Há mais de dois anos que Portugal se comprometeu a instalar no seu território um sistema de difusão celular que, segundo especialistas em comunicação e emergência, impediria situações como a registada na segunda-feira em que o SMS enviado pela Proteção Civil a apelar à “serenidade de todos” durante o apagão elétrico tenha sido recebido apenas após a energia ter voltado à maior parte das habitações.
O compromisso foi feito em março de 2023 após uma diretiva da União Europeia ter exigido que todos os Estados-Membros tenham um sistema de alerta ao público para transmitir, por telemóvel, informações aos cidadãos sobre emergências tanto a nível nacional como a nível local. Desde aí, ao que a CNN Portugal apurou, o tema tem estado num impasse.
Ao longo do ano de 2023, o governo, na altura liderado por António Costa, lançou no âmbito da Estratégia Nacional para uma Proteção Civil Preventiva 2030, um programa para implementar este sistema que permite a entrega instantânea de mensagens, alcançando todos os números que estejam registados numa torre de comunicações. Nesse seguimento, foi encomendado um estudo à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), à Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) e à Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM).
Esse estudo ficou concluído pouco antes da demissão de Costa após o caso Influencer e incluía vários cenários, nomeadamente a possibilidade desta solução substituir por completo a difusão de mensagens via SMS ou de servir como alternativa complementar. Na altura, segundo fontes apontaram à CNN Portugal, o objetivo era que o processo ficasse finalizado no espaço de dois anos, sendo que ainda era necessário finalizar a negociação com as operadoras de comunicação.
Depois, veio a queda do governo socialista, a precipitação do país para eleições e a tomada de posse de Luís Montenegro. A implementação do sistema de difusão celular ficou, por isso, incompleta e o estudo para a sua aplicação foi incluído na pasta de transição que veio do antigo executivo para o novo social-democrata.
Segundo informações recolhidas junto de fonte oficial do Ministério da Administração Interna, este tema foi avaliado inicialmente, mas o novo secretário de Estado da Proteção Civil encontrou uma série de problemas no estudo já realizado. A noção principal é que “não tinha maturidade” para avançar, até porque requeria análises adicionais sobre os riscos e vantagens face a outros sistemas disponíveis e era “deficitário em termos de fontes de financiamento”.
Assim, ao longo do ano de 2024, o Governo pediu novamente às mesmas entidades que conduziram o estudo inicial - ANEPC; SGMAI e ANACOM - para realizarem um “ponto de situação” e voltarem a avaliar se este sistema era o melhor disponível. Neste momento, contudo, a ordem dada é para “repensar tudo”, já que está em cima da mesa a possibilidade de Portugal vir a aderir ao mecanismo de emergência por satélite Galileu, que só ficará disponível em 2026, mas que poderá suplantar todas as outras opções.
Especialistas alertam: "Sistema criou vulnerabilidades na população"
Os especialistas em comunicações e Proteção Civil ouvidos pela CNN Portugal garantem que o sistema de difusão celular tem uma maior eficácia e permite enviar mensagens em situações de emergência de uma forma mais veloz. Paulo Veríssimo, professor de Ciências da Computação e Diretor do Centro de Computação Resiliente e de Cibersegurança (RC3) da Universidade de Ciência e Tecnologia Rei Abdullah, na Arábia Saudita, refere que este método permite enviar “diretamente mensagens para as células que são o ponto em que todos os telefones contactam”, estando menos condicionado por fragilidades nas redes telefónicas. “Desde que um gerador alimente as estações base que difundem as células, que haja um bocadinho de rede, consegue enviar-se essa mensagem instantaneamente”.
No entanto, garante, a disponibilidade dessas estações está também ao critério dos operadores. “Isto só funciona se se criarem regras para que todo o sistema tenha energia durante o tempo necessário que as autoridades necessitam para perceber o que se passa e para dar as primeiras informações”.
Também João Paulo Saraiva, presidente da APROSOC - Associação da Proteção Civil, afirma que este sistema “mudaria tudo” aquilo que se passou na segunda-feira, uma vez que a mensagem seria recebida imediatamente por quem ainda tinha um pouco de rede telefónica. “A mensagem é simultânea para todos os terminais que tiveram alcance e não fica limitada apenas aos números que estão registados pelo operador, é para todos os números nacionais ou não nacionais que estejam naquela zona”.
Portugal, aliás, já teve a difusão celular “bastante presente quando os telefones serviam-se da rede 2G”, afirma João Paulo Saraiva. “Com o 3G desinvestiu-se nesta opção que nunca foi utilizada para serviços de emergência”. Este método, continua o especialista, é ainda muito mais acessível do que um SMS. “Uma coisa é receber um SMS, que muitas vezes não se dá conta, na difusão celular, atualmente, há a possibilidade de, mesmo que tenha o telefone no silêncio, ele toca como um toque completamente diferente de todos os outros”.
Também o coronel Joaquim Leitão, antigo presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil, reforça que a população que não tinha acesso a um rádio de pilhas, por exemplo, ficou vulnerável durante o espaço de tempo em que a informação das autoridades demorou a chegar aos telemóveis. “Ninguém sabia o que estava a passar e como atuar e se não tiverem esse conhecimento estão vulneráveis”. “Neste momento, o sistema mantém os mesmos problemas que mantinha durante os incêndios de 2017, talvez esteja um bocadinho pior”.