Esta segunda-feira os jogadores perderam por fim a paciência: após várias ameaças, a FIFpro – sindicato internacional de jogadores de futebol – apresentou uma queixa contra a FIFA na Comissão Europeia, seguindo o impulso que já tinham dado pelos sindicatos inglês e francês.
Em causa está, segundo explicaram os representantes da FIFpro, o facto da FIFA ter criado e agendado o novo Mundial de Clubes sem falar com os parceiros sociais, o que consideram ilegal à luz do direito europeu. Mas, na verdade, o problema é bem mais fundo do que isso.
Os jogadores queixam-se, na verdade, do excesso de jogos no calendário de competições, que o Mundial de Clubes vem tornar, dizem, ainda muito pior.
«Os dados que têm sido apresentados a cada época demonstram um crescimento da sobrecarga, que não se reflete apenas nos jogos em excesso, que afetam a saúde, bem-estar e rendimento dos jogadores. É sobretudo o rolo compressor competitivo, traduzido em viagens constantes, estágios de preparação e back to back games, ou seja, partidas realizadas de forma sucessiva e em períodos que, por recomendação médica e científica, deviam ser de repouso ou recuperação», garante Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato de Jogadores.
«Perante um cenário que só teve tendência para agravar, e sendo o processo de criação do Mundial de Clubes pela FIFA o exemplo paradigmático da falta de diálogo e articulação com os interesses dos jogadores, a ação apresentada pela FIFpro e pelas Ligas Europeias foi um passo natural para exigir uma alteração nesse procedimento unilateral e autocrático.»
É muito duro, com estes calendários loucos. É difícil para o corpo: física e mentalmente estamos exautos.
Jude Bellingham
Ora poucas semanas antes de avançar com o processo contra a FIFA na Comissão Europeia, a mesma FIFpro lançou um relatório com dados sobre a carga de trabalho dos jogadores.
A conclusão é que os jogadores de topo já ultrapassaram o limite.
O relatório dá o exemplo de Marquinhos, que na época 2022/23 passou 80 por cento do tempo em ambiente de trabalho: jogos, treinos, viagens, estágios, enfim.
Nessa temporada, o brasileiro esteve em 59 jogos e jogou um total de quase cinco mil minutos, 63 por cento do quais sem um intervalo superior a três ou quatro dias. Passou 74 horas a viajar de avião, fez mais de 55 mil quilómetros e mudou de fuso horário 30 vezes.
Trabalhou 293 dias do ano e descansou 72 dias (metade de um cidadão comum), sendo que nesta época até foi beneficiado pela eliminação precoce do Brasil, no Mundial do Qatar, que lhe permitiu ter 11 dias de férias extraordinárias em dezembro.
Com a criação do Mundial de Clubes, a ser disputado entre 32 equipas, entre 15 de junho e 13 de julho de 2025, ficou confirmado que há competições oficiais em todos os meses do ano durante três temporadas consecutivas. O que é algo completamente novo no futebol.
É impossível estar na capacidade máxima com 72 jogos ou mais por ano. Penso que os organismos competentes deveriam analisar esta questão, porque assim é impossível. A qualidade do jogo diminui e nós sofremos com isso, bem como as nossas famílias. Quando a época termina, somos arrancados de casa durante um mês, para atravessar continentes e disputar o Mundial de Clubes.
Dani Carvajal
O relatório da FIFpro destaca, de resto, que antes era habitual no final da época haver um período de descanso de quatro a cinco semanas. No entanto, o alargamento de várias competições, como a Liga dos Campeões, o Campeonato da Europa e o Mundial, para além da criação do Mundial de Clubes, da Liga Conferência e da Liga das Nações, veio aumentar o número de jogos e o tempo de competição ao longo da temporada.
O que significa menos tempo sem competição no fim da época e, por arrasto, «maiores fatores de stress, mais fadiga de viagens, mais exaustão mental e maior risco de lesões».
«Não é só o aumento do número de jogos que está a comprometer a integridade física e psicológica dos jogadores, é a sobreposição de competições, entre clubes e seleções, que faz com que aumentem as viagens, estágios e back to back games», diz Joaquim Evangelista.
«É uma hipocrisia assobiar para o lado e apregoar que os jogadores têm as melhores condições e que querem jogar, a questão é muito mais complexa. Falamos de consequências a médio e longo prazo para as carreiras dos próprios, mas também para a qualidade do seu jogo.»
Também os treinadores, de resto, estão do lado dos jogadores. Um inquérito feito em 2021 entre os treinadores de topo, por exemplo, indiciou que 88 por cento consideram que um jogador não deve fazer mais de 55 jogos por época e que também 88 por cento pensa que no mínimo um jogador deve ter quatro semanas de férias no final da temporada.
Durante onze meses são jogos, jogos, jogos. A pré-época, antes, era de quatro ou cinco semanas. Agora temos dez dias. Queremos jogar futebol e desfrutar dele, mas temos de o reduzir. É demasiado. Não estou a dizer que temos de eliminar as seleções ou a Liga dos Campeões, ou a Premier League, ou as taças, mas temos de encontrar uma solução
Pep Guardiola
Fredrik Aursnes é um caso paradigmático, de resto.
A 12 de março de 2024 anunciou a decisão de se retirar da seleção da Noruega. O médio do Benfica tinha 28 anos na altura e era uma das estrelas da equipa nacional. Aursnes explicou que queria ter mais tempo para dedicar à vida fora do futebol.
Os números do norueguês nos três anos anteriores a esta decisão eram brutais. Em 2021/22 foi utilizado em 83 por cento dos jogos do Feyenoord e teve zero dias de férias no final da época. Na temporada seguinte, ano em que chegou ao Benfica e foi campeão, foi utilizado em 75 por cento dos jogos e teve 23 dias de férias. Já na última temporada, foi utilizado em 94 por cento dos jogos do Benfica e teve direito a 13 dias de férias.
Feitas as contas, portanto, em três anos Aursnes esteve em 168 jogos (média de 56 jogos por época), 146 dos quais do clube e 22 dos quais da seleção norueguesa.
Também nessas três temporadas, o médio teve um total de 36 dias de férias, o que dá uma média de 12 dias de férias totais por ano.
A FIFpro garante, de resto, que Aursnes não é um caso isolado. Longe disso, aliás. A diferença é que o jogador do Benfica abdicou da seleção para poder ter mais tempo para ele, mas segundo os dados da plataforma PWM há 130 jogadores com mais jogos do que Aursnes nas últimas três temporadas. Sendo que a tendência para aumentar é cada vez mais acentuada.
Perante isto, o relatório chama a atenção para o perigo que estas cargas excessivas significam, alertando que infligem no corpo do jogador «danos nos tecidos e crises energéticas», para além de «perceções de fadiga, dor, desconforto e angústia.». Por isso, os atletas tornam-se «mais ansiosos, menos confiantes e mais cautelosos», com uma estimativa de risco alterada, o que reduz a eficácia da tomada de decisões.
Provavelmente por isso, Aursnes decidiu abdicar da seleção nacional.
«Quero ter mais tempo para dar prioridade a outras coisas na minha vida para além do futebol»
Fredrik Aursnes
O número de jogadores que faz mais de 55 jogos por temporada (o que representa uma carga excessiva de trabalho), com mais de 55 ciclos de treinos, viagens, estágios e, claro, os próprios jogos, tem vindo a aumentar de ano para ano, tendo atingido na última época 31 por cento dos jogadores de alta competição (mais de 800 jogadores).
No entanto, nenhum teve nas últimas cinco temporadas uma carga tão grande como Bruno Fernandes. O internacional português somou 334 jogos oficiais ao longo dessas cinco épocas, a uma média de 66,8 jogos por temporada.
Os 75 jogos realizados em 2022/23 são, aliás, um recorde para um jogador profissional, só igualado por Julian Alvarez nesta última temporada. À frente de Lautaro Martínez (72 jogos em 2022/23), do próprio Bruno Fernandes (72 jogos em 2020/21), de Phil Foden (72 jogos em 2023/24) e de Luis Díaz (72 jogos em 2023/24).
A tendência, no entanto, é para cada vez jogadores fazerem mais jogos e este número pode ser facilmente batido nesta época.
Curiosamente, Bruno Fernandes não tem tido lesões graves. Uma lesão no joelho, que obrigou a uma paragem de 12 dias, foi o pior que lhe aconteceu na última temporada.
Mas o mesmo não se pode dizer de outros jogadores que estavam em risco devido a excessiva carga de jogo. Rodri e Carvajal, por exemplo, já terminaram a temporada.
Florian Wirtz, de resto, também esta terça-feira viu confirmada uma lesão, não se sabendo nesta altura o tempo de paragem.
54 por cento dos jogadores, aliás, diz que já foi obrigado a jogar com uma pequena lesão e 82 por cento dos treinadores já admitiram que, devido à pressão para terem resultados, já fizeram alinhar jogadores que estavam com alto risco de lesão.
«Isto é terrível e tem efeitos imprevisíveis. Uma das grandes preocupações da FIFpro é o impacto da sobrecarga nos jovens de elite, como Pedri, Bellingham, Wirtz. Comparado com os talentos de outras gerações, na sua idade, já fazem por época o dobro ou o triplo dos jogos. Que consequências isto terá no seu percurso?», questiona Joaquim Evangelista.
«Para um jogador que compete 90 sobre 90 minutos em 70 ou mais jogos por época, que passa parte da época privado da família, a viajar de um lado para o outro, que não acompanha o crescimento dos filhos, que não tem um período de férias contínuo ou um período de repouso que, verdadeiramente, lhe permita desligar da competição, é necessária uma capacidade de resiliência que, a longo prazo, não é sustentável.»
A defesa dos mais jovens é aliás uma preocupação óbvia ao longo de todo o relatório da FIFpro. O sindicato internacional de jogadores analisa os jogos e os minutos feitos pelas jovens estrelas atuais, em comparação com as estrelas anteriores com a mesma nacionalidade, e o aumento de carga competitiva é evidente.
«Perante todas as recomendações científicas, é incompreensível como é que não é promovido um debate alargado para proteger a saúde e performance dos atletas», adianta Joaquim Evangelista.
«Houve algum diálogo entre a FIFPRO Europa e a UEFA, que tem continuado, mas no que respeita à FIFA não. É evidente a mensagem de preocupação deixada pelos sindicatos, jogadores e treinadores com o contínuo alargamento de competições. O processo de criação do mundial de clubes, em especial, foi o claro exemplo da falta de articulação e diálogo entre os principais intervenientes. Foi esta a razão que levou a FIFPRO a avançar com uma queixa junto da Comissão Europeia.»
Os jogadores decidiram, portanto, partir para a guerra. Mas ameaçam anda fazer mais. Joaquim Evangelista recorda, a esse propósito, «as palavras recentes de Rodri e Koundé, que em nada destoam com os alertas que já tinham sido deixados por treinadores como Guardiola, Klopp ou Ancelotti».
«A menção à greve tem a ver, na minha perspetiva, com o sentimento dos jogadores mais afetados por este calendário de que estão muito perto do seu ponto de rutura, física e mental. Seja como for, temos de nos sentar à mesa e encontrar soluções para o bem dos jogadores e do futebol.»
Fazer 80 jogos numa época não é possível. É de mais. As autoridades têm de fazer alguma coisa em relação a isto
Aurélien Tchouaméni