À terceira, foi de vez. Terá sido aí que o cardeal argentino Jorge Bergoglio, o atual Papa Francisco, decidiu estender a passadeira vermelha para a eleição do alemão Joseph Ratzinger. Sucedendo ao polaco João Paulo II, de quem fora unha com carne.
Na hora da sua saída, quando renunciou a 28 de fevereiro de 2013, a história veio à tona. Marco Tosatti, jornalista italiano do La Stampa, com base em “fonte credível”, publicou que, no conclave de 2005, Bergoglio recolhera 40 votos na terceira votação. Uma minoria de bloqueio, suficiente para que Ratzinger não conseguisse os dois terços dos 115 cardeais presentes que o tornariam logo Papa.
Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, “pediu aos seus apoiantes que se abstivessem de elegê-lo”. Tê-lo-á feito “quase em lágrimas”, segundo escreveu Tosatti. E se dificilmente se pode comprovar o que se passa num conclave - porque revelar o que aí se passa pode até custar a excomunhão a um cardeal -, outros relatos coincidem e atribuem 84 votos finais a Joseph Ratzinger.
Na tarde de 19 de abril de 2005, com o solidéu branco na cabeça, apresentou-se na varanda da Basílica de São Pedro. Como Bento XVI, o novo Papa.
Nazismo
Ordenado Papa, após 23 anos como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – a sucessão na Igreja Católica da Inquisição medieval – o passado de Joseph Ratzinger começou a ser dissecado. Desde logo, o seu crescimento numa Alemanha humilhada e em recessão após a I Guerra Mundial, palco propício para o surgimento do nacional-socialismo nazi.
Joseph foi o terceiro filho do casal Ratzinger. O pai era polícia. A mãe, doméstica, por vezes trabalhava fora como cozinheira. Em Marktl am Inn, uma pequena vila na Baviera, quando nasceu, a 16 de abril de 1927, a família incluía também os irmãos Maria e Georg.
Rezam as crónicas que o pai Joseph Ratzinger era um oposicionista das ideias nacionais-socialistas, mesmo quando, a 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha.
Pela Páscoa, em 1939, Joseph entrou no seminário em Traunstein, onde, meses depois, vê a Alemanha iniciar uma nova guerra. Então, a obrigatória incorporação na Juventude Hitleriana torna-se uma inevitabilidade, quando tinha 14 anos.
São tempos de guerra e em 1941, os irmãos Georg e Joseph Ratzinger deixam o seminário. Dois anos depois, com 16, é forçosamente incorporado no exército alemão. Fica numa divisão da Wehrmacht encarregada da bateria de defesa antiaérea numa fábrica da BMW nos arredores de Munique.
Ratzinger é dispensado da tropa em 10 de setembro de 1944. Vai para um campo de trabalho na fronteira da Áustria com a Hungria e a Checoslováquia. Daí, consta que terá desertado. Com o fim de guerra e a rendição alemã, a 8 de maio de 1945, fica num campo de prisioneiros controlado pelas tropas norte-americanas em Bad Aibling, nos arredores de Munique.
Depois, Joseph e o irmão Georg regressam ao seminário. Serão ambos ordenados padres a 29 de junho de 1951, pelo arcebispo de Munique. Torna-se professor de Filosofia e Teologia e distancia-se claramente das tendências marxistas dos movimentos estudantis que irrompem na Europa na década de 60.
Irá participar no Concílio Vaticano II (1962 – 1965), como peritus, especialista em Teologia, do Cardeal Joseph Frings, de Colónia.
Benedicto
Joseph Ratzinger foi nomeado arcebispo de Munique e Frisinga a 25 de março de 1977, pelo Papa Paulo VI. Subiu a cardeal no consistório de 27 de junho de 1977. Quatro anos depois, seria nomeado como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa João Paulo II.
Neste cargo, poderoso, cimentou uma forte amizade com o Papa polaco Karol Wojtyła, comungando das suas posições conservadoras: contra os preservativos, a homossexualidade, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, o aborto, a eutanásia…
Coube então a Ratzinger “expurgar” a Igreja Católica de posturas mais revolucionárias e menos ortodoxas. Um dos casos mais emblemáticos foi a imposição de voto de silêncio ao frade brasileiro Leonardo Boff, um dos apóstolos da Teologia da Libertação.
“Enquanto Ratzinger viver, não é bom que Francisco me receba em Roma", foi a confissão feita por Boff, em 2013, à página em português do jornal espanhol El Mundo. Ostracizado desde 1985, o ex-frade revelou mesmo que trocava correspondência com o atual Papa, em quem via “um projeto” de “uma igreja pobre, humilde, despojada do poder, que dialoga com o povo”. Ao contrário de Ratzinger, claro está.
A 2 de abril de 2005, João Paulo II morreu. Dias depois, num dos mais rápidos conclaves da história da Igreja, Ratzinger foi nomeado Papa. Tinha já 78 anos e desde logo começaram as apostas sobre quem seria o seu sucessor.
“Amados Irmãos e Irmãs. Depois do grande Papa João Paulo II, os senhores cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações. Na alegria do Senhor ressuscitado, confiantes na sua ajuda permanente, vamos em frente. O Senhor ajudar-nos-á. Maria, sua Mãe Santíssima, está connosco. Obrigado!”, foram as primeiras palavras aos fiéis de Joseph Ratzinger, que escolheu o nome latino Benedicto.
Papa Ratzi
Ratzinger tornou-se Benedicto. Do latim para Português, Bento, o XVI.º, sucedendo no nome ao italiano Giacomo della Chiesa, Bento XV, Papa entre 1914 e 1922, que ficou conhecido pelas tentativas de paz numa Europa envolvida na I Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.
Bento XV terá sido uma inspiração para Ratzinger, na escolha do nome. Outra, terá sido São Bento, fundador da Ordem Beneditina, nomeado padroeiro da Europa pelo Papa Paulo VI, em 1964.
Mas o novo nome de Ratzinger não fez esquecer alcunhas pelas quais era normalmente nomeado. Logo após a eleição, os tabloides ingleses, sobretudo, apelidaram-no de “Papa Ratzi”. E ainda “Rottweiler de Deus”, “Cardeal Panzer”, designações que, segundo o Daily Mirror, Bento conhecia e sempre achara “engraçadas”. Incluindo até, “Joe the Rat”.
Coisas sérias viriam, contudo, de Londres, pouco depois da nomeação de Bento XVI. Em 2006, o reputado programa “Panorama” da BBC transmitia a reportagem “Sexo, Crimes e o Vaticano”. O cardeal Ratzinger era responsabilizado pelo encobrimento durante mais de vinte anos de casos de abusos sexuais contra menores cometidos por padres católicos.
A reportagem divulgava um documento escrito originalmente em latim e distribuído aos bispos católicos, em 1962. No Crimen Sollicitationis (Crime da Solicitação) instruíam-se os clérigos em como lidar com casos de pedofilia, através de um juramento, em que a vítima, o acusado e eventuais testemunhas se comprometiam a manter sigilo absoluto sobre qualquer caso.
Joseph Ratzinger fora, desde 1981, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Seria, por isso, segundo a reportagem, o responsável maior por zelar pela obediência aos termos do documento secreto.
Calvário
Praticamente desvanecidas quaisquer simpatias na juventude pela ideologia nazi, uma visita em 2006 ao campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, voltou a chamuscar a imagem do Papa. Bento XVI atribuiu a responsabilidade do Holocausto a “um grupo de criminosos” que “abusaram” do povo alemão.
As palavras caíram mal, sobretudo, junto de líderes judaicos que as ouviram com “perplexidade”, com o grande rabino de Roma, Riccardo di Segni, a considerar “problemático” o discurso do Papa, num local onde foram exterminados mais de um milhão de pessoas, na sua maioria judeus.
Depois dos hebraicos, ainda no mesmo ano, Bento XVI provocou a revolta dos muçulmanos, numa conferência em Ratisbona, na Alemanha, com uma simples citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo:
“Mostra-me então o que Maomé trouxe de novo. Não encontrarás senão coisas más e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava”.
Dois meses depois, Bento XVI rezou na Mesquita Azul, a maior de Istambul, uma deslocação introduzida à última hora no programa dessa viagem do Papa à Turquia, de forma a ser entendida como um gesto de desagravo. No mínimo, pelo mesmo, visitaria Israel em 2009.
Perdões
Mas as controvérsias religiosas continuaram a manchar o pontificado de Bento XVI. O ano de 2009 trouxe-lhe mais, quando foi removida a excomunhão latae sententiae a quatro bispos ordenados pelo francês Marcel Lefebvre, criador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e opositor das reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II.
A Secretaria de Estado do Vaticano apressou-se a frisar que esses "quatro bispos, apesar de terem sido libertados da pena de excomunhão”, continuavam “sem uma função canónica na Igreja”, não exercendo “nela qualquer ministério”. Mas entre os reintegrados estava o inglês Richard Williamson, que sempre negara o Holocausto nazi. Especialmente, a existência de câmaras de gás e a morte de seis milhões de judeus.
A posição, dúbia para muitos, de Pio XII durante a II Guerra Mundial também viria a ensombrar o pontificado de Bento XVI. Ao proclamá-lo “venerável” voltou a ser alvo do desagrado das comunidades judaicas, que sempre criticaram o silêncio desse Papa durante o Holocausto.
Conservador e até retrógrado foram adjetivos que Bento XVI carregou durante o seu papado e dos quais nunca se conseguiu despir. Até ao recuperar trajes de outros tempos, como os múleos vermelhos que passou a calçar, o camauro que lhe cobria a cabeça e a “mozzetta”, uma capa também debruada a pele de arminho. Daí até surgiu um coro de críticas com petições à mistura, da parte de grupos defensores dos animais.
Pedofilia
Em maio, no ano de 2010, Bento XVI veio a Fátima. Foi o terceiro Papa a fazê-lo, depois de Paulo VI e de João Paulo II, mas sem conseguir a adesão popular que o antecessor tinha conquistado.
Joseph Ratzinger suportava então um pontificado marcado desde o início pela “continuidade pesada” herdada do seu antecessor João Paulo II, nas palavras do professor francês Philippe Portier, especialista em Estudos Religiosos, na Sorbonne, em Paris.
Mas no início desse ano, o peso da divulgação de mais casos de pedofilia no seio da Igreja tornou-se esmagador para o Papa, que voltava a ser acusado de ter encoberto e protegido elementos e altas figuras do clero, quando dirigia a Congregação para a Doutrina da Fé.
Surgiram casos em catadupa e surgiram intenções, especialmente de dois escritores britânicos, Richard Dawkins e Christopher Hitchens, de processar criminalmente Ratzinger. Algo que, mesmo na hora da sua renúncia, voltou à ordem do dia quando o advogado norte-americano Jeff Anderson, representando centenas de vítimas de abusos sexuais cometidos por sacerdotes católicos, considerou que o Papa e o cardeal mexicano Norberto Rivera Carrera “merecem estar na prisão” pelo encobrimento de casos de pedofilia.
Abusos sexuais e maus tratos a menores bateriam também à porta do Papa, ao ser denunciado que mais de 500 crianças os sofreram na pele, quando estiveram no mais famoso coro infantil da Alemanha. Sucede que Georg, irmão mais velho de Joseph Ratzinger, fora o responsável pelos “pardais da catedral de Ratisbona”, entre 1964 e 1994.
Vatileaks
Na hora da sua sorte, a 11 de fevereiro de 2013, quando anunciou a intenção de renunciar, o jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano olhou para Bento XVI e viu-o como “um pastor rodeado por lobos".
Ratzinger estava perto de cumprir 86 anos e os últimos tempos não o haviam poupado. No ano anterior, 2012, o livro “Sua Santidade, as Cartas Secretas de Bento XVI”, do jornalista Gianluigi Nuzzi, expusera um enleio de guerras de poder, corrupção, nepotismo e pouca transparência nas finanças do Vaticano.
A culpa seria do mordomo. Paolo Gabriele era assistente do Papa desde 2006. Foi considerado responsável pela divulgação de muitos documentos, no que ficou conhecido como caso Vatileaks. Seria condenado em tribunal, mas Bento XVI perdoou-o e concedeu-lhe o indulto.
Mas o momento da detenção do mordomo Gabriele coincidiu com a demissão de Ettore Gotti Tedeschi, nomeado três anos antes por Bento XVI para presidir ao Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Numa altura em que a instituição voltava a ser questionada pela sua postura face à lavagem de dinheiro.
Bento XVI terá decidido renunciar ao papado após as visitas ao México e a Cuba, em 2012. No ano seguinte, a 11 de fevereiro, num consistório convocado para chancelar três canonizações, comunicou em latim aos cardeais, a abdicação. Algo que não era visto na Igreja desde Gregório XII, em 1415.
“…No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro”.
Bento XVI passou a Papa emérito. Desde então, viveu no convento de freiras Mater Ecclesiae, a poucas centenas de metros do seu sucessor, Francisco. Resguardado da praça pública, em fevereiro de 2018, enviou uma carta ao jornal Corriere della Sera, revelando algo de si: "Posso dizer que, no lento declínio das forças físicas, estou interiormente em peregrinação para Casa".
Já em 2022, Bento XVI pediu perdão por eventuais "erros graves" que tenha cometido, mas recusou ter praticado algum delito, quando uma investigação alemã da Igreja Católica apontou falhas à forma como geriu quatro casos de abuso sexual na arquidiocese de Munique enquanto era arcebispo da cidade.
“Já tive grandes responsabilidades dentro da Igreja Católica. Sinto uma grande dor pelos abusos e erros cometidos durante o meu mandato”, lia-se num comunicado emitido pelo Vaticano.