Inseminação pós-morte: lei está em vigor, mas mulheres só podem recorrer a técnica com taxa de sucesso abaixo de 20% - TVI

Inseminação pós-morte: lei está em vigor, mas mulheres só podem recorrer a técnica com taxa de sucesso abaixo de 20%

  • Emanuel Monteiro
  • 27 abr 2022, 22:21

Especialistas falam em discriminação e em interpretação ‘aberrante’ do texto saído da Assembleia da República.

As mulheres que, em Portugal, queiram recorrer à inseminação pós-morte com sémen criopreservado dos maridos ou unidos de facto falecidos, só podem fazê-lo através de inseminação artificial, técnica com uma diminuta taxa de sucesso, e que dificilmente conduzirá a uma gravidez.

A restrição é imposta pela entidade reguladora da medicina de reprodução, o Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida (CNPMA). O CNPMA entende que a nova lei que regula a inseminação pós-morte, que entrou em vigor em novembro, só permite o recurso à técnica de inseminação artificial.

“Esta interpretação é aberrante, é completamente aberrante”, garante Eurico Reis, juiz desembargador jubilado e presidente do CNPMA, a entidade reguladora, até 2016.

Nos cenários pós-morte, a fecundação in vitro é a técnica mais adequada para conseguir uma gravidez, já que tem uma taxa de sucesso muito maior, muitas vezes superior a 60%, e implica a utilização de menos material genético, o que ganha especial relevância pelo facto de o dador já não estar vivo e não poder fazer mais doações.

 “Por mais que eu ache que a lei poderia ter sido redigida de modo inequívoco, o que lá está é suficiente para tirar a conclusão no sentido de que a fertilização in vitro também pode ser feita com esse material”, considera Sérgio Soares, médico especialista em medicina de reprodução.

Mas, afinal de contas, o que diz a nova lei? No artigo 22.º, que foi alterado em novembro e que regula a inseminação pós-morte, é referido que “de forma a concretizar um projeto parental claramente estabelecido, (…), é lícito, após a morte do marido ou do unido de facto, realizar uma inseminação com sémen da pessoa falecida”. Ora, parece que é a palavra “inseminação” que faz crer a entidade reguladora que só é legal fazer inseminações artificiais, e não, por exemplo, fecundações in vitro.

“Se o legislador quisesse que apenas se pudesse utilizar a inseminação artificial, teria escrito inseminação artificial pós-morte. Escreveu inseminação. E aqui inseminação vale como seminação, ou seja, a fecundação de um óvulo por um espermatozoide, é um conceito global”, garante Eurico Reis.

Porém, se dúvidas persistirem sobre esta matéria, o artigo 26.º da mesma lei é inequívoco. Não foi alterado, e regula precisamente a fecundação in vitro pós-morte. Diz que a esta técnica aplicam-se as regras constantes do artigo da inseminação pós-morte. Ora, se a inseminação pós-morte não era, mas passou a ser legal com a alteração à lei, automaticamente a fecundação in vitro pode, desde novembro, nos mesmos moldes, ser posta em prática.

A TVI/CNN Portugal contactou a entidade reguladora da medicina de reprodução que insiste, de forma aparentemente inexplicável, que, de acordo com a nova lei, a inseminação artificial é a única técnica permitida. Como é esta entidade que disponibiliza os documentos obrigatórios e iguais a nível nacional que as mulheres assinam na hora de fazer o tratamento, e como neste momento só disponibilizam o consentimento informado para inseminações artificiais pós-morte, hospitais e clínicas estão impedidos de fazer, por exemplo, fecundações in vitro e, assim, impedidos de cumprir a lei.

Qual foi a intenção do legislador?

“Dizer que a atuação [do Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida] corporiza um preconceito ideológico é, talvez, a única explicação racional, porque do ponto de vista jurídico isto é impensável”, considera Eurico Reis.

O Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida é presidido por Carla Rodrigues. A advogada de 49 anos foi deputada pelo PSD entre 2009 e 2015. O partido opôs-se de forma veemente à legalização da inseminação pós-morte. Também Carla Rodrigues manifestou, várias vezes, incluindo numa entrevista à TVI, que era contra a alteração à lei. A TVI/CNN Portugal convidou Carla Rodrigues para uma entrevista, mas a presidente do CNPMA recusou. De qualquer maneira, fez saber que tendo em conta todas as questões levantadas já pediu um esclarecimento à Assembleia da República sobre o verdadeiro alcance da lei e que técnicas são, ou não, permitidas.

Eurico Reis, que acompanhou de perto o processo do legislador, não tem dúvidas de qual foi a intenção da Assembleia da República, quando redigiu a lei: “O espírito do legislador é que se faz tudo, utilizando as técnicas com melhores taxas de sucesso para atingir o fim que é o nascimento de uma criança com vida”

Em entrevista à TVI/CNN Portugal, Pedro Delgado Alves, deputado do PS, antecipa aquela que será a resposta do Parlamento à entidade reguladora:

“De facto, já tomámos conhecimento dessa posição do Conselho, o que nos surpreende significativamente. O Conselho foi ouvido no decurso do debate parlamentar. A questão nunca foi suscitada, nunca ninguém colocou dúvidas quanto à abrangência da lei. E, portanto, o que o Parlamento poderá dar nota, e apenas isso, é apenas explicar quais foram os trabalhos preparatórios, quais foram as intenções dos partidos autores e o que é que esteve no debate para, no fundo, explicitar junto do Conselho que esta interpretação restritiva que estão a fazer não parece fazer sentido.”

No entanto, a resposta do Parlamento ao CNPMA não é vinculativa, nem tem data para ser dada. Significa, isto, que a entidade reguladora pode insistir numa interpretação da lei que vários especialistas consideram absurda. Até lá, e se assim for, as mulheres que queiram beneficiar da nova lei da inseminação pós-morte poderão continuar a enfrentar fortes dificuldades para conseguir engravidar.

Só um tribunal ou uma nova alteração legal poderão travar a posição do Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida, que faz desta nova lei uma espécie de lei-fachada, sem utilidade. Isto, porque foi feita para erradicar a discriminação contra estas mulheres mas, no fim de contas, continua a deixá-las de lado.

A inseminação pós-morte foi legalizada em Portugal na sequência de uma série de reportagens da TVI que deram voz a Ângela Ferreira, uma mulher do Porto que quer engravidar do marido que morreu em 2019.

Em 2020, mais de 100 mil pessoas juntaram-se à causa desta mulher e assinaram uma petição que obrigou a Assembleia da República a discutir a alteração à lei. Rapidamente, vários partidos mostraram-se solidários e apresentaram, também, projetos de lei no mesmo sentido. Depois de um veto do Presidente da República, a nova lei da procriação medicamente assistida entrou em vigor em novembro do ano passado.

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