Mais bactérias, novas espécies e outros riscos: como a água do mar mais quente vai afetar a nossa saúde e alimentação - TVI

Mais bactérias, novas espécies e outros riscos: como a água do mar mais quente vai afetar a nossa saúde e alimentação

Algas contaminam praia (Getty Images)

Nos Santos Populares houve quem já notasse que o peixe não era tão grande. É um efeito direto da subida da temperatura do mar, mas as consequências não ficam por aqui

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Doenças, novas espécies animais e mais tempestades. A água do mar está a aquecer de ano para ano e isso vai ter consequências de várias formas, afetando o nosso bem-estar, mas também a saúde e a segurança.

O aumento da temperatura das águas está a provocar um efeito ainda desconhecido, mas que os cientistas já começaram a identificar, faltando perceber qual a dimensão. O professor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) Adriano Bordalo e Sá avisa que a ausência de despistagens regulares pode estar a esconder um problema nas águas portuguesas.

É que o investigador, em conjunto com outros colegas daquele instituto, notou níveis de bactérias nas praias entre Aveiro e Viana do Castelo que são preocupantes. Trata-se de vibrios e aeromonas, como refere à CNN Portugal, sublinhando que estes seres são capazes de causar doenças que não são despistadas.

Bordalo e Sá não tem dúvidas: a presença destas bactérias é maior e é provável que continue a aumentar. Tudo por causa de um fenómeno duplo que é causado pelo aquecimento global: por um lado a água aquece, por outro, com o degelo das calotes polares, há menor salinidade, tornando o mar um ambiente ainda mais propício para estes seres, que estão no seu “habitat natural”.

“A baixa de salinidade é muito favorável a este tipo de bactérias, aos vibrios e aeromonas, que não são fecais. O habitat destes dois tipos [de bactérias] não são os intestinos, mas sim o mar. Também beneficiam de uma pequena subida da temperatura”, afirma o professor universitário.

Um cenário ainda mais preocupante no verão, uma vez que estes organismos “aparecem em grande quantidade na época balnear”, pelo que “o risco para os banhistas também aumenta”. Bordalo e Sá nota que algumas destas bactérias podem conduzir a problemas como infeções que podem evoluir para casos de septicemia, uma infeção generalizada que pode ser fatal. Por isso, mesmo o investigador faz um apelo: “Era importante que as autoridades sanitárias tivessem consciência do risco associado à emergência destes organismos potencialmente patogénicos”. A CNN Portugal questionou a Direção-Geral da Saúde (DGS) sobre o tema, mas aquela autoridade remeteu para a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que não respondeu às questões colocadas até à hora de publicação deste artigo.

Ainda assim o professor do ICBAS sublinha que estas bactérias são quase como uma gota no oceano. “Por cada mililitro de água há pelo menos um milhão de bactérias, e a esmagadora maioria não causa doenças”, vinca.

“O problema são as outras, que são minoritárias, mas que podem causar doenças”, acrescenta, explicando que a infeção por estas bactérias ocorre mais facilmente em pessoas com feridas expostas ou com doenças que afetam o sistema imunitário.

Por isso mesmo, Bordalo e Sá deixa um conselho: “As pessoas que têm feridas expostas devem evitar entrar em contacto com a água. Essas zonas são as que mais facilmente se infetam. O mesmo acontece com pessoas com algum nível de perturbação do sistema imunitário”.

Sobre os resultados da investigação feita na faixa costeira entre Aveiro e Viana do Castelo, o professor do ICBAS deixa reparos à atuação da APA e a da Administração Regional de Saúde do Norte, notando que já começam a aparecer casos, por exemplo em França, de pescadores que desenvolveram problemas de saúde relacionados com bactérias presentes no mar.

“É certo que não se pode fazer tudo, mas a União Europeia foi pela via mais conservadora e não tem capacidades em termos de diretiva para reagir ao novo conhecimento científico", assinala Bordalo e Sá.

Sinal proíbe banhos em praia alemã por causa de algas que provocam doenças (Getty Images)

Sinais a proibir a entrada na água do mar em praias europeias são cada vez mais comuns. As autoridades da Irlanda do Norte mandaram encerrar um conjunto de praias pela presença de cianobactérias, um conjunto de bactérias que também é conhecido como algas azuis-esverdeadas, por causa da sua cor e aspeto.

Para já, toda a população está impedida de entrar no mar e até se pede que exista cuidado com os animais, como os cães. No ano de 2020 houve um caso semelhante numa praia da Alemanha, tendo sido registadas mortes de cães e vários casos de pessoas que desenvolveram sintomas que vão desde a comichão até diarreia ou vómitos.

Outras bactérias como a Staphylococcus aureus Resistente à Meticilina, conhecida como MRSA, que pode provocar uma infeção generalizada e levar a problemas muito graves, também podem ser encontradas no mar.

Também este ano foi feito um alerta para uma das bactérias mais perigosas, do tipo vibrio. Nas praias da Florida a acumulação de Sargaço, que se estendeu por milhares de quilómetros dos areais da América do Norte e Central, criou as condições ideais para a formação de vibrio vulnificus, uma bactéria que muitos chamam de "devoradora de carne" e que pode levar a septicemia.

O Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos refere que muitas das pessoas infetadas com esta bactéria têm de ser submetidas a internamentos nos cuidados intensivos ou passar por amputações. Mas os números norte-americanos dão ainda outra noção da realidade: uma em cada cinco pessoas que tem esta infeção acaba por morrer, normalmente apenas um ou dias depois, uma vez que a bactéria causa fasceíte necrotizante, matando a carne à volta da ferida onde inicialmente entrou.

A recomendação é a mesma de Bordalo e Sá: não vá ao banho se tiver uma ferida ou se tiver alguma condição de imunodeficiência.

Espécies diferentes e consequências na alimentação

Não há ninguém que consuma tanto peixe na Europa como os portugueses. Os dados do Eurostat indicam que o português come, em média, quase 60 quilos de peixe por ano, bem acima dos 46 quilos consumidos em Espanha, o segundo país da lista. Talvez até continuemos a comer mais do que os restantes europeus, mas a quantidade e, sobretudo, a qualidade, vão deteriorar-se.

É isso que diz a bióloga marinha Carolina Madeira, que investiga o tema na Universidade Nova de Lisboa. À CNN Portugal, a especialista indica que o desaparecimento de espécies existentes e o aparecimento de outras novas é uma inevitabilidade, sendo que isso até já se começa a notar. O Centro de Ciências do Mar e a Universidade do Algarve lançaram o projeto Novas Espécies Marinhas (NEMA), que visa precisamente catalogar o aparecimento de espécies que não eram comuns naquela costa, e que podem ser cada vez mais presentes em Portugal.

Falamos de espécies subtropicais como o verme de fogo, uma espécie de minhoca marinha cujo contacto provoca forte irritação na pele, ou o peixe-balão.

Tudo por causa de um fenómeno conhecido como tropicalização. Carolina Madeira refere que é isso que faz com que no sul do país comecemos a ver espécies que eram típicas apenas de regiões tropicais ou subtropicais. Com o aumento da temperatura dos oceanos elas acabaram por migrar para norte, onde encontram condições mais favoráveis. Não será de estranhar, por isso, que algumas destas espécies comecem a ser comuns em toda a costa portuguesa.

Ao mesmo tempo, "as espécies das águas mais frias vão migrar para norte, para fugir do calor", refere a bióloga marinha, falando de peixes como a sardinha, uma das espécies mais consumidas em Portugal, e cuja escassez já se notou em alguns anos, sendo esperado que isso venha a tornar-se mais comum.

"Obviamente que isto vai alterar as populações de peixes como a sardinha ou a dourada. Vamos ter alterações de população", avisa Carolina Madeira, apontando um outro problema que pode acabar por formar uma espécie de ciclo que só agrava ainda mais a presença deste tipo de espécies. É que o calor também vai alterar a forma como os peixes crescem, influenciando a sua alimentação e levando a que cresçam mais rápido, mas fazendo também com que não fiquem tão grandes.

Verme de fogo (Getty Images)

A especialista refere que esse é mesmo o caso da sardinha, que "cresce muito rápido mas não atinge tamanhos maiores". "Há um impacto na reprodução, na fecundidade e na qualidade dos ovos que se desenvolvem, o que obviamente afeta os stocks pesqueiros", acrescenta. Na época dos Santos Populares deste ano o fenómeno nem foi particularmente grave em termos de escassez, mas as queixas sobre o tamanho das sardinhas já se fizeram sentir.

E não é só no tamanho do peixe que as alterações climáticas têm impacto. Carolina Madeira explica que existe uma clara alteração no microbioma dos animais, incluindo no aparecimento de bactérias nestes. A menos que sejam patogénicas, isso não tem influência negativa para a saúde dos seres humanos, mas o benefício do consumo de peixe pode decair. "Podemos estar a ingerir animais com menor qualidade nutricional. Temos estudos a dizer que o ómega 3 está a diminuir, e nós somos consumidores de topo da cadeia alimentar", alerta.

Essa qualidade também é afetada pela alimentação. Uma degradação do ambiente marinho leva a menor qualidade nos ingredientes ingeridos pelos peixes. Não é apenas o plástico presente nos oceanos, mas o aparecimento de organismos tóxicos, como as tais cianobactérias, cuja ocorrência aumenta com uma temperatura da água do mar.

"Na nossa costa espera-se muita ocorrência de ondas de calor. A Península Ibérica é dos locais mais suscetíveis a nível europeu", vinca Carolina Madeira. Um cenário particularmente preocupante para espécies de águas menos profundas, como lagoas costeiras ou estuários, que vão sofrer "impactos mais fortes" das alterações climáticas, afetando depois toda a fauna, uma vez que são zonas de reprodução de peixes. "É ali que se depositam os ovos e as larvas para crescer, e esses são estádios de vida vulneráveis. Pode haver um impedimento e mortalidade em massa das larvas e dos ovos", nota a bióloga marinha.

Apesar dos problemas, Carolina Madeira destaca que as alterações também podem ser oportunidades, nomeadamente com a introdução de espécies que podem ser consumidas e que até aqui não estavam presentes no mar português. O NEMA identificou nos últimos anos o aparecimento de peixes como o rascasso da Madeira ou vários tipos de garoupa.

Para já também é de excluir o aparecimento de espécies potencialmente perigosas, como alforrecas ou medusas mais venenosas ou tubarões brancos. Carolina Madeira indica que é natural que "os predadores vão atrás das presas", mas esse efeito não vai ser sentido diretamente, ainda que possa surgir algum aparecimento "menos comum".

Pesca em Portugal não sai afetada, pelo contrário

As alterações climáticas vão descer a atividade piscatória até 40% em várias zonas do planeta e é nos trópicos que o problema é mais grave. Em Portugal, a plataforma Clima Pesca, que é coordenada pela Universidade do Algarve, indica que a vulnerabilidade do setor das pescas às alterações climáticas é baixa ou moderada. Um dos investigadores do projeto, o biólogo marinho Francisco Leitão, refere à CNN Portugal que há algumas espécies que podem migrar para norte, mas não é esperado que isso se verifique nos peixes mais consumidos no país.

"Avaliámos com um conjunto de peritos a área socioeconómica e, à partida, tirando uma ou duas espécies que poderão ser mais vulneráveis, não detetámos que até meio do século possa haver um impacto muito elevado", sublinha, referindo que a lagosta é uma dessas espécies que podem sofrer consequências.

Mapa de vulnerabilidade do setor das pescas às alterações climáticas (Clima Pesca)

Isso não quer dizer que as espécies não migrem, mas a esmagadora maioria consegue adaptar-se. "Estamos num local privilegiado e resiliente para as espécies, que se adaptaram, têm grande plasticidade", aponta Francisco Leitão, lembrando que grande parte das espécies consumidas na costa portuguesa existem do Mediterrâneo ao Mar do Norte, pelo que a sua capacidade de lidar com alterações de temperatura é grande.

Isso não quer dizer que não existam riscos, avisa o especialista, apontando como consequência primeira a degradação das infraestruturas de pesca, que a subida do nível médio da água do mar vai, com o tempo, causar. "Isso vai afetar a sociedade, nomeadamente a comunidade piscatória, porque alguns portos ou zonas mais baixas podem ficar destruídos e inutilizáveis", reitera.

Francisco Leitão lembra ainda que o fito e o zooplâncton, dos principais alimentos para os peixes, beneficiam de mais calor, o que significa que "a quantidade de comida para os peixes vai aumentar".

Mais tempestades, mas com Portugal a salvo

O aquecimento da água do Atlântico tem feito com que os sistemas meteorológicos se desloquem cada vez mais para norte. É por isso que se diz que Portugal pode vir a ficar com um clima mais parecido com o norte de África.

Tudo por influência da temperatura da água, que está mesmo a aumentar, incluindo no nosso país. Com efeito, o mês de junho deste ano teve a média de temperatura da água mais elevada do século

O professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Filipe Duarte Santos explica à CNN Portugal que a costa portuguesa não é afetada por ciclones tropicais, que são os sistemas que mais alterações vão sofrer com o aquecimento das águas. A Portugal, diz o especialista em Alterações Climáticas, chegam só “os restos dos ciclones tropicais”, como aconteceu com a tempestade Leslie, que, mesmo assim, provocou vários estragos no país.

“Tem-se observado que as trajetórias dos ciclones tropicais originados na zona de Cabo Verde se deslocam para oeste e norte, alguns com latitudes mais elevadas, que até atingem os Açores e podem atingir a costa da Europa Ocidental”, nota o especialista, falando numa clara relação deste movimento com o aumento da temperatura média das águas superficiais do oceano.

O Leslie foi um desses casos, mas é mais uma exceção do que a regra. É que as tempestades caraterísticas da costa portuguesa são extratropicais, sistemas que não sofrem tanta influência do aquecimento das águas.

Filipe Duarte Santos sublinha que “não há nenhuma tendência de aumento da intensidade”, até porque isso não se observa nas latitudes portuguesas, mas sim nas zonas de ciclones tropicais, onde o especialista diz que a frequência de tempestades com categoria 5, o nível mais grave, vai aumentar.

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