Em 2022 foram recolhidos das ruas quase 42 mil animais. Em 2021 tinham sido mais de 43 mil. Mas o pior problema está nos que ninguém quer. Naqueles que passam anos a fio, ou a vida toda, dentro dos canis municipais. São quase 80 mil. Estes números são oficiais e foram avançados à CNN Portugal pela Provedora dos Animais, Laurentina Pedroso. Mas a responsável alerta que eles não espelham a realidade e, por isso, "este é um número subestimado". Aqui só estão contabilizados os animais recolhidos ou deixados nos espaços geridos pelas Câmaras. De fora, estão milhares acolhidos por associações. "Há associações que têm 400, 500, 600 animais", acrescenta.
"Há animais recolhidos que vão viver a vida toda num canil. Tem de haver capacidade de adoção para estes animais", defende Laurentina Pedroso. "Olhando para nós, pessoas, é como viver a vida toda numa prisão", compara.
E o custo destes animais é enorme. "Fiz um cálculo e, se nada for feito, nos próximos 12 anos, considerando o tempo de vida que cada animal pode ter - uma média de 10 anos - contabilizando os que entram todos os anos e os que ninguém quer, falamos de um valor de mil milhões de euros". "Em alimentação, em tratamentos médico-veterinários que são necessários, em higiene, em tratadores, em limpeza, em cuidados profiláticos anuais. Portanto, um animal pode custar, no seu tempo de vida, num centro de recolha oficial, mais de 20 mil euros. Se fizermos estes somatórios, numa década, estamos a falar de mil milhões de euros", explica Laurentina Pedroso.
E uma das soluções que defende, no imediato, é a "esterilização obrigatória dos animais durante uns tempos até que esta situação seja resolvida. Seria uma medida transitória até os números estarem mais controlados". Apenas dirigida a fêmeas. E para que o abandono não continue a aumentar, neste tempo de crise, também considera que "é preciso haver ajuda para as famílias em termos da situação veterinária".
Por exemplo, no caso desta medida de esterilização obrigatória que defende de forma temporária, deveria ser "o Governo, local ou central, a garantir financeiramente a intervenção" a todos os proprietários que não tenham meios para o fazer. E a ideia que defende é em nome "do bem-estar animal e da saúde pública".
Há mais pessoas a adotar, mas mesmo assim continuam a ser demasiados animais sem dono, sem casa. E esta é uma grande preocupação de Laurentina Pedroso. As contas, que apenas olham para os últimos seis anos, são simples: aos animais recolhidos, retira-se o número de animais adotados e eutanaziados. Os que ficam nos canis, no final de cada ano, são os "residentes/habitantes".
Ano | Animais recolhidos | Animais adotados | Animais eutanasiados | Animais esterilizados | Animais habitantes |
2017 | 41374 | 16957 | 11851 | 9349 | 12566 |
2018 | 35733 | 15263 | 6350 | 13350 | 14120 |
2019 | 31966 | 18187 | 2649 | 23191 | 11130 |
2020 | 31339 | 20664 | 2281 | 34174 | 8394 |
2021 | 43603 | 25474 | 2188 | 41845 | 15941 |
2022 | 41994 | 24721 | 2378 | 54827 | 14985 |
Total | 77136 |
Apesar das autarquias lançarem campanhas de adoção todos os anos ou disponibilizarem páginas com fotografias de animais disponíveis para encontrarem uma família, ainda ficam muitos para trás. A Câmara Municipal de Lisboa ou a Câmara Municipal do Porto são apenas dois exemplos.
Na altura da pandemia e dos confinamentos o número de adoções aumentou, mas logo a seguir, no pós-pandemia, o abandono subiu. E é por isso que o número de animais recolhidos em 2021 e 2022 é mais elevado.
E, na verdade, os abandonos diários continuam. "Chegam de manhã para começarem a trabalhar e têm animais presos por correntes, presos à trela, à coleira, na porta do Centro de Recolha", relata a Provedora dos Animais, veterinária de profissão, com base nos testemunhos que lhe vão chegando dos colegas.
"Isto acontece também com as associações. Eles chegam de manhã para começar a trabalhar e antes de entrarem já se estão a deparar com o problema. São histórias verdadeiras", lamenta.
"Ter um animal começa a ser um luxo hoje em dia"
"As pessoas não adotaram por gostarem verdadeiramente dos animais ou terem empatia com os animais. Foram uma ajuda. Uma vez que o problema deixou de existir, passaram a ser um peso e não um verdadeiro companheiro, membro da família", explica Lautentina Pedroso. "Aquilo que era uma vantagem, que era as pessoas poderem vir à rua e 'passear o cão', passou a ser mais uma tarefa no dia a dia da correria das pessoas. Chegam do trabalho e ainda têm de passear o cão às dez da noite", conclui quando fala dos tempos da pandemia.
Mas não só. As pessoas "estavam em casa e podiam dedicar-se ao animal. Os animais habituaram-se a esse tipo de ligação. Com o facto de as pessoas irem trabalhar, os animais em casa - sozinhos - começavam a ter comportamentos mais difíceis" sem os donos serem capazes de os gerir, acrescenta.
E o que afasta as pessoas dos animais também passa pelo dinheiro. Às vezes "gastamos com eles o que não gastamos com as pessoas". Tratamentos, medicamentos. "São preços muito altos". Nos dias que vivemos "quantas pessoas têm dinheiro para deixar os animais nos hotéis próprios?", questiona. "Ter um animal começa a ser um luxo hoje em dia", lamenta Laurentina Pedroso.
"Um animal é uma responsabilidade para a vida" e, por isso, consciencializar as pessoas também é determinante. É preciso que estejam preparados para assumir. Durante a pandemia "muitos foram buscar animais a abrigos e, meses depois, devolver".
Apesar de tudo, Laurentina Pedroso admite que o Governo tem dado passos na direção certa e acalenta esperança "nos próximos tempos", com a publicação do "regulamento do bem-estar animal", onde se poderão encontrar "estratégias para estes animais".
E as estratégias passarão, certamente, pela "educação e sensibilização das pessoas que é fundamental. Depois, a estabilização do número de animais. Não podemos deixar os animais reproduzirem-se para depois acabarem nestes locais, nas associações ou nos centros de recolha. Por isso, a esterilização das fêmeas é fundamental".
Os Centros de Recolha "já fazem esterilização" e os animais entregues para adoção "estão esterilizados", mas é preciso ir um pouco mais longe, junto dos donos que manifestamente não se preocupam com esta situação e deixam os seus gatos e cães em total liberdade. Lembrando mais uma vez que seria "uma questão temporária, transitória, até começarmos a ver estes animais nos centros de recolha oficial a diminuírem". A Provedora dos Animais não inclui nesta medida os criadores oficiais, que cumpram as leis e sejam fiscalizados.
A promoção da adoção responsável "é o topo da pirâmide". "Ela tem de continuar a existir", mas sozinha não é suficiente.
"Pedi para criar um Sistema Nacional de Saúde para Animais em Risco"
Mesmo com pequenos avanços por parte do Executivo, Laurentina Pedroso ainda aguarda resposta a duas propostas que fez quando tomou posse como Provedora dos Animais. "Pedi que me deixassem desenhar dois planos estratégicos". O pedido foi enviado ao ministro do Ambiente, que, entretanto, mudou, e à ministra da Agricultura.
"Um deles era um plano nacional, um chamado Sistema Nacional de Saúde para Animais em Risco, em que ajudássemos de uma forma social as famílias. Não é um SNS para animais. Era uma rede de cuidados médico-veterinários baseada nas instituições de ensino. E, depois, com um grande apoio em outras entidades e que custasse muito pouco ou quase nada ao Estado", explica.
"A segunda, era uma rede de emergência animal. Quando temos situações de catástrofe, calamidades, situações como fogos, onde temos de retirar animais, há animais que precisam imediatamente de cuidados médico-veterinários". Podem ser ferimentos graves ou animais que apenas precisam de oxigénio para recuperar, ou uma mera hidratação", explica.
A ideia é "criar essa rede, portanto, organizada com meios próprios. Clínicas veterinárias móveis. Sugeri ainda que depois essas clínicas veterinárias móveis, que são um apoio perto da ocorrência, fossem rentabilizadas para as tais campanhas de esterilização".
Segundo a Provedora dos Animais o ministro do Ambiente "já deu a sua aprovação" para "constituir um grupo de trabalho para criar estas estratégias nacionais. Agora, estou à espera do aval da Sra. Ministra da Agricultura".
Abandono de animais é crime
Recentemente a PSP lançou uma campanha a apelar ao não abandono dos animais. Lembrando que é crime. É crime desde 2014, com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. O verão é a altura do ano em que o abandono mais sobe e, por isso, as autoridades escolheram julho para lançar esta campanha.
Os conselhos das autoridades são simples: pedir a familiares, vizinhos ou amigos para ficar com o seu animal; recorrer a hotéis para animais ou espaço dedicados a esse acolhimento; procurar profissionais que possam cuidar do seu animal na sua própria casa; ou até recorrer a abrigos que tenham disponibilidade para ficar com o animal durante o período de férias do dono. Mas nunca cometer o crime de abandono.