ASAE está no terreno à "caça" da revenda dos bilhetes para Coldplay, mas o caso é complexo e pode acabar em tribunal - TVI

ASAE está no terreno à "caça" da revenda dos bilhetes para Coldplay, mas o caso é complexo e pode acabar em tribunal

Chris Martin, dos Coldplay (Rick Scuteri/Invision/AP)

O problema levantou-se com os bilhetes para os Coldplay e pode repetir-se agora com a compra das entradas para ver o cantor Harry Styles. Alguns advogados têm defendido que não há crime de especulação se a transação for feita de livre vontade, mas a ASAE está no terreno - e em 2018 houve quem acabasse a fazer trabalho comunitário por vender bilhetes para os U2 acima do preço

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Revender um bilhete para um espetáculo acima do preço de compra é ou não um crime de especulação? A ASAE garante que sim e, à CNN Portugal, fonte oficial desta autoridade adianta que, em relação ao concerto dos Coldplay – um dos eventos com maior procura de bilhetes de sempre -, tem neste momento “três dezenas de denúncias sobre especulação” e inspetores “no terreno” a tentar detetar mais situações que considerem irregulares. No entanto, a questão não é pacífica, e, como noticiou a CNN Portugal, há vários advogados que alegam que nesta revenda de bilhetes não há aquele crime.

Por isso, e devido a diferentes interpretações da lei, muitos dos casos só se podem resolver em tribunal, com o juiz a decidir se há ou não especulação ou outro delito, segundo explica à CNN um magistrado. O mesmo alega o advogado João Massano, explicando que “revenda dos bilhetes a preços mais elevados do que os de compra é um assunto mais complexo do que parece, por se tratar de uma questão interpretativa” da lei, que pode apenas ficar resolvida em tribunal. Foi o que aconteceu, aliás, num concerto dos U2, em 2018, quando foram detidas 10 pessoas em flagrante delito. Os arguidos foram presentes a tribunal, tendo sido “aplicadas suspensões provisórias de processo [medida pré-sentencial que visa evitar o prosseguimento do processo penal até à fase de julgamento], mediante injunções pecuniárias com entrega de valores a IPSS, ou prestação de trabalho comunitário”, segundo um comunicado emitido na altura pela ASAE.

Segundo esta polícia criminal, todas as pessoas que detém por suspeita de especulação acabam por ser “condenadas”. No entanto, acrescenta fonte da mesma autoridade, os arguidos não seguem para julgamento por se conseguirem fazer acordos para a aplicação de “medidas condenatórias, que variam entre prestação de trabalho comunitário e entrega de dinheiro a instituições de solidariedade”. Foi o que sucedeu com os detidos por especulação dos bilhetes para U2, ou num caso da revenda de um bilhete para o concerto da Madonna, em que ficou provada a ação na sua forma dolosa, como se lê no acórdão.

Esta sexta-feira, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) anunciou a detenção de duas pessoas, em flagrante delito, pelo crime de especulação com a venda de bilhetes para os concertos dos Coldplay, que se realizam no próximo ano em Coimbra. Das duas pessoas detidas, um dos arguidos foi já presente a tribunal, onde ficou decidida a “aplicação de suspensão provisória do processo, tendo sido condenado com uma pena de prisão suspensa de seis meses e 500 euros de multa”.

Mas se para a ASAE o que se passa com os bilhetes dos Coldplay pode ser especulação, os advogados contatados pela CNN Portugal mantêm a posição assumida de que não há lugar a esse crime, por a pessoa estar voluntariamente a comprar acima do preço. “Nos bilhetes não há nenhum tabelamento do Governo relativamente aos preços de venda, nem poderia haver”, diz João Massano, sublinhando que a sua posição é dada como advogado e não presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (AO).

Mesmo perante os preços que circulam online para o concerto dos Coldplay – repetindo-se o que aconteceu com os U2 em Portugal e corre o risco de suceder agora com a venda dos bilhetes para o concerto de Harry Styles em Lisboa -, João Massano diz não encontrar ilegalidade nenhuma se a compra é feita por livre e espontânea vontade e se a pessoa está consciente do preço. “Não vejo mal se alguém pagar isso sem ser coagido, não é por ter um valor ridículo que tem uma ação ilegal”, explica. Segundo o advogado, “desde que não haja dolo para enganar, ou estratagema, se for de livre vontade”, não há crime de especulação ou de burla - algo que poderia acontecer se, por exemplo, fosse um revendedor oficial a fazê-lo ou se em causa estivesse a tentativa de venda de um bilhete falso ou inválido. “Se fosse a tribunal a defender alguém [nesta situação] era isto o que iria alegar”, nota.

Mas o tema não parece ser consensual. A própria Everything is New, promotora do concerto dos Coldplay e também de Harry Styles, já recorreu às redes sociais para alertar que “a especulação é um crime punido desde 1984, por legislação penal secundária, concretamente pelo artigo 35º. do Decreto-lei nº. 28/4, de 20 de janeiro (com as alterações introduzidas até ao Decreto-lei nº. 9/2021, de 29 de janeiro), à qual o legislador atribui especial gravidade já que a tentativa é também punida”. E também a Deco e ASAE garantem que é crime. “Além de poder estar em causa um crime de especulação, pode estar em causa uma prática comercial desleal, que foi o tipo de denúncia que chegou à Deco”, explica Rosário Tereso, jurista do departamento responsável pela matéria.

“Consideramos que estamos perante um crime de especulação e mantemos a nossa tese, perante a conjugação da alínea C e do artigo 2 do decreto-lei n.º 28/84”, conclui Pedro Portugal Gaspar, inspetor-geral da ASAE. Recorde-se que o crime de especulação pode ser punível com pena de prisão de seis meses a três anos e multa não inferior a 100 dias. 

Mas, para os advogados, estes bilhetes não fazem parte de um mercado regulado, cujos preços estão estipulados e devem ser respeitados. “Aqui faz sentido que seja o livre mercado a funcionar. Eu não acho razoável que se tiver um bilhete não o possa vender pelo preço que eu queira e tenha de ficar limitado pelo valor inscrito no bilhete. A partir do momento em que não há mais bilhetes, o preço real do bilhete aumentou. Faz sentido a limitação na entidade que faz a venda, mas não num terceiro”, argumenta o advogado João Massamo, concordando a ideia defendida, em declarações à CNN Portugal, por Ana Rita Duarte Campos e Saragoça da Matta.

 “Neste caso dos bilhetes, a regra é de facto do mercado livre e isso cabe aos agentes económicos que, perante o evento, a popularidade dos artistas ou até do espaço escolhido, definem o preço dos ingressos, que aí poderia haver uma convergência com a posição dos advogados. Mas ainda há a alínea C que fala na indicação de preço apresentada ao consumidor e temos intermediários a fixar preços de valor superior ao estipulado”, alega por seu lado um inspetor da ASAE, organismo que já recebeu queixas a propósito da revenda de bilhetes para o concerto da banda britânica. 

No artigo 35º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, a alínea C - a que é usada como argumento por parte da Deco e da ASAE, e que também foi usada pela PSP numa publicação nas redes sociais - diz que não se pode “vender bens ou prestar serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço”. Mas que bens são esses? Bens regulados, como o pão ou a eletricidade, exemplifica João Massano. “O pão está tabelado, tem limites, preço da eletricidade no mercado regulado tem limites, tudo o que esteja tabelado haver uma violação da lei quando se vende acima do preço de venda”.

De acordo com o advogado, é preciso ter em conta o bem em causa. “Uma coisa é a pessoa precisar de um bem essencial e alguém vai açambarcar e vender por um valor absurdo. Um bilhete para Coldplay não me parece um bem essencial e não vejo por que a ASAE se vai intrometer quando as pessoas não são enganadas e quem vende cumpre as obrigações fiscais”, diz, lembrando que quem comercializa deve declarar a venda, sob a pena de incorrer num crime fiscal: “Isto é, um rendimento que tem de ser tributado”.

Perante as diferenças entre a posições dos advogados e das autoridades, João Massano admite que pode “ser uma questão interpretativa da lei”. “No direito, em bom rigor, com duas pessoas pode haver três opiniões. Mas eu tenho algumas dúvidas que seja aplicável a alínea C” nestes casos, explica. Para o advogado, a “PSP e ASAE querem dissuadir essas práticas”, sendo comum atuar em grupos ou pessoas já referenciadas, como acontece com a venda de bilhetes para jogos de futebol. “Ou estão a falar das burlas e falsificações de documentos”, continua, esclarecendo que são outros dois crimes associados à prática de especulação, como acontece quando alguém coloca à venda um bilhete falso ou um bilhete inexistente apenas com o propósito de burlar e lucrar, ou o “uso de plataformas não licenciadas”, como adianta a advogada Ana Duarte Campos, que destaca que, apesar de defender que revender bilhetes acima do preço de compra não é um crime de especulação, “isso não significa que não sejam levantados autos de notícia”: “Pode haver investigação e concluir que não é crime”.

Para João Massano, mesmo que esta seja, por vezes, uma questão de tribunais, evitar este cenário de especulação é o primeiro passo. O advogado começa a sugerir que as pessoas que querem comprar não compactuem com os preços especulativos. Depois, diz a Deco, é importante comprar apenas em locais e sites oficiais, que por norma são anunciados pelas promotoras dos eventos culturais. Da parte das promotoras, diz o advogado, há formas já em prática que devem ser generalizadas, como colocar o nome no bilhete e apenas poder trocar o titular em sites autorizados.

A CNN Portugal contactou a Procuradoria-Geral da República para obter esclarecimentos sobre a lei, mas não obteve resposta em tempo útil. A Ordem dos Advogados rejeitou comentar o assunto, remetendo esclarecimentos para a jurisprudência.

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