“Formaram-se 1300 novos médicos especialistas, mas o Ministério da Saúde não dá sinal de os querer contratar” e “os privados estão a oferecer-lhes trabalho” - TVI

“Formaram-se 1300 novos médicos especialistas, mas o Ministério da Saúde não dá sinal de os querer contratar” e “os privados estão a oferecer-lhes trabalho”

Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos. Foto: DR

O novo bastonário dos médicos avisa que há, entre outros, 28 novos obstetras e 350 médicos de família que podiam ajudar a evitar o caos nos centros de saúde em várias zonas do País e o fecho de maternidades, mas que o Governo não está a mostrar vontade de os colocar todos no setor público. Um alerta feito por Carlos Cortes na longa entrevista que deu à CNN Portugal/TVI, que é dividida em três partes e onde fala dos perigos que se vivem atualmente nos hospitais e dos problemas de saúde mental que estão a afetar muitos profissionais

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São visíveis as dificuldades atuais nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Acha que ainda há solução para o problema? 

Claro que tem de haver solução. E há soluções que estão em cima da mesa. De facto, há um problema do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e reflete-se em várias áreas, sendo que atualmente aquela que tem tido mais impacto, nomeadamente impacto público, é a resposta dos serviços de urgência.

O problema não é geral a todo o SNS?

Há outros focos de preocupação, nomeadamente a questão do atraso das consultas, das listas de espera para as cirurgias, nos cuidados de saúde primários. Nós sabemos que há muita falta de médicos de família em determinadas áreas do país, mas também de outras especialidades.  Portanto, há um problema global do Serviço Nacional de Saúde. Todos os diagnósticos já estão feitos há muito tempo. 

E porque é que não se resolvem? 

São necessárias agora soluções. É preciso implementar. Nós, neste momento, temos uma fórmula diferente de direção de liderança da saúde em Portugal, onde temos o Ministro da Saúde, o Dr. Manuel Pizarro, que está coadjuvado pela Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, que não existia anteriormente, com o Dr. Fernando Araújo.

Acha que esta organização bicéfala faz sentido? A nova Direção Executiva está, de facto, a mudar alguma coisa na saúde em Portugal?

Eu não tenho, à partida, nada contra esta nova formulação de liderança da saúde em Portugal,  em que temos um ministro da Saúde - que efetivamente não é Ministro só do Serviço Nacional de Saúde, é Ministro de toda a saúde.  Portanto, tem que ter aqui uma visão mais global que ultrapassa o próprio SNS - apesar de, obviamente, o SNS continuar a ser a prioridade do Ministério da Saúde. E depois temos a Direção Executiva, que está mais dedicada aos problemas do Serviço Nacional de Saúde.  Esta d

Esta forma não me parece ser uma má opção, mas a verdade é que, passados alguns meses do início das funções do Ministro da Saúde e do Diretor Executivo do SNS não há, até agora, sinais concretos de grandes mudanças, de grandes reformas que o SNS necessita, e , sobretudo, de resolução dos problemas do dia a dia. Se olharmos bem para aquilo que foi feito, não há nenhuma novidade. 

E consegue explicar porque é que não há? 

Aquilo que está a ser feito neste momento, por exemplo, na Ginecologia e Obstetrícia. Sabemos que há um problema muito grave nas maternidades, que explodiu em junho de 2022, e hoje temos, precisamente, as mesmas soluções que tínhamos há praticamente um ano atrás.  E aquilo que foi anunciado pela Direção Executiva foi, precisamente, no sentido de manter essas mesmas soluções.  Agora, colocou-me essa pergunta de saber o porquê e eu não consigo responder. Quem tem de responder são os titulares destes cargos. 

A incapacidade para tomar decisões, ou de fazer acontecer, tem a ver com a resistência dos profissionais ou a resistência do próprio SNS? O que é que leva a que não se consiga fazer as medidas necessárias?

Nós temos lideranças.  Há uma tutela da saúde que tem de ser consequente.  Tem de ser corajosa.  Tem de saber tomar as medidas certas. Estava-me a dizer se havia resistência dos profissionais de saúde…

E não há resistência à mudança?

Não há nenhuma resistência dos profissionais de saúde, porque não há nenhuma medida de fundo concreta.  Até ao dia de hoje, o Ministério da Saúde não apresentou nenhuma reforma concreta do SNS.

Podemos, então, concluir que o ministro da Saúde não é corajoso?

Há um conjunto de medidas avulsas, pontuais. Eu costumo dizer que são pensos rápidos, mas os pensos rápidos não resolvem os problemas de fundo do SNS.  Escondem ou tapam um problema durante algum tempo, muito pouco tempo infelizmente, mas não resolvem o problema de fundo. Eu não sei se o ministro da saúde é corajoso ou não é corajoso, o que eu sei é que, neste momento, as medidas corajosas que são necessárias para o SNS não estão a ser implementadas, nem sequer estão a ser discutidas com os vários parceiros

Que medidas são essas que são urgentes e necessárias e que não estão a ser implementadas?

Em primeiro lugar, medidas de fundo na reestruturação, por exemplo, dos cuidados de saúde primários. Fazer uma avaliação daqueles que são as necessidades do país, existir um planeamento há vários anos das necessidades em recursos humanos, haver planos para combater as falhas de recursos humanos médicos.

É preciso existir também um plano de investimento no SNS, uma reorganização e envolver para essas mudanças os vários parceiros, a Ordem dos Médicos, os médicos, os vários profissionais.  Um exemplo muito concreto, a integração entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares, que já há várias décadas é falada, é pedida, é exigida por todos, nomeadamente pela Ordem dos Médicos.  Até ao dia de hoje ainda não vimos nenhum plano concreto para integrar esses cuidados.  E esta integração é absolutamente fundamental.  A porta de entrada do SNS faz-se, fundamentalmente, através dos cuidados de saúde primários, que tem de ter uma ligação aos hospitais.

E essa ligação entre hospitais e centros de saúde não existe?

Essa ligação é mal feita, essa ligação é difícil, essa aproximação entre estes níveis de cuidados não é feita.  Mas eu podia aqui acrescentar outro problema, que tem a ver com os aspetos sociais, não só de cuidados continuados, mas de pessoas que vivem ou no seu domicílio, pessoas mais idosas, que necessitam do apoio em termos de cuidados de saúde, ou os residentes dos lares, que nós sabemos que  tem sido notícia ultimamente de muitos problemas  que existem nessas áreas.  Tem que haver uma ligação efetiva, uma única saúde em Portugal.

Mas de que forma é que a Ordem acha que se deve abordar o problema dos médicos de família que há mais de três décadas se tenta resolver.  Não há médicos de família, ou pelo menos, não há para toda a gente. Como é que se resolve esse problema? 

Em primeiro lugar, é preciso criar condições para os médicos de família poderem exercer adequadamente a sua profissão, para poderem tratar com condições de qualidade e de segurança os seus utentes.  Eu tive a oportunidade de visitar muitos centros de saúde deste país.

Aqui, bem perto, visitei um centro de saúde num prédio de três pisos em que não tinha elevador. Portanto, os idosos eram atendidos no primeiro piso, as pessoas de média idade no segundo piso e os mais jovens no terceiro piso.  Isso não são condições dignas para ninguém. Nem para os utentes, para as pessoas, para os doentes, nem para os profissionais de saúde poderem desenvolver a sua atividade.  É preciso haver um investimento nessa área. 

Como é que deve ser feito esse investimento?

Por exemplo, e aqui algo de muito concreto e recente, formaram-se neste momento, no final do mês de março, à volta de 350 – 355 médicos de família, especialistas que deveriam, imediatamente, ter oportunidade de poder concorrer a vagas no Serviço Nacional de Saúde.  Ora, curiosamente, o Ministério da Saúde ainda não deu nenhuma indicação, não mostrou vontade a esses médicos que queria contratá-los nem sequer desencadeou o processo de contratação de abertura de vagas para o Serviço Nacional de Saúde, para esses médicos poderem ser colocados.

Estamos a falar de médicos de família, mas posso referir exatamente à mesma situação para todas as especialidades.

 Ou seja, há um mapa de vagas para publicar por parte do Ministério da Saúde?

Temos no País, desde dia 1 de abril, uma vez que em 31 março acabou a época de exames, mais 1.300 novos médicos especialistas que se formaram e são necessários para o Serviço Nacional de Saúde. Mas o Ministério da Saúde não dá sinal de os querer contratar. Não deu indicação nem desencadeia o processo de colocação desses médicos, abrindo as vagas onde são necessários.  Por exemplo, na Medicina Geral e Familiar. 

A Obstetrícia tem sido dada como um dos casos graves.  O que é que se passa neste momento? 

Há falta, obviamente, de recursos humanos dentro do Serviço Nacional de Saúde.  E também terminaram agora nesta fase 28 jovens médicos especialistas de Ginecologia e Obstetrícia.  Estes 28 médicos são absolutamente fundamentais para os hospitais poderem funcionar.  Para muitos hospitais não fecharem as maternidades, não fecharem o atendimento urgente, como infelizmente está a acontecer.  E, até ao dia de hoje, pelo menos que eu saiba, o Ministério da Saúde não mostrou nenhum interesse em contratar esses médicos.

E esses médicos já deviam ter sido contactados, já devia ter saído um mapa de vagas no País para eles poderem tratar da sua vida, escolherem o seu hospital, onde há carência, onde há necessidade, e terem o seu local de trabalho.

E isso tem a ver com uma questão financeira? O que é que leva ao Ministério a não querer? 

O Ministério da Saúde é que vai ter de explicar porque é que não abre essas vagas.

E isto é preocupante? Esta falta de abertura de vagas pode pôr em causa o funcionamento de algumas especialidades? 

Eu vou passar a explicar exatamente aquilo que está a acontecer neste momento.  Na Medicina Geral e Familiar é muito fácil o Ministério da Saúde saber em que locais tem de abrir vagas. É nos locais carenciados, onde há utentes sem médico de família. E nesses locais tem de abrir imediatamente uma vaga para os médicos que querem ocupar essa vaga o poderem fazer.  E o Ministério da Saúde não tem feito. Mas quem não se esqueceu de o fazer é o setor privado.

O sector privado é que vai ficar com esses médicos?

Neste momento os hospitais privados, as clínicas, os vários intervenientes nesta área estão a contratar esses médicos, estão a contactar esses médicos para lhes oferecer um posto de trabalho, uma vaga para eles poderem trabalhar.

Há ideia de quantos médicos dos que estão inscritos na OM já trabalham no setor privado hoje em dia?

Eu não lhe posso dar dados concretos porque não os tenho.  A ordem dos médicos tem os médicos inscritos, mas não tem informação do seu local de trabalho. Posso dizer que são duas ou três dezenas de milhares de médicos que trabalham não em exclusividade, mas que também trabalham no setor privado.  No setor público, estão neste momento, mais de 30 mil profissionais a desempenhar as suas funções no Serviço Nacional de Saúde.

Faz sentido os médicos poderem trabalhar ao mesmo tempo nos dois setores?

O Serviço Nacional de Saúde tem de ter capacidade de fixação e de manutenção dos médicos no setor público. E não o tem feito.

E é isso leva muitos médicos a trocarem o SNS pelo privado?

Os médicos estão a sair do SNS, outros vão para a imigração e há casos, e não são assim tão poucos, infelizmente, de médicos desmotivados, descontentes com as condições que têm abandonado a profissão médica.

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