Há quem lhe chame "o meu melhor amigo". Portugal é o terceiro país do mundo com maior consumo de benzodiazepinas - TVI

Há quem lhe chame "o meu melhor amigo". Portugal é o terceiro país do mundo com maior consumo de benzodiazepinas

Benzodiazepina (Pexels)

Relatório das Nações Unidas coloca Portugal entre os países com maior consumo de psicotrópicos. Psiquiatras dizem que os fármacos são importantes em casos agudos, mas alertam para riscos quando a toma é excessiva

Portugal está entre os três países com as maiores taxas de consumo de benzodiazepina, segundo o documento Substâncias Psicotrópicas - Estatísticas para 2020 e Avaliações Anuais Médicas e Requisitos Científicos para 2022, que faz parte do relatório do Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos (INCB, na sigla inglesa de International Narcotics Control Board) das Nações Unidas, divulgado no início de março.

Com o consumo medido em S-DDD (termo usado no relatório para dose diária definida para fins estatísticos) por 1.000 habitantes por dia, Espanha surge em primeiro lugar (110 S-DDD), seguindo-se a Bélgica (84 S-DDD) e Portugal (80 S-DDD). Isto quer dizer que no nosso país, em 2020, consumiram-se quase 80 doses diárias de benzodiazepina por cada mil habitantes, o terceiro valor mais elevado em todo o mundo. 

A benzodiazepina é uma classe de fármacos psicotrópicos usada como ansiolítico, sedativo, hipnótico ou relaxante muscular. São psicofármacos “que agem no sistema nervoso central e que são frequentemente prescritos para tratar a depressão, a ansiedade, a insónia, entre outros”, esclarece a médica psiquiatra Maria Moreno.

De acordo com os mais recentes dados do Infarmed, em média, venderam-se 28.036 embalagens diárias de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos em 2020, valor que subiu para 29.444 no ano seguinte.

Estes números são preocupantes e obviamente indicam um elevado consumo de benzodiazepinas em Portugal”, lamenta Maria Moreno.

A especialista alerta que o uso prolongado deste tipo de fármacos ou em elevadas quantidades pode resultar em “tolerância, dependência e múltiplos efeitos secundários indesejáveis”, em que, exemplifica, “a pessoa precisa de doses cada vez mais altas para obter o mesmo efeito ou sente-se incapaz de parar de tomar a medicação, apesar do impacto negativo que isso lhe traz”.

Gustavo Jesus, psiquiatra e diretor clínico da PIN - Partners in Neuroscience, olha para estes números como espelho do estado da saúde mental em Portugal. “Pode haver uma correleção”, diz. No entanto, apressa-se a explicar que “não sabemos se o consumo apresentado no relatório é crónico ou adequado, no sentido em que é feito num período controlado”, de oito a 12 semanas, incluindo-se aqui já a fase de ‘desmame’.

O que sabemos realmente é que Portugal é dos países do mundo com maiores taxas de ansiedade”, adianta o também vogal da direção da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, referindo-se ao estudo levado a cabo pelos médicos Miguel Xavier e Caldas Almeida.

“Por outro lado, também sabemos que com a pandemia houve a nível mundial um aumento das perturbações de ansiedade”, continua, explicando que isso pode estar na origem do aumento do consumo deste tipo de psicofármacos, mas lamenta que não haja informação disponível em Portugal para consulta e análise, não sendo, por isso, possível perceber se o elevado consumo resulta numa má toma dos fármacos.

De acordo com o Eurostat, em 2019, 7,2% dos cidadãos da União Europeia relataram ter depressão crónica. Portugal (12,2%) surge em primeiro lugar, seguido da Suécia (11,7%), Alemanha e Croácia (ambos 11,6%). Mas o problema não é de agora: a depressão motivou uma em cada cinco hospitalizações por doença mental a nível nacional, entre 2008 e 2015, revela um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, do Cintesis e do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa.

Já em tempos de pandemia, “foram relatados aumentos de 25% na prevalência de ansiedade e depressão globalmente. Em Portugal, estudos realizados durante o confinamento revelaram um aumento da prevalência destas perturbações”, lê-se no estudo publicado no ano passado na revista European Journal of Public Health.

As benzodiazepinas mais consumidas em Portugal

Diz o documento do Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos das Nações Unidas que Portugal surge entre os países mais consumidores de alprazolam, diazepam, lorazepam e midazolam, quatro dos oito psicofármacos analisados.

Olhando para os números apresentados no relatório, no caso do alprazolam, que é uma benzodiazepina que estimula a ação do ácido gama-aminobutírico usada no tratamento da ansiedade, Portugal é o terceiro país do mundo (o primeiro da Europa) com maior consumo (27,8 S-DDD), ficando apenas atrás da Hungria (57,1 S-DDD) e do Uruguai (37,9 S-DDD). 

Já o diazepam, um ansiolítico benzodiazepínico com efeito calmante, Espanha aparece no primeiro lugar de consumo, seguindo-se Portugal e Montenegro, que fecham o pódio dos países com maiores taxas de consumo, cada uma com mais de 10 S-DDD, bem acima da média global, que é de 2,19 S-DDD.

Quanto ao lorazepam, igualmente com efeito calmante, o consumo de mais de 10 S-DDD foi relatado por Espanha, Portugal, Montenegro, Bélgica, Lituânia, Luxemburgo e Malta (em ordem decrescente por quantidade consumida), diz o relatório, que volta a colocar Portugal entre os mais usados.

A toma de midazolam, medicamento benzodiazepínico usado para anestesia, sedação para procedimentos e dificuldade para dormir, também coloca Portugal na lista dos mais consumidores. Em 2021, o consumo global foi de 46,7 S-DDD, “um aumento de 19% em relação a 2020 e 52% em relação a 2019”. Dos 82 países que enviaram dados em 2021, o consumo foi mais elevado nos seguintes: Brasil (6,5 S-DDD), Israel (2,6 S-DDD), Uruguai (2,6 S-DDD), São Martinho (Países Baixos, 2,5 S-DDD), Chile (2,5 S-DDD), Portugal (2,3 S-DDD) e El Salvador (2,2 S-DDD). Portugal é, assim, a segunda região da Europa com maior consumo deste medicamento.

Apesar de pertencerem à mesma classe de medicamentos, “as diferentes benzodiazepinas variam” em vários aspetos, “como a sua potência ou duração de ação”, explica a psiquiatra Maria Moreno. No entanto, alerta a médica, “o consumo elevado destes medicamentos ou por demasiado tempo pode ser problemático, pois eles são altamente aditivos”.

São "o meu melhor amigo", mas consumo prolongado traz efeitos “indesejáveis”

Os psiquiatras Maria Moreno e Gustavo Jesus explicam que há espaço para a toma de benzodiazepinas e que, em alguns casos, são, de facto, o fármaco que mais ajuda a pessoa a lidar com o sofrimento. Mas ambos também defendem que a toma deve ser monitorizada e limitada no tempo.

As benzodiazepinas são uma classe farmacológica que continua a ter lugar no tratamento, há a ideia que são más e que têm de ser eliminadas, mas têm a sua função. São tratamentos que, em regra, não devem ser crónicos, devem ser usados no máximo entre oito a 12 semanas, incluindo aqui a redução”, diz Gustavo Jesus, que salienta que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, estes psicofármacos não substituem a psicoterapia, nem vice-versa.

“Imagine que morre alguém ou a pessoa perde o emprego. Nestes casos, os níveis de ansiedade sobem, faz sentido a benzodiazepina a curto prazo e depois é para retirar, mas não substitui a psicoterapia, que é muito importante. O apoio psicológico pode ser dado numa fase aguda para mitigar os sintomas, mas nem sempre é suficiente, os sentimentos de sofrimento são tão graves que pode ser necessária a toma de benzodiazepinas”, explica o médico, dizendo que, por exemplo, em casos crónicos são os antidepressivos, com psicoterapia, por exemplo, a opção mais indicada.

As benzodiazepinas destacam-se pelos seus efeitos imediatos e, numa situação aguda, é o que se pretende. Mas isso é um problema quando a toma é feita de forma incorreta e prolongada, pode causar habituação e a pessoa pode deixar de saber não estar sob o efeito deste psicotrópico.

“O meu melhor amigo”, “o único remédio que funciona”, “este é o único que não posso deixar”. Estas são algumas das frases que a psiquiatra Maria Moreno ouve em consulta, com os pacientes a classificar as benzodiazepinas como “a insuperável solução, o raro fármaco que cura tudo, de imediato e sem maleitas aparentes”. Mas isso está longe de ser verdade, sobretudo quando o uso é prolongado, seja em tempo ou em quantidade. 

“As benzodiazepinas são medicamentos que podem ser muito úteis, mas apresentam riscos, especialmente quando são usadas por longos períodos de tempo, em doses elevadas ou sem indicação clínica”, alerta a médica. Entre os “múltiplos efeitos secundários indesejáveis”, estão a “ansiedade, alterações das fases do sono, cansaço, confusão, problemas de memória, alterações cognitivas e alterações do equilíbrio e coordenação motora”. 

Estes efeitos secundários existem e são reais”, atira Maria Moreno, que lamenta que “a má gestão de situações clínicas como a depressão ou a ansiedade com prescrição excessiva destes medicamentos, ao invés de outros, mais eficazes e com menos efeitos secundários, e a fácil aquisição destes medicamentos, mesmo quando não existe prescrição médica, estão entre os principais responsáveis por trás destes números”.

A psiquiatra salienta que “é essencial que as autoridades de saúde em Portugal trabalhem em conjunto com profissionais de saúde e doentes para abordar o problema do elevado consumo de benzodiazepinas”, defendendo que “os profissionais de saúde devem ser incentivados a prescrever benzodiazepinas apenas quando necessário, em doses mais baixas e por períodos mais curtos”. É preciso, conclui a médica, “informar, alertar e regulamentar”.

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