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Quando os irmãos vivem em "guerra aberta": "Ainda na semana passada se pegaram fisicamente ao ponto de ficarem com nódoas negras"

Podem ser o pesadelo de muitos pais, mas os especialistas asseguram que são "naturais" e até "inevitáveis". Os conflitos entre irmãos são objeto de preocupação e motivo para exasperar. "Mãe ele bateu-me!", "Pai, ele respirou para cima de mim"... discussões que surgem do nada, sem motivo aparente, mas que trazem angústia ao dia-a-dia de muitas famílias. E, no final das contas, não vivem uns sem os outros e podem ser os melhores amigos

Em casa de Vanessa Batista e Renato Sena, não há momentos de silêncio. São cinco filhos de idades totalmente diferentes: Matilde, de 17 anos, Lucas, de 11, Alice, de nove, Mateus, de cinco, e o bebé Daniel, que ainda nem completou um ano. Os irmãos não passam uns sem os outros, mas “dão cabo da cabeça” aos pais com as discussões entre eles.

“Ainda ontem... O meu marido está fora em missão. Chatearam-se para ver quem tomava conta do bebé para eu fazer o jantar. Os do meio queriam os três tomar conta do irmão, mas não queriam a ajuda uns dos outros. Lá se gerou a confusão”, conta Vanessa Batista, adiantando que resolveu o problema com a divisão da responsabilidade pelo benjamim da família com “cinco minutos para cada um”.

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A engenheira de formação, que deixou a profissão para se dedicar a tempo inteiro à família e à maternidade, não vê, admite, as discussões dos filhos com grande preocupação. “Uma casa que não tenha estas coisas, parece que não é autêntica. Eu tenho três irmãos. Cresci com os meus primos todos. Somos 43 primos. A minha vida sempre foi estar rodeada de primos e irmãos e estes conflitos eram habituais”, justifica.

“Os meus filhos defendem-se muito uns aos outros. Quando algum faz alguma coisa de erra, vem logo o outro dizer ‘oh mãe… não castigues’. Não vejo razões para preocupação, porque no fundo, no íntimo, chateiam-se, mas adoram-se. Preocupava-me mais se não houvesse momentos de harmonia ou se não se defendessem perante terceiros”, acrescenta.

A família vive há 10 anos em Bruxelas e Vanessa, que agora se dedica também ao site Sem Alergias à Mesa e às páginas sociais do projeto, diz que até se geram “situações engraçadas” com as discussões da prole: “Os meus filhos são trilingues. Falam português, francês e holandês. Quando estão a discutir sobre alguma coisa que não querem que nós entendamos, falam em holandês. Eu percebo logo que ali há coisa. E, às vezes, começam a discutir em português, depois passam para o holandês, depois para o francês…”.

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Três numa cama de solteiro

Com tantas idades diferentes a conviverem debaixo do mesmo teto, os conflitos parecem ter geração espontânea e nem precisam de ter justificação. Pelo menos não para os pais…

“Talvez haja mais conflitos entre a mais velha que tem 17 e o lucas que tem 11. Há sempre aquela idade em que o mais novo cresce mais um bocadinho e invade o espaço do outro… Já por duas vezes que se chatearam ao ponto de se baterem. Ainda a semana passada se pegaram fisicamente. Ficaram os dois com nódoas negras! Quando cheguei a casa perguntei o que se passou e responderam que já estava tudo resolvido e que eu não precisava de me preocupar”, conta.

“O Lucas e a Alice têm dois anos de diferença e cresceram muito como gémeos. Têm uma convivência muito mais pacífica”, acrescenta.

A discussão sobre quem toma conta do bebé Daniel já chegou a ser motivo de discussão entre os irmãos mais velhos. (Arquivo Vanessa Batista)

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Assim como surgem, assim se resolvem. E os irmãos Sena não se vão deitar zangados. Lá em casa, cada um tem o seu quarto, mas parecem não gostar da separação: “Quando eu estava grávida de oito meses do Daniel, separámos os quartos. Não durou um ano. Já tivemos de juntar tudo outra vez, porque não querem dormir separados. Chegam a dormir três numa cama de solteiro”.

“Às vezes, durante o dia, dão-nos cabo da cabeça. À noite querem dormir juntos. Eu pergunto-lhes ‘Vocês chateiam-se tanto durante o dia, como é que à noite esquecem tudo?’. E eles respondem sempre coisas do género ‘oh mãe não te preocupes, que damos conta do recado’ ou ‘são coisas de irmãos, não ligues’”, relata.

A “linha vermelha” da família Sena

Vanessa admite que deixa os filhos resolverem os próprios conflitos, mas há linhas vermelhas que não permite que sejam atravessadas. “Às vezes tenho de intervir. Quando estamos presentes, não deixamos os conflitos escalarem para o físico. Temos mais preocupação de gerir as coisas dos mais novos, porque têm menos poder de argumentação”, exemplifica.

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“Até hoje não tiveram nada que achássemos que fosse motivo de maior preocupação e exigisse uma intervenção mais musculada da nossa parte”, acrescenta.

Para ilustrar a leveza com que procuram encarar o tema, Vanessa recorda a viagem de família à Alemanha: “eles, já fartos de estrem dentro do carro, começaram a entrar naquela de ‘mãe ele está a respirar para cima de mim’. E a nossa resposta foi: ‘e então? Queres que ele vá a correr atrás do carro?!’”.

Mas assume que ela e Renato nem sempre afinam pelo mesmo diapasão no que toca a este assunto: “Já aconteceu discordarmos da maneira como o outro resolveu a situação com os filhos. Somos todos seres humanos. Não somos pares perfeitos. Às vezes não estamos alinhados. Acontece. Eu própria não sou a mesma mãe para os meus cinco filhos.”

Irmãos, os nossos “primeiros pares”

A forma de Vanessa e Renato encararem o assunto vai ao encontro daquilo que a psicóloga Raquel Raimundo defende ser a forma correta de agir. A especialista sublinha que “os irmãos são os primeiros pares uns dos outros” e os conflitos são tão naturais como a existência. “Qualquer situação de conflito deve ser encarada como normal. Basta existirem dois seres humanos para poder haver uma situação de conflito. Não é uma questão de ser bom ou mau para o desenvolvimento deles. São inevitáveis. Como são inevitáveis, não os conseguiremos evitar todos”, começa por tranquilizar.

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“Poderá ser até normativo e não patológico. Não tem necessariamente de uma coisa patológica. Os alarmes devem soar quando algo potencialmente grave para as crianças ou para alguém externo pode acontecer. Porque acontece muitas vezes. Não tem necessariamente de ser intenso, mas, se extravasa em termos de frequência ou se acontece alguma coisa potencialmente gravosa, os adultos devem intervir”, aconselha.

A especialista especifica que uma situação de conflito entre irmãos se pode tornar “potencialmente gravosa”, quando põe em causa a integridade de alguma das crianças, seja física ou emocional, ou “danosa da relação que a criança tem com terceiros, com os pares ou com outros adultos”.

No convívio entre irmãos, é natural a existência de conflitos. (DR)

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“As crianças devem aprender a gerir os seus conflitos de forma autónoma, mas com uma autonomia qb. E não nos podemos esquecer que as crianças também nos observam muito como modelos e a forma como gerimos os nossos próprios conflitos são exemplos para elas”, acrescenta.

De acordo com Raquel Raimundo, há vários fatores que podem trazer desequilíbrio à equação, como a vinda de um irmão mais novo ou o facto de se entrar numa família reconstruída. “No caso dos irmãos mais velhos, há uma certa ambivalência - por um lado fico contente porque tenho alguém de quem cuidar e com quem brincar, mas sinto ciúme porque veio roubar recursos que eram só meus. Por outro lado, cada vez mais temos famílias reconstruídas e às vezes ganham-se novos irmãos. E é importante acautelar a progressividade dos contactos com esses novos elementos da família, por exemplo”, diz a psicóloga.

“Não sabem parar”

Vânia Teixeira tem 38 anos, é gerente de loja e vive em Felgueiras. Tem dois filhos, dois rapazes de oito e cinco anos. “São extremamente amigos e dependentes um do outo. Onde um vai, o outro quer ir, o que um faz o outro quer fazer… mas conseguem ser insuportáveis, porque qualquer coisa serve para se zangarem. Hoje, a descer as escadas, só o facto de um se ter rido do outro já foi motivo para chegarem ao carro e partirem um para cima do outro. E depois não sabem parar. Levam-nos ao limite”, conta, revelando que os conflitos tanto podem ser “verbais como físicos”.

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Vânia diz que já testou as estratégias todas que a parentalidade pôs ao seu alcance. “Já experimentei deixá-los parar por eles, mas só param quando se magoam a sério. Já conversei com eles, já os pus de castigo, mas nada parece resultar. Um sorriso, um mexer de mão, qualquer coisa serve para despoletar uma discussão. Já aconteceu eu ter de parar de conduzir e ameaçar pô-los fora do carro, para ver se eles paravam de discutir e nada”, revela.

As discussões entre irmãos não têm hora marcada e nem um protagonista: “É de parte a parte. Um começa umas, outro começa outras”. E, claro, como dois bons irmãos que discutem, também fazem as pazes com facilidade e não precisam da intervenção dos adultos para voltarem a ser amigos.

“Às vezes ponho-os de castigo e mando cada um para o seu quarto e proíbo-os de falar um com o outro. Mas os quartos deles ficam de frente um para o outro e, passado um bocadinho, já estão os dois no mesmo quarto, a partilhar coisas, como se nada tivesse acontecido. E penso, ‘mas está tudo doido?’”, relata.

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Vânia admite que chega a duvidar da sua capacidade para esta coisa da maternidade e lamenta: “Às vezes sinto que estou a falhar na forma de lidar com esta questão”.

“É esgotante”

A dificuldade em estar alinhada com a forma que o pai tem de lidar com a situação também é uma realidade. “O pai passa menos tempo com eles. Não é tanto de conversar. Perde mais facilmente a paciência com eles, mas acho que isso só vai aumentar a bolha da confusão e da discussão. Confesso que às vezes não concordo muito com a forma como o meu marido reage. Mas tento evitar de intervir, para não gerar ainda mais conflito”, revela.

Vânia diz que vive diariamente a dualidade de dois filhos que começam a discutir por “questões patéticas como decidir quem toma banho primeiro à noite” e têm a “capacidade de ser muito amorosos, pedir desculpa aos pais e pedir desculpa um ao outro”. E é nesses momentos de paz e tranquilidade que a mãe tenta chamar os filhos à razão. “Aproveito estes períodos de calmaria para conversar com eles e explicar-lhes por exemplo que às vezes evito de os levar a algum lado, porque não sei como vão reagir”, diz.

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Na ausência dos pais, são os filhos que qualquer um gostaria de ter: “Tenho referências da escola de que são miúdos muito amigos dos amigos, muito educados, muito disponíveis. Quer um, quer outro.”

“É esgotante. Isto, diariamente, é complicado”, desabafa.

Ouvir e refletir em conjunto: Os conselhos da psicóloga para os pais

Raquel Raimundo diz que é fundamental que os pais transmitam aos filhos a normalidade que existe na discordância. “É muito importante ensiná-los a aceitar que é aceitável discordar. A olharem para o conflito como algo que não é necessariamente mau”, começa por explicar.

Além disso, continua, é preciso investir tempo na relação com os filhos e na relação dos filhos. “É preciso ouvi-los sobre o que os apoquenta ou os preocupa e ajudá-los, num primeiro momento, a acalmar e a serenar e, depois, a refletir e a colocarem-se no lugar do outro”, aconselha.

“Só que, para isto, é preciso tempo, que as famílias têm cada vez menos e as escolas também”, lamenta.

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Aproveitar momentos de calmaria para conversar com as crianças sobre os conflitos com os irmãos pode ser uma boa estratégia. (DR)

E a dedicação, diz, deve ser total. Não devemos conversar com os filhos, enquanto estamos a fazer outras coisas, “nomeadamente agarrados ao telemóvel”. Esta exclusividade, ainda que momentânea ou temporária, é importante para ajudar as crianças a cultivarem “relações saudáveis, de apoio e de suporte”.

A melhor forma de conversar com os mais pequenos, diz Raquel Raimundo, é usar mais pontos de interrogação do que pontos finais ou de exclamação. “Não há nada como fazer perguntas. Com as crianças também. Não é dizer como fazer, mas ajudá-las a pensar sobre o assunto: ‘Como te sentiste? Quando foi a última vez em que estiveste bem com o teu irmão? Como te sentiste nessa altura? Foi bom, não foi? Então porque não tentam ter mais momentos desses?’”, exemplifica.

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A psicóloga sublinha que “ser criança é uma fase de aprendizagem”. “E aprender não é só académico. Aprendemos muito a ver fazer. É a maior fonte de aprendizagem. Observarmos o que é feito, fazer e refletir sobre o que fazemos. É muito mais eficaz do que ouvir”, salienta.

A coerência e a consistência, como em qualquer aspeto da educação, são fundamentais: “Não se pode dizer uma coisa num dia e outra no outro, nem dizer uma coisa para um filho e outra para outro… Não é ser inflexível, por que isso também não resulta. Mas ser consistente.”

E quando mais nada parecer resultar, não há que ter medo de pedir ajuda. “Há ajudas profissionais. Um psicólogo, um pedopsiquiatra… Quando a criança é muito pequena, pode-se procurar aconselhamento parental. Esse trabalho pode ser feito com os pais, com a própria criança, ou um trabalho conjunto”, destaca a psicóloga.

O importante mesmo é não desistir, porque, como sublinha Raquel Raimundo, a importância dos irmãos nas vidas de cada um de nós é imensurável e nunca é tarde para restaurar uma boa relação fraterna: “Todos provavelmente conhecemos casos de irmãos adultos que tinham muitas situações de conflitos em crianças e adolescentes e que são irmãos muito cúmplices, que se apoiam muito. Os irmãos podem ser as pessoas que passam mais tempo na nossa vida. É uma relação que vale a pena cuidar”.

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