"O peixe come o mercúrio, a gente come o peixe, a gente morre". O grito dos Yanomami não tem sido ouvido e a terra poderá vingar-se disso - TVI

"O peixe come o mercúrio, a gente come o peixe, a gente morre". O grito dos Yanomami não tem sido ouvido e a terra poderá vingar-se disso

Família Yanomami (Majority World/Universal Images Group via Getty Images)

Imagens de crianças indígenas desnutridas chocaram o mundo e geraram acusações de "genocídio" a Bolsonaro, mas a crise sanitária dos Yanomami não é problema inédito. Desde 1980 que a comunidade tem sido devastada pelas consequências de explorações mineiras ilegais

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A visita de Lula da Silva à reserva Yanomami em Roraima trouxe para as bocas do mundo uma questão que já preocupa o Brasil há largas décadas: o garimpo ilegal e as suas consequências nas comunidades e terras indígenas. Após a visita do presidente brasileiro, também os Estados Unidos e a Organização das Nações Unidas (ONU) expressaram preocupação com a crise sanitária que assola a comunidade, tendo a última anunciado ainda a preparação de um plano de resposta.

As respostas são sempre necessárias, mas parecem algo tardias. Apesar de os Yanomami atravessarem uma das fases mais críticas da sua existência, marcada por uma crise sanitária tão severa que Lula fala mesmo em "genocídio", as denúncias por parte de líderes indígenas têm-se sucedido ao longo dos anos. No cerne da questão estão as riquezas naturais do subsolo amazónico, como ouro e cassiterite, que atraem um número crescente de mineiros clandestinos - número esse drasticamente acentuado durante o governo de Bolsonaro (em 2021, o aumento foi de 46% em relação ao ano transato). Quando os invasores partem, deixam solos contaminados por agentes químicos, a corrupção de ecossistemas inteiros e a devastação do coração da Amazónia.

A exploração mineira ilegal afeta diretamente os Yanomami, povo que vive e se alimenta dos recursos da floresta. A crise sanitária tem sido o maior foco da comunidade internacional (provavelmente por permitir medidas mais imediatas, como a criação de centros médicos), mas há outros fatores a ponderar naquela que é uma verdadeira crise humanitária e ambiental. Então, o que está em causa na luta das comunidades indígenas da Amazónia?

Doenças e desnutrição

"O peixe come o mercúrio, a gente come o peixe, a gente morre", resumiu um dos líderes indígenas com quem Lula da Silva se encontrou no fim de semana passado. 

O mercúrio é usado no garimpo como uma espécie de "íman" para separar as pequenas partículas de ouro dos restantes sedimentos, sendo posteriormente descartado para os rios e solos. Para os mineiros, é uma forma fácil de descartar a água contaminada. Para os povos cuja principal fonte de proteína é o peixe, é uma sentença de doença e morte. 

Um estudo de 2014, que consistiu na recolha de amostras de cabelo de membros de 19 aldeias indígenas, constatou que a contaminação por mercúrio era comum a todas. De forma desigual, porém: a percentagem de membros contaminados oscilava entre os 6.7% (em Papiú, onde o garimpo é mais raro) e os 92% (na região de Waikás, onde reside uma comunidade Yanomami). No total, 56% dos indígenas apresentavam concentrações de mercúrio superiores ao limite de 2 microgramas por grama (ou ppm) estabelecido pela OMS. Estes números devem ter crescido nos últimos anos, em paralelo às explorações clandestinas. 

As consequências do metal no organismo humano são graves e permanentes, provocando alterações no sistema nervoso central e alterações cognitivas e neuromotoras. As mulheres grávidas ou em idade reprodutiva são um grupo particularmente vulnerável, uma vez que tanto a exposição intrauterina como a amamentação podem comprometer o desenvolvimento saudável das crianças e provocar danos cognitivos irreparáveis. O investigador brasileiro Paulo Basta, que conduziu investigações sobre o tema, destacou que a concentração de mercúrio no cérebro dos fetos chega mesmo a ser cinco a sete vezes maior do que no cérebro dos adultos. 

A conexão com a Natureza é um dos pilares fundamentais dos povos indígenas. Para além de dominarem a pesca e a caça, os Yanomami acumularam um extenso conhecimento botânico ao longo de milhares de anos e cultivam grande parte da sua dieta nos solos férteis da floresta. Com a contaminação dos rios e solos, duas das três principais fontes de alimentação são logo inviabilizadas. 

Resta a caça, mas também esta é impactada pela atividade mineira. Os garimpeiros chegam de barco ou avião (a única forma de aceder a muitas das reservas) e todo o processo de aterragem e subsequente exploração assusta os animais, que fogem para outras zonas. O quadro de desnutrição severa dos Yanomami não é provocado pela escassez de alimentos numa Amazónia biodiversa e plena de vida, mas pela contaminação e destruição de todos os recursos (abundantemente) disponíveis na região. 

Para além das doenças que surgem por via alimentar, como infeções gastrointestinais e verminose, a chegada de garimpeiros a uma comunidade que vive em isolamento resulta na propagação de doenças anteriormente desconhecidas - ou raras - à comunidade. Os recentes surtos de covid-19 foram disso exemplo, mas não só. “A primeira doença que chegou trazida pelos brancos foi o alcoolismo”, aponta Enock Taurepang, o coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima, referindo também a propagação de doenças sexualmente transmissíveis. 

Doenças como a malária e a dengue (as designadas “doenças tropicais”) são endémicas na Amazónia, mas a presença dos garimpeiros ajuda a disseminá-las por todo o território. A desflorestação e as alterações no sistema ecológico levam à proliferação de mosquitos transmissores de doenças pelas comunidades já fragilizadas por carências nutricionais e com dificuldades no acesso a cuidados de saúde. Os dados apresentados pelo recém-criado Ministério dos Povos Indígenas ajudam a ilustrar esta situação: 99 crianças Yanomami com idades entre um a quatro anos morreram por doença em 2022 e, considerando os últimos quatro anos, o número sobe para 570. 

Uma criança Yanomami é tratada num hospital em Boa Vista, capital do estado de Roraima (Michael Dantas/AFP)

É uma questão tão séria como difícil de resolver. Quando a desnutrição já evoluiu para um problema crónico, não basta distribuir alimentos pelas comunidades. Após um período de privação alimentar demasiado prolongado, o próprio organismo pode habituar-se a uma carga metabólica mais baixa e rejeitar a reintrodução dos alimentos num processo chamado de síndrome da realimentação - que muitas vezes é fatal. 

A visita de Lula da Silva a Roraima pode agora, esperam os representantes indígenas, significar um novo capítulo para os Yanomami. Desde então, o governo brasileiro já declarou estado de emergência sanitária e anunciou a criação de uma comissão nacional de coordenação para combater a falta de assistência médica no local. No Twitter, o presidente do Brasil reforçou ainda que serão melhoradas infraestruturas para garantir que "aviões de grande porte consigam pousar" e deslocar mais rapidamente o apoio necessário. Serão ainda levadas "[equipas] médicas permanentes" para o local, assegurou Lula da Silva, numa inversão da "lógica atual" em que são as comunidades locais a ter de abandonar as suas reservas para procurar tratamento na capital de Boa Vista.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena frisa a importância da intervenção, mas explica que quaisquer medidas serão apenas paliativas enquanto a exploração mineira - a verdadeira raiz do problema - persistir. “Enquanto os garimpeiros não forem retirados, isso não acaba”. 

Violência e corrupção

A agressão da exploração mineira às comunidades indígenas não é apenas indireta. Os confrontos violentos entre garimpeiros e Yanomami estão documentados pelo menos desde a corrida ao ouro da década de 1980, mas ganharam visibilidade internacional com o "Massacre de Haximu", em que 16 indígenas (incluindo crianças) foram assassinados. 

Foi o primeiro caso da história da Justiça do Brasil a ser reconhecido como genocídio, embora a pena inicial de 20 anos de prisão tenha acabado por ser reduzida para 14. Um dos homens julgados, Pedro Emiliano Garcia, continua a dedicar-se ao garimpo e voltou a ser detido pela Polícia Federal em 2020. Em sua posse, tinha dois quilos de ouro obtidos numa mineração clandestina em território Yanomami.

Os contactos entre a população autóctone e os invasores ainda acontecem, mas a situação cada vez mais vulnerável dos indígenas tem vindo a mudar a abordagem. Sem acesso a alimentação adequada, alguns Yanomami não têm outra opção senão implorar por comida aos garimpeiros - precisamente os responsáveis por todo o problema. Homens de qualquer idade são recrutados para o trabalho de exploração mineira, em troca de alimentos, armas de fogo, drogas e álcool. A introdução destes dois últimos elementos, em particular, aumenta os casos de violência entre as próprias comunidades indígenas, geralmente pacíficas. 

Aliciados por estes bens a que de outro modo não teriam acesso, os rapazes e homens Yanomami deixam-se corromper. Para além de trabalharem para os garimpeiros e contribuírem para a extinção do seu próprio habitat, tornam-se elementos ativos na rede de prostituição e agressões sexuais de que são vítimas as mulheres indígenas. As meninas, sobretudo: os relatos de vítimas de violação compilados numa reportagem da Sumaúma garantem que são as crianças os principais alvos, muitas delas ainda não menstruadas. 

Uma outra testemunha conta ainda o caso de uma adolescente a quem os “homens brancos” deram cachaça e violaram repetidamente em grupo. Depois da agressão, a família da jovem recebeu pacotes de arroz, feijão, sardinha e outros bens essenciais em casa. Histórias como esta acabam por se propagar, e as promessas de recompensas em alimentos atraem jovens que passam a residir em zonas ocupadas pelo garimpo e que se prostituem em “prostíbulos” insalubres e sem recurso a métodos contraceptivos. De acordo com dados citados pela Modefica, em 2020 três raparigas Yanomami com cerca de 13 anos morreram vítimas de doenças sexualmente transmissíveis. 

Favores sexuais, casamentos forçados, mão de obra: privados dos recursos da terra e dos rios, os indígenas estão dependentes das exigências dos garimpeiros. E, quando as promessas de pagamentos ou entrega de mercadorias não são cumpridas, não têm sequer onde denunciar estas violações de direitos humanos. 

Os garimpeiros coagem, sobretudo, crianças. Os rapazes deixam-se seduzir por promessas de alimentos, álcool e até telemóveis; as raparigas são quase sempre exploradas sexualmente (Andressa Anholete/Getty Images)

A situação ganhou nova visibilidade em abril do ano passado, quando surgiu a denúncia da violação e assassinato de uma menina de 12 anos e o afogamento de um menino de quatro na aldeia Aracaçá, da região Waikás. A reserva em questão foi encontrada queimada e deserta, sem rasto da comunidade de 24 membros que ali residia. Nasceu então nas ruas e nas redes sociais o movimento #CadêOsYanomami, em que políticos, ativistas e celebridades exigiam uma investigação. 

Foram mais tarde localizados em acampamentos de garimpeiros perto do rio Uraricoera - mas a descoberta gerou ainda mais preocupação. "Estão na mão do garimpo, os garimpeiros entraram na cabeça deles", assegurou Júnior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'Kuana (Considi-YY). “Esses indígenas foram coagidos e instruídos a não relatar qualquer ocorrência que tenha ocorrido na região”. Em troca do silêncio, terão recebido cinco gramas de ouro. 

A Polícia Federal deslocou-se até ao terreno para conduzir uma investigação, acabando por declarar não terem sido "encontrados indícios da prática dos crimes de homicídio e [violação] ou de óbito por afogamento". A veracidade deste relatório começa agora a ser posta em causa. Em janeiro de 2023, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) partilhou relatórios relativos a 2019 que sugerem um acordo entre militares do Exército e exploradores clandestinos. As operações de combate ao garimpo eram previamente comunicadas aos criminosos por WhatsApp para que pudessem desertar a área antes da chegada da fiscalização, em troca de ouro. 

É relevante notar que os alegados episódios de corrupção ocorreram durante a gestão de Marcelo Xavier, eleito pelo então presidente Jair Bolsonaro, que acumulou polémicas durante todo o período de chefia da FUNAI e acabou exonerado em dezembro de 2022. A atuação do governo bolsonarista foi sempre, de resto, amplamente criticada: cargos e departamentos relativos a políticas indígenas foram extintos, e algumas das promessas de campanha do ex-líder eram "dar uma foiçada no pescoço" na FUNAI e não demarcar nem mais um centímetro de terra para os nativos. 

Desflorestação e crise climática

Os Yanomami ocupam cerca de 10 milhões de hectares, distribuídos entre os estados de Roraima e Amazonas. Para além da desflorestação associada à extração de recursos naturais, os invasores tendem a queimar a área explorada antes de abandonarem o local, o que exacerba a perda de território. Antes de Bolsonaro subir ao poder, um projeto da Hutukara contabilizava cerca de 1.200 hectares devastados pela desflorestação. Em agosto de 2022, este número expandiu-se para mais de 5.000 hectares. 

A Amazónia concentra cerca de metade da biodiversidade mundial, e a alteração ou a erradicação destes ecossistemas têm consequências que se fazem sentir muito para além dos limites geográficos da floresta. Os indígenas são, claro, os mais afetados, com as consequências negativas diretas para a proteção de recursos hídricos, a produção agrícola, a propagação de pragas e o desaparecimento das espécies de que se alimentam. Mas os peixes contaminados por mercúrio são também exportados para outros países: a piracatinga, por exemplo, é bastante consumida noutras partes do Brasil e em países como a Colômbia. Se contaminada, pode afetar consumidores de todo o mundo. 

De acordo com dados da WWF Brasil, em 2019 existiam na floresta 256 espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, cada uma delas com um papel específico no equilíbrio do ecossistema. A desflorestação compromete também o equilíbrio climático, diminuindo os índices pluviométricos, aumentando as temperaturas e prolongando os períodos de seca da região tipicamente húmida. 

A Amazónia não é o “pulmão do planeta”, ao contrário do que é frequentemente repetido (esse título pertence às algas marinhas, responsáveis por 54% do oxigénio produzido em todo o mundo); é mais um enorme “armazém de carbono”, captado através do processo de evapotranspiração das árvores. A Amazónia já perdeu cerca de 30% da sua capacidade de reter gases de efeito estufa desde o início do século, e esta perda pode vir a ser tão nociva para o ambiente como a própria ação de desflorestação. Ao deixar de reter dióxido de carbono, a Amazónia está a passar de "armazém" para um perigoso "emissor" de CO2. 

Vista aérea de uma área desflorestada do estado de Amazonas, em setembro de 2022 (Michael Dantas/AFP)

Massas de frio polar envolvem Portugal numa vaga de frio neste mês de janeiro; em 2022, poeiras oriundas do deserto do Saara pintaram os céus ibéricos de laranja. Sabemos que o mundo está ligado e que eventos climáticos numa parte do mundo impactam o canto oposto. Os Yanomami, como a maioria dos povos indígenas, acreditam numa Natureza viva em que tudo tem um espírito e está interconectado: desde animais a pedras. Extraem da “grande mãe” apenas os recursos essenciais à sobrevivência, e não exploram mais do que aquilo que ela consegue proporcionar. 

A luta contra os garimpeiros é, mais do que uma luta pela sobrevivência, uma luta pelo próprio planeta. “Já que a terra está sofrendo, nós também sofremos. Já que as águas estão sujas, nosso sangue também fica sujo”, escreve o xamã e líder político Davi Kopenawa Yanomami numa longa reflexão publicada na Sumaúma. E lembra as palavras dos familiares mais velhos: “Quando nós, povos da floresta, acabarmos, quando acabarem as árvores e quando a floresta estiver totalmente vazia, sem aqueles que a defendem, então a terra irá vingar-se”. 

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