A política que gostava “mesmo de falar com as pessoas” deixa o Bloco quase como o encontrou: Catarina Martins, um perfil - TVI

A política que gostava “mesmo de falar com as pessoas” deixa o Bloco quase como o encontrou: Catarina Martins, um perfil

Catarina Martins

Criou a sua própria imagem dm contraste com uma classe política enfadonha. Mas não cedeu no blazer preto nem no rigor das investidas. A geringonça, uma das suas criações mais importantes, foi também o início do seu fim político. O partido tem de recuperar a confiança e os votos dos eleitores. Tal como precisou de fazer quando Catarina Martins assumiu a liderança

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Catarina Martins estava no auge em 2015. O Bloco de Esquerda atingia um resultado histórico e fazia entrar na Assembleia da República 19 deputados. E, com essa representação, obrigava os socialistas a negociar. Sem o apoio deles, António Costa não podia governar. Com o apoio deles, António Costa tinha de ceder.

A geringonça – assim ficou conhecido o acordo de apoio parlamentar – foi, na opinião de politólogos e militantes, o ponto de viragem na carreira política de Catarina Martins. Para o bom e para o mau. Porque o Bloco de Esquerda nunca assumiu, na sua própria criação, uma posição clara.

“Nunca tomou uma posição consistente. Estava ligado à geringonça mas também fazia o papel de oposição, como se não tivesse qualquer tipo de vínculo”, sintetiza a politóloga Paula do Espírito Santo. E acrescenta: “A geringonça acabou por dar ao Bloco a oportunidade de trabalhar melhor as suas propostas, acentuar a sua força e o seu valor político. Teve oportunidade de concretizar melhor os seus projetos no campo económico e do trabalho”.

A lógica era simples. O que era bom – como a subida de salários e pensões ou os reforços na saúde pública – tinha sempre o dedo do Bloco. Mas o que não avançava era sempre por culpa do PS. Em 2016, Catarina Martins dizia que “todos os dias” se arrependia da criação da geringonça porque “todos os dias” era “confrontada com os limites” da solução.

Mas em 2019, depois de assinado o divórcio - confirmado nos chumbos ao Orçamento do Estado -, já não havia arrependimentos: “Quem quer pontes não as queima. Não sei se o PS está arrependido destes quatro anos, nós no Bloco de Esquerda não estamos”.

E, aos olhos dos eleitores, a Catarina das ruas, do rigor no debate, das frases fortes, da simpatia no trato durante as campanhas - ao ponto de a ela se referirem pelo primeiro nome - perdia força. E a ida às urnas, já em contexto de crise política, havia de confirmá-lo: só cinco deputados na bancada.

“O momento baixo, chamemos-lhe assim, foi a queda de geringonça, com o resultado eleitoral que teve. Era previsível mesmo para os dirigentes do Bloco. Os portugueses perceberam a separação mas não gostaram. O eleitorado de esquerda tinha gostado da geringonça e puniu quem era percecionado como o responsável pelo seu fim”, descreve o politólogo António Costa Pinto.

Catarina Martins como deputada, em janeiro de 2012
Catarina Martins com João Semedo, na convenção do partido em 2012

“Sempre que foi necessário animar a luta, ela esteve presente”

Uma década de Catarina Martins à frente do Bloco de Esquerda vai chegar ao fim no último fim de semana de maio de 2023. Dez anos de “vitórias e derrotas”, reconheceu a própria porta-voz no anúncio. A este propósito, António Costa Pinto realça o seguinte: “Os momentos altos e baixos de Catarina Martins confundem-se com os altos e baixos do Bloco de Esquerda. Embora a liderança individualizada seja importante, o eleitorado vota no partido, não no líder”.

“É uma liderança que assume elementos interessantes em termos de defesa de valores mas que acabam por não ser tão centrais como antes da sua liderança”, argumenta Paula do Espírito Santo. Catarina Martins não teve bandeiras como a interrupção voluntária da gravidez ou o casamento homossexual para abanar enquanto porta-voz do partido. E as causas são hoje partilhadas com mais forças à esquerda, como o PAN ou o Livre.

Quem trabalhou diretamente com Catarina Martins não lhe poupa elogios nos contributos para unir o Bloco e conquistar avanços em Portugal. “É uma dirigente incontornável da esquerda. Tornou o Bloco um partido mais popular, com grande proximidade das questões do trabalho e de todas as pessoas mais invisíveis, mais precárias, mais desvalorizadas nesse campo”, destaca o bloquista José Soeiro.

O antigo deputado recorda que “foi protagonista de soluções concretas em que o Bloco contou e transformou, nomeadamente no período da geringonça”.

“A Catarina Martins teve uma grande importância na unificação do partido após 2014”, junta Fernando Rosas, fundador do Bloco de Esquerda. As culpas sobre as derrotas que se sucederam, diz, não são exclusivas da porta-voz: “Não conseguimos convencer o eleitorado da pertinência de ter votado contra o Orçamento. Mas a realidade acabou por dar razão ao Bloco”.

Também o bloquista José Manuel Pureza segue no mesmo sentido: “A liderança de Catarina Martins tem sempre essa marca de ser uma dirigente que não perdeu a centralidade do movimento social, daquilo que transforma a sociedade. Sempre que foi necessário animar a luta, ela esteve presente”.

Catarina Martins em debate com António Costa para as legislativas de 2015
Catarina Martins na campanha eleitoral de 2015. Na rua, um dos traços que a caraterizam (Lusa)
Noite eleitoral no Bloco de Esquerda em 2015

“Gosto mesmo de falar com pessoas. Entusiasmo-me mesmo a discutir as soluções”

Catarina Martins deixa a liderança do Bloco de Esquerda num contexto muito parecido àquele em que recebeu a liderança. As eleições de 2011 seriam desastrosas para o partido, forçando Francisco Louçã a ceder a liderança. A contestação interna levaria à saída de militantes como Daniel Oliveira, Joana Amaral Dias e Ana Drago.

O Bloco trouxe depois uma liderança bicéfala, com João Semedo e Catarina Martins, entre 2012 e 2014. Neste ano, Catarina Martins torna-se porta-voz de um partido gerido por uma comissão permanente. Só em 2016 a liderança se torna plena.

“Gosto mesmo de falar com pessoas. Entusiasmo-me mesmo a discutir as soluções, a ouvir as pessoas, os seus problemas”, disse numa entrevista a Ricardo Araújo Pereira no program da SIC "Isto é gozar com quem trabalha". Do teatro para a rua, Catarina Martins fez o percurso junto do eleitorado num discurso que se pautou sempre pelo combate às desigualdades e injustiça.

Quem se seguirá no cargo – Mariana Mortágua ou outro nome forte, logo o tempo dirá – terá de manter a acutilância e a proximidade que marcaram Catarina Martins, dizem os especialista ouvidos pela CNN Portugal. Mas também juntar-lhe novos traços, em linha com as novas preocupações sociais.

“Os desafios do Bloco são os mesmos de há vários anos. Partindo do princípio de que mantém as mesmas bandeiras políticas, é claro: conquistar o eleitorado descontente com o Partido Socialista”, descreve António Costa Pinto.

O blazer preto, uma das imagens de marca de Catarina Martins, continuará no partido. Ficará apenas em segundo plano.

Reunião entre Bloco e PS após eleições de 2015 (Lusa)
Assinatura do memorando que permitiu o acordo à esquerda (Lusa)

 

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