Todos os anos, milhões de pessoas recebem o temido diagnóstico, outrora uma sentença certa, hoje uma luta nem sempre com um fim à vista. A roleta-russa do cancro não escolhe géneros, idades e estratos sociais, afeta o bem-estar, o corpo, a vida social e familiar e até a economia, não fosse uma das doenças mais caras - por cá, só em tratamentos.
Desde as primeiras descobertas sobre o genoma humano, há três décadas, muita coisa mudou naquilo que se conhece do cancro, que veio para ficar e que continua a ser a segunda maior causa de óbitos em todo o mundo: sabe-se mais sobre o puzzle que é o ADN humano, sobre o que o afeta e como o reparar. E o certo é que, à boleia da tecnologia e da ciência, não se dará tréguas à doença oncológica. E com isso, os médicos mostram-se mais confiantes.
É como digo aos meus pacientes: é como fazer um voo de Lisboa a Nova Iorque, até se pode ter uma boa tecnologia no avião, mas sem um bom piloto, não se tem um bom voo”, começa por dizer David Subirá, coordenador da especialidade de Urologia na CUF Tejo e especialista em cirurgia robótica.
As novas tecnologias têm entrado no combate à doença oncológica como um aliado, um novo membro da equipa que se destaca pelos 'olhos de lince', energia inesgotável e um conhecimento interminável. E os resultados estão à vista: dos diagnósticos quando ainda não há sequer suspeitas da doença, do recurso à inteligência artificial e da humanização das cirurgias, o combate ao cancro e a tudo o que ele implica faz-se em três frentes.
Encontrar o cancro antes que ele queira ser encontrado
Um dos principais desafios da ciência é encontrar o cancro quando ele ainda não quer ser encontrado, quando ainda passa despercebido em exames de imagem e ainda é silencioso no corpo que habita. Há um par de décadas, este cenário era meramente utópico. Hoje é já uma realidade: há testes genéticos mais precisos e ferramentas tecnológicas e de Inteligência Artificial que processam mais rápida e corretamente dados e conseguem ver o que o olho humano ainda não consegue detetar.
Apesar de apenas 5% a 10% dos cancros diagnosticados se deverem a falhas genéticas herdadas pelos pais, este é um aspeto que “não deve ser desprezível”, destaca Miguel Barbosa, diretor do serviço de Oncologia do Centro Hospitalar Universitário São João, no Porto, defendendo a importância da tecnologia nesta procura pelo gene 'mau'. E é nas “consultas de aconselhamento genético e hereditariedade” que deve ser feita uma aposta, vinca, uma vez que a análise e compreensão genética é uma área em crescimento e com resultados bem concretos.
Há um grande avanço em termos de conhecimento nessa área [da genética], os testes que fazíamos em 2018 são diferentes de 2024, são mais alargados e conseguem ir mais a fundo”, adianta Miguel Barbosa.
Esta avaliação ajuda a encontrar um elo de ligação familiar em casos de cancro. “Não é para a pessoa saudável, é para os que estão doentes, pegamos no fio do novelo e avaliamos os familiares saudáveis”, esclarece o médico do São João. E foi numa destas consultas genéticas que Luís Costa, diagnosticado com cancro da mama, descobriu que era portador de uma mutação no gene BRCA2, tal como a filha (leia a reportagem aqui). O cancro da mama é, aliás, aquele que, de momento, mais beneficia do conhecimento científico e genético. “Estamos muito melhor do que estamos há 30 anos”, começa por dizer Mário Fontes e Sousa, oncologista e investigador no Hospital CUF Tejo, que explica que os cancros hereditários acabam por ser os “mais previsíveis” e aqueles que se consegue despistar mais cedo.
Hoje, diz-nos Fontes e Sousa, “há já um conjunto de testes que procuram identificar formas genéticas de tumores no sangue das pessoas antes desses tumores aparecerem em exame. Ao procurar isso em situações assintomáticas, maior é a chance de atingir a cura sem ter o dano associado a um tumor de maior dimensão”, esclarece o médico, que dedicou a sua tese de doutoramento ao papel da epigenética, um campo da ciência que estuda o impacto dos estímulos ambientais nos genes.
A evolução do conhecimento saído do genoma humano e que levou décadas e biliões de dólares, permitiu que hoje se faça um teste genético de alta cobertura - 300 a 400 genes - e temos resultados em duas semanas e custa menos de três mil euros. Dá para ver onde estávamos há 30 anos e onde estamos agora”, destaca Mário Fontes e Sousa, reconhecendo o papel determinante da tecnologia no processamento da informação, o que permite resultados mais precisos e céleres.
José Dinis, diretor do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, olha para os testes genéticos como a chave certa para a fechadura de uma porta que tem de ser escancarada, sobretudo numa altura em que o cancro em pessoas mais jovens é cada vez mais comum e preocupante. “À medida que a idade decresce, a probabilidade dos cancros hereditários começa a aumentar. Em Portugal temos uma mutação muito própria [a BRCA2 c.156_157insAlu] e temos de saber quem são estas doentes, se é um tumor hereditário ou não”, diz, apelando ao reforço das consultas de risco familiar e ao investimento em técnicas de diagnóstico mais avançadas.
Fazer o diagnóstico genético do cancro é uma das abordagens na área da deteção - a chamada sequenciação de nova geração. Nesta nova abordagem são usados métodos mais céleres, mais inovadores e mais precisos para sequenciar estruturas de ADN e RNA, aumentando e acelerando a informação e análise da mesma. Há quem chame de revolução da genómica do cancro, também ela importante durante o tratamento ou procura de terapêuticas. E foi através da Sequenciação de Nova Geração que, em 2020, uma equipa de investigadores do IPO-Lisboa conseguiu identificar novas alterações genéticas em alguns tipos de cancro familiar, alterações essas que poderão estar na origem de cancros hereditários em famílias e que abrem portas para tratamentos mais direcionados.
No entanto, mesmo quando há um fio condutor, um histórico de cancro na família, quando é preciso procurar o lado desconhecido da genética, nem sempre é possível fazê-lo. Em Portugal, apenas “os colegas de genética médica é que fazem [os testes] nos indivíduos saudáveis com familiares com cancro, mas nem todos os hospitais têm área da genética e há poucos geneticistas”, lamenta o médico Mário Fontes e Sousa.
Como conta à CNN Portugal Luís Costa, diretor do Departamento de Oncologia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, há um projeto europeu no qual este hospital está envolvido e que inclui rastreios a mulheres jovens e saudáveis. Ao todo, serão analisadas cerca de 700 em Portugal e o certo é que, nas primeiras 500 já vistas, foi feito um diagnóstico. “Houve um caso em que a mulher já tinha um cancro da mama, uma pessoa nova. Nem ela, nem nós sabíamos”, revela. Em causa está o projeto BRIGHT, que conta com a colaboração da Liga Portuguesa Contra o Cancro, destinado a mulheres saudáveis com idades entre os 35 e os 49 anos e foca-se no teste AnteBC, que irá avaliar o risco genético de desenvolver cancro da mama. Os resultados obtidos dessa análise irão fornecer recomendações sobre como e em que idade a mamografia de rastreio para o cancro da mama deve ser realizada”, como se lê no site da LPCC. As interessadas podem ainda candidatar-se aqui.
Mas não é apenas a genética que permite desbravar o muitas vezes desconhecido mundo do cancro. Os diagnósticos mais precisos - mesmo sem que haja sinais da doença - beneficiam também de avanços tecnológicos, de novas máquinas, de novas ferramentas. E os avanços são vários e é nos cancros mais comuns que se dá mais cartas. A técnica de navegação eletromagnética broncoscópica - o 'GPS' que viaja pelos pulmões - é uma das grandes apostas para detetar aquele que é um dos cancros mais fatais em Portugal: o dos pulmões. Esta técnica é usada pelo IPO do Porto e agora também pelo Serviço de Pneumologia da Unidade Local de Saúde de Santa Maria.
Mas o futuro do diagnóstico precoce faz-se também com a Inteligência Artificial.
“Há algoritmos de Inteligência Artificial que, com a avaliação de mamografias, dizem se no futuro as mulheres podem ter cancro”, explica João Abrantes, fundador e coordenador do Grupo de Trabalho Inteligência Artificial (IA) da Sociedade Portuguesa de Senologia e radiologista no Hospital CUF Porto.
Essa informação, assegura o especialista, permite “dar um seguimento mais apertado em mulheres de risco” e até “alargar e espaçar o tempo de exame” nas mulheres “com menor risco”. Ainda no que diz respeito ao papel da IA no diagnóstico, detetar nódulos impercetíveis aos olhos humanos é a grande valência desta tecnologia no combate ao cancro (embora não se fique por aqui: pode ainda ser uma mais-valia na análise e processamento de informação, o que poderá resultar em tratamentos mais dirigido e, por consequência, mais certeiros).
João Abrantes, que coordena esta área de investigação na CUF, destaca a “grande possibilidade de salvar vidas” que a Inteligência Artificial (IA) dá, sobretudo em casos de cancro da mama. “A IA consegue ajudar de vária formas, dar um sistema de apoio de decisão clínica do radiologista, como um segundo par de olhos”, diz, destacando que esta ferramenta - que “muito em breve” estará operacional neste hospital privado - “mantém um nível muito elevado” no que diz respeito à análise da informação de imagem, o que, no fundo, resulta em “diagnósticos mais precisos e mais consistentes”, podendo até detetar aquilo que não seria possível ver “a olho nu”. “Dá uma segunda opinião, mas a decisão final é sempre humana”, vinca.
A IA pode ainda ser uma aliada do próprio paciente. A startup Glooma criou uma luva inteligente para detetar precocemente o cancro da mama. Com sensores que incorporam algoritmos de Inteligência Artificial, esta luva aumenta a eficácia da técnica de palpação, pois compara os resultados dos vários autoexames que a pessoa vai fazendo, ajudando a compreender a evolução de eventuais tumores.
A cada paciente, o seu cancro. A cada cancro, o seu tratamento
O radiologista João Abrantes, que tem dedicado parte da sua carreira a esta área mais tecnológica da Medicina, explica que a IA pode ser a chave para a personalização dos tratamentos, aumentando a sua tolerância e eficácia. São as duas bases da chamada medicina de precisão, que permite prever, antes de o tratamento ser iniciado, se há uma grande probabilidade de ser eficaz ou se devemos tentar outro tratamento.
O IPO-Porto, por exemplo, criou um programa de medicina de precisão em que doentes com determinados critérios, que já tenham esgotado as opções de tratamento convencionais mas que estão num bom estado geral de saúde, podem beneficiar da sequenciação genómica alargada, na qual os investigadores procuram genes relevantes no desenvolvimento da doença oncológica e que poderão revelar se o paciente pode beneficiar de algum tratamento mais dirigido. Esta é uma inovação que poderá oferecer ao paciente o tratamento mais adequado ao seu estado de saúde e ao estado em que está a doença. E a análise de dados aqui é fundamental.
“Uma das grandes apostas nos big data da saúde é perceber como podemos personalizar o tratamento, nem todos os casos são iguais”, diz o radiologista, explicando que, com o recurso à IA, é possível fazer uma análise mais minuciosa e simultânea dos “dados de imagem médica e dados da genética”.
Esses dados da genética, por si, são uma valiosa informação e Mário Fontes e Sousa não tem dúvida de que “a evolução nesta área tem sido muito lógica: começou por se ver a origem do cancro, depois o risco e agora estamos no patamar em que conhecemos o impacto que essa alteração genética tem no tratamento”.
Um grupo de cientistas da Histofy, uma empresa da Universidade de Warwick, desenvolvem o MitPro, uma ferramenta de Inteligência Artificial para auxiliar nas decisões de tratamento do cancro, como conta a BBC. E o que faz esta ferramenta? Aquilo que um humano não consegue fazer: contar o número de células em divisão. E esta informação pode ser valiosa como um indicador da agressividade ou grau do cancro, o que ajuda na tomada de decisão sobre o tratamento a seguir.
Menos marcas visíveis
Uma das apostas da ciência tem-se focado no garante de qualidade de vida daqueles que não conseguem fintar o cancro. E, aqui, a técnica PIPAC - Pressurized Intraperitoneal Aerosol Chemotherapy - é uma das grandes apostas nos cuidados paliativos. Esta técnica, usada, por exemplo, no Hospital São João e no Hospital da Luz de Lisboa, consiste na aplicação de um aerossol na cavidade peritoneal, facultando uma distribuição mais homogénea e concentrada da quimioterapia, reduzindo os efeitos secundários e dando mais qualidade de vida aos pacientes.
A qualidade de vida é, sem dúvida, uma das grandes questões da Medicina Oncológica e essa qualidade de vida não se mede apenas nos anos que a pessoa ainda terá por cá, mas também no seu corpo e bem-estar emocional, sendo as cirurgias robóticas aliadas nestes aspetos: são menos invasivas, mais precisas e menos mutiladoras.
“A primeira vez que conheci a cirurgia robótica foi nos Estados Unidos, na Cleveland Clinic, vi o primeiro protótipo do famoso Da Vinci. Estávamos em 2001”, lembra David Subirá, médico espanhol especialista em cirurgia robótica e procedimentos minimamente invasivos.
A trabalhar na CUF Tejo como coordenador do departamento de Urologia, o médico destaca o papel determinante que as pequenas cicatrizes podem ter num paciente com cancro. “A estética nestes casos é cada vez mais importante, como as incisões são mínimas na cirurgia robótica, esteticamente é melhor”, diz.
A cirurgia robótica é, tal como o nome diz, um procedimento cirúrgico que conta com o apoio de uma máquina, de um robô. Com tempos de recuperação pós-operatório semelhantes aos métodos convencionais, esta cirurgia outrora futurista permite uma melhor precisão no foco da doença, precisão essa que é levada a cabo pela máquina, mas sempre sob os comandos de um humano, neste caso, o médico cirurgião.
Além de permitir uma marca visualmente menor da doença, a cirurgia robótica, esclarece David Subirá, é um marco tecnológico porque é também capaz de “reduzir os efeitos colaterais do tratamento”, acabando por dar ao paciente uma recuperação mais tranquila e até com menor risco de infeção.
O médico espanhol destaca o poder curativo que esta cirurgia pode ter em alguns tipos de cancro, sobretudo urológicos. No cancro do rim, por exemplo, a taxa de cura é claramente superior à verificada nos procedimentos conventuais.
“Esta tecnologia é cara e desde que começou, há cerca de 15 anos, a sua implementação na maioria dos hospitais está reduzida pelos custos que tem, mas há dois, três anos aumentou o número de robôs no mercado e isso faz com que os custos sejam mais baixos”, explica Subirá, dizendo que a cirurgia robótica é já uma realidade em alguns hospitais públicos portugueses.
A cirurgia robótica dá cartas não apenas na doença oncológica, tem-se mostrado aliada em procedimentos mais complexos que, apenas sob a mão humana, teriam desfechos diferentes. Por cá, este ano foi realizada a primeira cirurgia com robô numa menor de idade e o Hospital Curry Cabral, em Lisboa, já fez mais de 500 intervenções robóticas só no ano passado.