São frequentemente confundidos, mas não podiam ser mais diferentes. Vírus e bactérias fazem parte do nosso discurso do dia-a-dia, seja por causa das doenças que provocam, pela sua ação no nosso organismo, pelos medicamentos que compramos para os tratar. Mas ainda há muito por esclarecer: porque são tão diferentes? Como atuam no nosso organismo? E qual é que precisa de antibiótico para ser controlado? Compilamos um guia com as principais diferenças que, esperamos, não deixe dúvidas por tirar.
O que são e como se replicam?
A primeira grande diferença reside logo na definição do que é um vírus e do que é uma bactéria. Uma bactéria “tem vida própria”, explica Miguel Abreu, infecciologista no Centro Hospitalar e Universitário do Porto. “De forma corriqueira e pouco científica, podemos dizer que é uma espécie de animal em ponto microscópico”, simplifica o especialista. Tem metabolismo próprio e não necessita de parasitar uma célula para sobreviver.
“Temos mais bactérias no nosso corpo do que células do próprio corpo”, sublinha o médico. “Nós somos uma espécie de cultura bacteriana ambulante e a maior parte das bactérias não tem problema absolutamente nenhum. Vivem connosco em perfeito equilíbrio”. Para sobreviverem e se replicarem, só precisam de estar num meio onde tenham nutrientes à disposição.
Já os vírus “são entidades que se podem considerar no limiar da vida”, refere Celso Cunha, virologista e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Não têm características fundamentais que associamos à vida, como o metabolismo próprio, e são descritos como “parasitas intracelulares obrigatórios” porque só se conseguem multiplicar dentro de células vivas.
De forma mais elaborada, os vírus são ácidos nucleicos protegidos por camadas de proteínas que têm a função de evitar que o material genético - DNA ou RNA - se degrade por ação exterior. Essa cápsula de proteína tem, por outro lado, a função de promover a entrada do vírus dentro das células, para produzir novas proteínas virais usando a maquinaria da própria célula.
"Um vírus não é mais do que um envelope proteico que tem dentro um livro de instruções”, resume Miguel Abreu. “Eu estou no consultório e alguém me mete um envelope debaixo da porta. Vou ver, tem instruções. Então eu pego nesse bilhete de instruções e em vez de dar consultas começo a fazer bombas para mandar para os gabinetes dos meus colegas”, diz Miguel Abreu, oferecendo uma analogia inesperada para o funcionamento dos vírus.
Graças à sua natureza, os vírus também são capazes de parasitar bactérias. As semelhanças entre uns e outros são limitadas: vírus e bactérias são microscópicos e ambos conseguem provocar doença no corpo humano.
Como nos atacam?
As bactérias “não nos atacam, são oportunistas”, explica o infecciologista Miguel Abreu. Imaginemos que fazemos um corte na pele, órgão que nos protege e acomoda milhões de bactérias: as próprias bactérias que vivem na nossa pele podem entrar na ferida e, devido à brecha na imunidade, multiplicam-se e causam infeção, esclarece o especialista.
Este é, de resto, um dos três tipos de infeções causadas por bactérias, aquele que é causado pelas bactérias que vivem connosco. Como acontece numa infeção urinária, um abcesso dentário ou uma unha encravada. Dá-se uma rutura local da nossa imunidade, que pode ser apenas uma barreira física, frisa Miguel Abreu, e que proporciona a infeção porque “houve violação da nossa fisiologia normal”.
Outro tipo de infeção é aquela causada por uma bactéria que vem de fora, que não vive connosco. “É o caso da gonorreia, por exemplo”, esclarece o médico. “Há um contacto sexual que leva a que essa bactéria, que não faz parte da nossa flora, infete o nosso organismo. E começa a multiplicar-se porque o nosso organismo não está tão habituado a lidar com ela, atinge determinados órgãos e aí surge a infeção”, explica o médico.
Um terceiro grupo de infeções provocadas por bactérias são as chamadas reativações. Acontecem devido à ação de bactérias que “não vivem connosco e que num contacto inicial são controladas pelo nosso sistema imunitário mas que, quando há baixa do sistema imunitário, podem aparecer. O exemplo paradigmático deste caso é a tuberculose”.
E os vírus? Miguel Abreu descreve a multiplicação viral nas células com uma analogia bélica: “É como se os espanhóis nos invadissem, entravam pela Autoeuropa e em vez de fazerem Volkswagen começavam a fazer tanques de guerra para nos atacarem. E cada tanque de guerra entrava noutra Autoeuropa ao lado para fazer o mesmo, conseguindo-se uma evolução exponencial”.
Os vírus têm uma multiplicação rápida e atacam-nos quando conseguem entrar no organismo das mais variadas formas, nomeadamente através da corrente sanguínea, saliva ou inalação. “O vírus do SARS-CoV-2, por exemplo, vai diretamente para as células do sistema respiratório”, refere o virologista Celso Cunha. Porquê? Porque a proteína que faz parte da estrutura do vírus procura a célula à qual se consegue ligar. “A maior parte dos vírus tem recetores específicos que existem em um ou dois tipos de células, ou num órgão. Alguns vírus da hepatite só infetam mesmo células do fígado, os da gripe células do sistema respiratório” e assim por diante.
Causam doença grave?
A resposta é sim, tanto vírus como bactérias causam doenças que poderão ser mais ou menos graves. No caso das bactérias, nem todas são prejudiciais e muitas vivem connosco, conforme já referimos, mas são elas que nos trazem, por exemplo, abcessos, doenças sexualmente transmissíveis, pneumonias, amigdalites, a tuberculose. Já ao nível dos vírus, os respiratórios transmitidos pelo ar são muito comuns, como o influenza, rinovírus ou outros coronavírus sazonais, “convivemos com eles todos os dias”, diz o virologista Celso Cunha.
Mas a gravidade da doença poderá depois depender do grau de imunidade do doente. “Há vírus que são endémicos em muitas regiões do globo, como o vírus da hepatite B. A OMS estima que mais de 400 milhões de pessoas estejam cronicamente infetadas com este vírus, ou seja, têm o vírus há mais de seis meses”, aponta Celso Cunha. Nos países mais desenvolvidos, realça o virologista, temos muitas doenças virais controladas por vacinas ou porque as condições de higiene não são tão favoráveis à propagação viral. “Os rotavírus, por exemplo, estão espalhados por todo o mundo e causam doenças que podem ser graves em crianças, mas são uma preocupação em países com menos renda. É uma infeção que geralmente se trata com hidratação”, explica o virologista.
Miguel Abreu acrescenta que as infeções virais respiratórias, por exemplo, são autolimitadas e normalmente resolvem-se por si ou com imunidade criada por vacinas. Mas Celso Cunha realça que a gravidade das doenças causadas por vírus não pode ser desprezada, recordando os vírus da hepatite B ou C. “Sem tratamento, muitas das pessoas infetadas com estas doenças iam morrer", reforça. “O nosso organismo não consegue lutar com sucesso contra todas as doenças virais”.
Algumas bactérias têm sido também associadas ao avanço de determinados tipos de cancro, bem como alguns vírus. É o caso do Vírus do Papiloma Humano (HPV) que surge ligado ao cancro do colo do útero, ou a hepatite B que surge associada ao cancro do fígado. “Há uma série de vírus com os quais o nossos organismo lida porque estão cá. Mas em muitos casos não consegue lidar com sucesso, daí a necessidade dos antivirais”. E isto leva-nos à próxima questão do nosso artigo.
Como se tratam?
Já sabemos que há uma maneira eficaz de eliminar bactérias: com antibióticos. E estes não são adequados para tratar os vírus, que precisam de antivirais para serem neutralizados.
Falando ainda sobre eliminação da infeção bacteriana, o infecciologista Miguel Abreu antevê um problema que poderá colocar-se a médio prazo, relacionado com a falta de antibióticos novos. “O aparecimento da resistência de bactérias tem sido mais rápido do que o interesse económico de desenvolver novos antibióticos”, lamenta.
Ou seja, corre-se o risco de voltar a uma época pré-Fleming em que não havia defesa contra as doenças causadas por bactérias, tudo porque estamos a deixá-las evoluir sem acompanhar com novas formas de tratamento. É o problema das chamadas superbactérias que são, na realidade, “bactérias super resistentes, resistentes aos medicamentos que temos”, diz o médico.
Com o uso exacerbado dos antibióticos, não só nas prescrições médicas mas também para animais, na pecuária ou na piscicultura, “fazemos com que as bactérias que são naturalmente sensíveis a determinados agentes comecem a ser pressionadas para desenvolverem resistência”. Isto é realidade sobretudo em meio hospitalar, onde a “pressão seletiva com antibióticos é maior”, razão pela qual a probabilidade de contrair infeção provocada por uma bactéria multirresistente é superior durante um internamento num hospital.
E se os antibióticos funcionam destruindo as bactérias ou impedindo a sua multiplicação, os antivirais procuram inibir funções específicas dos vírus, também sem deixar que se repliquem dentro das células.
Miguel Abreu diz que o maior avanço em termos de tratamento de vírus deu-se no VIH/Sida, que se tornou uma doença crónica graças à utilização de várias classes de antivíricos, cada uma dirigida a uma fase da biologia do vírus que está dentro da célula.
“A esmagadora maioria das infeções virais não tem antivíricos”, realça, sendo estes usados sobretudo para tratar doenças crónicas - VIH/Sida, hepatites ou doenças do grupo herpes em doentes imunodeprimidos, transplantados ou com cancros.
“Hoje em dia, com novos fármacos, já se conseguem salvar muitas vidas”, acrescenta o virologista Celso Cunha. “Se é importante desenvolver um antiviral contra o vírus da constipação? Provavelmente não”, reflete. Mas sublinha que as doenças virais não devem ser desvalorizadas, dando precisamente o exemplo das doenças da família do herpes, que podem infetar células do sistema nervoso e se manifestam em momentos de maior debilidade imunitária. “São as chamadas infeções latentes”, indica.
Já no que diz respeito à covid-19, e porque continuamos em pandemia, o infecciologista Miguel Abreu considera que só há necessidade de desenvolver um antiviral neste caso "porque está o mundo todo parado com isto", mas sublinha que o problema do número elevado de contágios se resolve "com a imunidade" que é conferida pela vacina.
Celso Cunha, por seu lado, considera que podemos estar agora "mais otimistas" em relação aos antivirais em desenvolvimento para tratar o SARS-CoV-2, e que estes são importantes sobretudo para os mais idosos, pessoas com doenças graves ou doentes que não podem tomar a vacina. "Estes fármacos podem ter um papel muito importante na redução do risco de morte", sublinha o virologista.