Sentado numa das salas mais frescas da Herdade do Freixo do Meio, perto de Montemor-o-Novo, Alfredo Sendim explica qual é a formação atual do montado daquela zona e qual a evolução da floresta desde há milhares de anos. Nas paredes podem ver-se imagens ilustrativas do tipo de árvores que surgiram ao longo do tempo. Enquanto fala vai trincando uma bolota. É preciso ter cuidado, diz, para não se partir um dente. Em estado natural, aquele alimento é bastante duro.
Ao seu lado está Ana Fonseca, investigadora ecóloga, que começou por visitar a herdade para concluir um estágio de doutoramento e acabou por se juntar à equipa. Tanto um como o outro têm um especial interesse em explicar a história e potencial da bolota. Não é por acaso que se tornou o símbolo do Freixo do Meio, em 2005. Os estudos de Ana Fonseca contribuíram para esta dedicação. Foi um momento de mudança, em que a tradição das receitas de bolota se juntou às novas capacidades tecnológicas de criar produtos, como os enchidos e a farinha.
Nas últimas décadas, a bolota tem sido utilizada sobretudo para alimentar animais, como os porcos, mas já foi um dos alimentos mais importantes para a sobrevivência das populações rurais humanas na Península Ibérica. Na Idade Média, antes do milho e da batata chegarem à Europa, a bolota era tão consumida como a castanha. Desde que brota de árvores, como as azinheiras e os sobreiros (quercus) que é aproveitada como alimento. Os primeiros registos históricos do consumo deste fruto remontam ao século VII a.C., quando o poeta grego Hesíodo referiu numa das suas obras que “A terra produz bastante sustento… a azinheira está carregada de abundantes bolotas nos seus ramos mais altos e de abelhas nos do meio”.
Em Portugal, no século XX, eram apanhadas às escondidas pelas pessoas mais pobres. Em muitas herdades do Alentejo, era proibido: quem fosse visto a colher do chão era preso. A Herdade do Freixo do Meio era conhecida por ser um sítio seguro, em que os guardas não eram chamados. Havia quem se deslocasse de longe a pé para vir apanhar este fruto e carregar sacas de volta para casa. Nem toda a gente gosta de recordar esses tempos. “Tem a ver com uma má memória”, diz Ana Fonseca, que ouviu muitas histórias de habitantes da região que têm agora 80/90 anos e cresceram a comer bolota cozida ou assada pelos pais. “Tornou-se símbolo de vergonha”, diz.
Do café ao pão, passando pelos hambúrgueres
Num dos ensaios mais recentes de Ana Fonseca, publicado em 2020 na revista “Lucanus”, do Município da Lousada, escreveu que “o período que coincidiu com a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial foi de crise e fome, sujeitando grande parte do país, nomeadamente o Alentejo, a condições de extrema dificuldade que atingiram com especial gravidade as classes de trabalhadores rurais”, daí o hábito de ir recolher bolotas e conservá-las com técnicas que variavam entre o fumeiro e os os cestos azeitoneiros feitos com ramos de oliveira.
Desta forma duravam semanas. Por vezes resultavam em receitas mais elaboradas, como arroz cozido com bolota desidratada, pastéis ou marmelada, mas o mais habitual era simplesmente cozer ou assar.
“Um montado, por muito degradado que esteja, não produz menos do que uma tonelada por hectare”, explica Alfredo, para dar uma dimensão do que se pode aproveitar de um fruto que cai no chão.
“Antes de ser descascada, a bolota pode ter logo um destino, que é o café”, explica Alfredo Sendim, quando mostra o local em que se guardam as bolotas na herdade. Este preparado tem uma grande diferença para o verdadeiro café. Apesar do sabor forte, é uma infusão e não um estimulante. Trata-se apenas de uma das várias formas de transformar este produto. Entre outros há também o pão, biscoitos, enchidos, hambúrgueres, patês ou bolota fermentada, para aplicar em diferentes receitas. Na herdade, um dos pratos mais apreciados é o cozido de bolota, confeccionado em tacho de barro. Entre os entusiastas da nova utilização da bolota é consensual que a mais saborosa é a de azinheiro.
Famílias que sobreviveram à custa deste fruto
No livro “Manual de Cozinha da Bolota”, o biólogo espanhol César Lema Costas sugere diferentes receitas que se podem confeccionar com este fruto, de tortilhas a empadas, tabbouleh, croquetes ou bombons. O autor explica como o uso da bolota tem feito parte da história da humanidade, desde que a “Europa foi invadida por bosques de carvalhos e aveleiras” até ao momento atual, em que as monoculturas destruíram grande parte desta riqueza. É uma obra em que se fica também a conhecer a composição nutricional deste fruto, que varia entre as várias espécies, e a comparação com alimentos como a cevada, o trigo ou a aveia.
O seu valor calórico e nutricional, hoje em dia avaliado de forma mais precisa, justifica que muitas famílias tenham sobrevivido no passado por causa deste fruto. “As bolotas de Quercus são ricas em polifenóis, nomeadamente taninos, que são compostos com atividade antioxidante comprovada”, explica-se no site desta herdade. Ana Fonseca refere até que tem mais antioxidantes do que a romã.
Voltar a usar a bolota tem a ver com uma ideia que Ana Fonseca explica também no seu ensaio: a retro-inovação. Acontece quando surge “a criação de produtos que respondem à necessidade dos consumidores de utilizarem objectos ou experiências vivas do passado”. Isto está relacionado igualemente com a procura de um estilo de vida mais saudável, com menos alimentos processados e sabores mais “verdadeiros”.
Na abordagem a este regresso à recolha e conservação de frutos secos silvestres, está a ideia de aproveitar o que a natureza nos dá. O montado é rico nestes alimentos. Pode ser explorado sem prejudicar o ecossistema. No contexto de alterações climáticas, este e outros frutos não necessitam de irrigação para se manterem vivos, precisam apenas de um solo bem cuidado, em que a presença de outras espécies o enriquece.
Como diz Lema Costas no seu livro, “ano após ano a floresta produz grandes massas de alimentos e suporta grandes grupos de mamíferos, aves e insectos". Além disso, "uma grande variedade de plantas crescem lado a lado, às vezes competindo, mas na maioria das vezes ocupando nichos ecológicos”, sem recurso a fertilizantes artificiais ou fungicidas.
Na paisagem alentejana, outrora com mais biodiversidade, esta mistura de árvores, onde prevalecem o sobreiro e a azinheira, pode ser uma fonte de novos rendimentos, mais sustentáveis. E não é só no sul do país que esta renovação por sabores ancestrais pode aparecer. Com o aumento da temperatura a estender-se a outras altitudes, o potencial de recorrer a produtos como este são também vistos com outros olhos em diferentes regiões de Portugal, a centro e norte, onde já existem carvalhos que dão estes frutos.
“A bolota para consumo humano é uma causa incontornável”, assim como tudo o que se colhe das árvores, diz Alfredo Sendim. “Sem contar com as que servem para alimentar os porcos, perdem-se toneladas de bolotas neste país”, explica ao caminhar pela herdade onde prolifera a agrofloresta de montado. “Andamos a pisar permanentemente comida, sem ter noção”.