cabo desses tipos de Washington e é a pessoa certa para endireitar a América".
Sem capacidade de concretização legislativa. Sem habilidade política (mostrando que ser um empresário de sucesso, como foi quase sempre, não é a mesma coisa que ser um líder político de sucesso).
Donald Trump ganhou dinheiro, nos últimos anos, a vender a ideia de que é o mestre na “arte de fazer negócio”. Mas está a revelar-se particularmente desastrado na “arte do compromisso”. A esfera dos negócios tem códigos e perfis muito diferentes da esfera da alta política – mesmo no ambiente cada vez mais poluído de Washington DC.
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As últimas duas semanas foram “horribilis” para o Presidente.
A Casa Branca de Trump passou de “ter vários problemas”, o estado dos últimos meses para “o caos”, a situação que poderemos classificar, olhando para os últimos dias.
A taxa de aprovação a cair a pique. O “repeal ObamaCare” a chumbar no Senado, graças ao voto contra de três republicanos (sendo um deles John McCain).
A aprovação bipartidária das sanções à Rússia, com democratas e republicanos no Congresso a entenderem-se na condenação da mais do que evidente interferência russa na eleição de novembro passado, numa resolução à revelia do Presidente, e com efeitos práticos que levaram Moscovo a retaliar diplomaticamente.
“Tenham cuidado com Scaramucci”… ou afinal já nãoA ascensão de Antonhy Scaramucci, um “tough guy” de Long Island, NY, sem qualquer perfil político mas alegadamente alinhado na agenda “revolucionária” da liderança Trump, tinha um objetivo claro: começar uma “limpeza de balneário” na Casa Branca.
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O Presidente tinha a convicção de que grande parte dos problemas que, nos últimos meses, se agravaram em torno das suspeitas de “conluio russo” e também da degradação de relações com os republicanos no Congresso tinham um culpado: Reince Priebus, seu “chief of staff” até há semana e meia.
Reince, líder do Comité Nacional do Partido Republicano e elemento importante no período de transição, era uma das últimas ligações que Trump tinha ao “core” dos republicanos.
O afastamento do Presidente ao partido que o nomeou candidato é cada vez mais notório. Trump está cada vez mais isolado politicamente e mais radicalizado em posições unipessoais, fora de qualquer tipo de racionalidade partidária ou política.
Isso pode ter o seu ‘glamour’ para boa parte do eleitorado americano, que vê “nos políticos” a fonte de todos os males.
Mas, a partir de certo ponto, é curto para um Presidente dos EUA.
Paradoxalmente, uma Presidência Trump em permanente agitação e ebulição tem levado os democratas a uma espécie de anestesia.
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A atenção mediática e política tem estado de tal modo virada para as confusões na Casa Branca que quase nenhuma figura democrata tem tido a possibilidade de desenvolver as suas ideias.
A eleição presidencial de Donald Trump lançou uma espécie de maldição sobre a política americana.
O despedimento mais do que precoce (dez dias no cargo!) de Scaramucci como diretor de comunicação da Casa Branca fez-me ficar sem título para o artigo. Mas por pouco tempo: lembrei-me logo do livro de Primo Levi: “Se isto é um homem”.
Aplicado a Donald Trump, isto não é bem um Presidente dos Estados Unidos.
*autor de dois livros sobre a presidência Obama e outro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial de 2016PUB