“É estranho receber um extrato de crédito à habitação com um juro de 3% e depois o juro do depósito ser de 0,1%”: o que esta frase diz sobre a nova paixão dos portugueses pelos certificados de aforro - TVI

“É estranho receber um extrato de crédito à habitação com um juro de 3% e depois o juro do depósito ser de 0,1%”: o que esta frase diz sobre a nova paixão dos portugueses pelos certificados de aforro

Notas, dinheiro, euro, poupança. Foto: Adrien Fillon/NurPhoto via Getty Images

"A inércia dos bancos quebrou a inércia dos clientes"

Relacionados

O valor investido pelos portugueses em certificados de aforro duplicou em apenas um ano, trazendo um recorde absoluto na utilização deste mecanismo financeiro. São já mais de 25 mil milhões de euros em aplicações na dívida direta do Estado, num sinal de que há algo a mudar no sistema financeiro.

O presidente da Informação de Mercados Financeiros (IMF), Filipe Garcia, afirma à CNN Portugal que há uma clara mudança de hábitos, destacando que os valores são apenas a consequência de algo que já se vinha notando há largos meses: o fim da “inércia” dos portugueses. Fala ainda numa “negligência” por parte dos bancos, o que acabou por motivar algo raro.

“A inércia dos bancos quebrou a inércia dos clientes”, aponta o especialista, que aponta também numa quebra da relação essencial entre banca e confiança. É que essa confiança faz-se pelo nível de serviço, pela imagem, mas também pela “perceção de boa-fé” - e os bancos “têm sido um pouco negligentes na forma como têm gerido a sua relação com os clientes”.

“É um pouco estranho receber um extrato de crédito à habitação com um juro de 3% e depois o juro depósito ser de 0,1%”, sublinha Filipe Garcia, notando que os bancos resistiram a aumentar a recompensa dos clientes pelos depósitos que estes têm, começando agora, de forma mais visível, a sofrer as consequências.

O CEO da Optimize, Pedro Lino, lembra ainda um outro fator: "As taxas de remuneração de depósitos a prazo em Portugal são das mais baixas da Europa", o que torna particularmente atrativas alternativas como certificados de aforro, obrigações ou outros investimentos. Com efeito, e analisando dados do Banco de Portugal referentes a dezembro, é possível ver que o nosso país é mesmo aquele que oferece menos rentabilidade nos depósitos a prazo em toda a Zona Euro.

Por outro lado, diz o CEO da Optimize, os portugueses começam a diversificar o seu comportamento, isto depois de terem ficado com "receio" após as quebras bolsistas de empresas como a PT ou o BES. "Neste momento existem alternativas muito interessantes e começa a perceber-se isso", diz.

O sol que nasce para todos

Filipe Garcia sublinha que os bancos “vão ter de correr atrás do prejuízo”: já se começa a notar que as aplicações financeiras começam a ter uma maior rentabilidade nos bancos, depois de vários meses de resistência - ainda que continuem bem longe daquilo que podiam render.

“Até aqui não pagavam os depósitos mas queriam cobrar os créditos”, acrescenta o economista, que vê um contexto de inflação que deveria ter sido gerido com muito mais cuidado por parte do sector. Neste momento, afirma, “o mal está feito” e não apenas em Portugal.

“Trata-se de um tema transversal a vários países. Nos Estados Unidos, os clientes também estão a tirar o dinheiro dos bancos e a meter em fundos em fundos de mercado monetário”, vinca Filipe Garcia, notando que se trata de um sistema mais diversificado e que em Portugal acaba por acontecer essa transferência de dinheiro para aplicações como os certificados de aforro.

“Agora as pessoas levantaram-se e foram meter o dinheiro noutro sítio”, conclui o economista.

É aquilo a que Pedro Lino chama "discrepância" entre o que banco recolhe e aquilo que dá e que está a motivar as pessoas a "arriscar e a levantar o dinheiro" para o colocarem noutro lado, nomeadamente em certificados de aforro.

Sobre a resistência dos bancos em aumentarem os pagamentos dos depósitos, diz o especialista que é algo que começa a deixar de existir mas que foi motivado, em grande parte, por haver muito dinheiro no sistema. Agora, e "à medida que a liquidez for desaparecendo, [os bancos] vão ser pressionados a subir as taxas de juro", o que até já se começa a notar, mas ainda não de forma suficientemente atrativa para incentivar os clientes a ficarem ou a regressarem.

"Os bancos estão a ir atrás dos clientes porque sentem essa necessidade. Quando a banca precisar e o nível de depósitos começar a baixar vão ser mesmo obrigados a subir as taxas de juro para evitar produtos concorrentes", reitera, falando numa pressão adicional provocada pela falência de bancos como o Silicon Valley Bank ou o problema que ocorreu no Credit Suisse.

Pico de 2008 não está relacionado

Um dos últimos grandes picos no investimento em certificados de aforro, ainda que não na dimensão que agora se verifica, registou-se em 2008 - em janeiro, mais precisamente, quando já começavam a pairar os avisos de uma crise global. A meio ano o valor em certificados de aforro disparou, para meio ano depois cair a pique. A corrida foi tal que janeiro de 2008 era, até dezembro de 2022, o mês com maior montante em certificados de aforro.

Para os especialistas não existe uma relação entre os dois cenários, até porque os contextos são completamente diferentes - desde aquilo que provocou a crise de 2008 àquilo que é a imagem da banca em ambos os períodos.

Filipe Garcia lembra que a série atual é diferente, havendo uma taxa máxima de juro, o que não acontecia em 2008. Além disso, refere o presidente da IMF, aquele foi um período em que a Zona Euro teve das taxas mais altas, revelando-se o certificado de aforro bastante atrativo.

“Há uma certa tendência para querermos dizer que estamos numa situação parecida, mas não me parece”, afirma, garantindo que “não estamos na iminência” de uma crise financeira semelhante, até porque “o público não está preocupado com o risco de crédito.

Trata-se de visão semelhante à de Pedro Lino, que lembra uma subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu na altura - mas com uma diferença crucial: “Agora não há problemas sistémicos na banca portuguesa, há é uma procura de rentabilidade”.

Voltamos ao princípio: é a inércia dos bancos que motiva os portugueses a “levantarem-se do sofá” para transferirem o dinheiro para certificados de aforro.

Continue a ler esta notícia

Relacionados