Três dias depois da morte de António Champalimaud, à altura, em 2004, o homem mais rico de Portugal, os herdeiros reuniram-se. Na casa da Rua do Sacramento à Lapa, em Lisboa, ecoou a surpresa. Nenhum dos cinco filhos vivos (ou dos descendentes dos outros dois já falecidos) esperava aquela notícia.
A vontade era clara: o industrial deixava uma parte importante da sua fortuna, cerca de 500 milhões de euros para a constituição de uma fundação dedicada à investigação científica no campo da medicina, onde deveria constar o nome dos pais. Definiu quem queria para a presidência, com Leonor Beleza, com quem tinha estado presencialmente apenas uma vez, ao leme. E definiu que nenhum dos herdeiros teria lugar nessa instituição.
Luís Champalimaud confirma que esse desejo do pai surpreendeu todos. Não pelo gesto em sim, mas pelo secretismo com que deixou tudo planeado. Depois da morte do irmão João, era o único filho que trabalhava com António Champalimaud. Houve horas e horas de conversas, algumas pistas, nenhumas certezas.
“Falámos de tudo, sobretudo do futuro. O meu pai não gostava de falar do passado. Podemos dizer que, se existiam 100 hipóteses de sucessão ou herança, o meu pai discutiu as 100 comigo. Mas não quer dizer que me tenha apercebido de alguma coisa”, confessa Luís Champalimaud à CNN Portugal.
O futuro tornava-se presente dois anos depois, a 6 de junho de 2006, com o início da fundação, hoje considerada por muitos o principal legado de António Champalimaud. Ele que acabou por dar nome a uma das iniciativas mais marcantes do projeto, o Prémio António Champalimaud de Visão.
Porque ficaram de fora? Champalimaud não queria ser Gulbenkian
Mas porque quis um dos homens mais ricos de Portugal, com uma fortuna que chegou a ser avaliada em 2.500 milhões de euros, deixar os herdeiros de fora do seu legado mais precioso? A resposta é simples: o receio de conflitos.
No momento de passar o testemunho, António Champalimaud procurou evitá-los ao máximo. E para tal, por exemplo, foi transformando todo o património em liquidez, assegurando uma distribuição mais fácil pelos herdeiros. Cada filho teve direito a 200 milhões de euros, segundo os relatos da altura.
Champalimaud não queria que se repetisse na geração seguinte a experiência que ele tinha vivido: anos e anos de disputa com os próprios irmãos pela herança do tio materno Henrique Sommer, que tinha deixado quase tudo a este sobrinho.
“O meu pai tinha um arquivo das doações em vida que foi fazendo aos filhos, nunca houve um centavo de diferença de um para outro”, exemplifica Luís Champalimaud, hoje com 71 anos.
Mas, na altura de delinear a fundação que queria deixar em legado, sem a presença de familiares, António Champalimaud também olhou para o lado. E identificou, nomeadamente com a Gulbenkian, os erros que queria evitar.
“Tinha a ideia de que a fundação seria algo que devia ter uma vida totalmente independente da família. E porque experiências que conheceu de outras fundações levaram-no a concluir que era a melhor forma, até para evitar eventuais conflitos”, conta à CNN Portugal um amigo próximo da família, que opta por não ser identificado.
“Lembro-me de ele estar impressionado com a disputa que houve quando se conheceu o testamento de Calouste Gulbenkian. E, quando tomo conhecimento da [ideia] da fundação, faço a associação e compreendo que não tenha querido nenhum de nós lá, para não haver disputas. É que a minha família é conhecida pelas disputas. E o meu pai fez de tudo para que não houvesse”, recorda Luís Champalimaud.
A decisão do dono da Siderurgia Nacional e da Cimentos de Leiria (futura Cimpor) foi compreendida pelos herdeiros. Luís Champalimaud diz mesmo à CNN Portugal que nunca leu os estatutos da fundação com que partilha o apelido.
O irmão dono dos CTT
Ficaram todos bem na vida, diz um amigo próximo da família à CNN Portugal. E cada um decidiu como aplicar o património, mantendo uma postura discreta. Incluindo a oitava filha, nascida fora do casamento, que recebeu 60 milhões de euros. “Todos eles têm o seu mérito. Nenhum deles foi alguém que desbaratasse o património moral que recebeu. São pessoas discretas, que seguem o exemplo do antecessor”, defende a mesma fonte.
O Champalimaud mais ativo hoje no mundo empresarial é Manuel, cuja empresa detém uma participação maioritária nos CTT, controlando por isso a empresa de correios.
Mas as áreas de atuação da Manuel Champalimaud SGPS, antiga Gestmin, são bem diversificadas, incluindo a indústria de moldes técnicos com a GLN, a Oz Energia, os Silos de Leixões, o Family Golf Park em Vilamoura ou herdades para exploração cinegética e silvícola.
Prova de que o império continua a crescer foi a compra, em dezembro de 2022, da francesa Novares, com fábricas em Leiria e Vendas Novas, especializada em plásticos para a indústria automóvel.
No conselho de administração, o apelido repete-se várias vezes.
O irmão que seguiu o legado (e que trabalha no caminho da “recuperação”)
“O Manuel nunca teve uma ligação forte ao pai em termos empresariais. Já o Luís, sim. Foi o único que ficou com uma empresa industrial, no Brasil, ao adquirir participações, quer da fundação, quer de outros membros da família”, descreve um amigo próximo da família Champalimaud.
E, se o negócio do cimento no Brasil foi a continuidade do legado, também trouxe muitas dores de cabeça ao filho mais novo desde que o comprou em 2005, com o apoio das sobrinhas Joana e Filipa. Em causa está a Empresa de Cimentos Liz, antiga Soeicom, que foi o primeiro passo de reconstrução do império por António Champalimaud no Brasil após as nacionalizações de 1975. Luís mudou-lhe o nome para que a sigla, ECL, coincidisse com Empresa de Cimentos de Leiria, fundada em 1920 por Henrique Sommer.
Em 2021, a Sábado noticiava que Luís Champalimaud se encontrava em apuros, tendo vendido fazendas, entregue duas herdades icónicas ao BCP e acabado num fundo abutre, devido a uma dívida de 18,4 milhões de euros – o valor que teria ficado por pagar depois da entrega dos ativos como garantia, que acabou vendido ao fundo norte-americano Davidson Kempner.
“Em 2010, assinei um contrato para praticamente dobrar a produção, com o apoio de muita gente. E tentei fazer a abertura da empresa ao mercado, um IPO, não tive sucesso. o projeto de expansão correu muito mal. E, ao mesmo tempo, a seguir veio a crise”, admite o herdeiro à CNN Portugal.
Hoje, reconhece, não conseguiu “dar a volta ainda”, mas está “no caminho da recuperação”. “Devo ter perdido mais cabelo do que património”, compara.
Até porque Luís Champalimaud teve de entregar como garantia o ativo que recebeu com mais carinho do pai, a Herdade do Belo, em Mértola, onde ainda hoje se dedica às caçadas e onde as memórias do industrial tantas vezes regressam.
“Num fim de ano, o meu pai disse que ia vender as herdades. Os filhos mostraram-se contra. Era onde ele recebia os amigos, que começavam a morrer. E o meu pai odiava o “good old times”. Então, para não vender, pediu-nos uma proposta de divisão, de consenso”, recorda.
Luís Champalimaud assegura que, apesar das dificuldades, não perdeu este património. “Fiz uma operação financeira com eles [BCP]. É algo que se faz todos os dias. Mas é claro que é preciso que o banqueiro acredite”, refere.
Umas horas depois da entrevista com a CNN Portugal, Luís Champalimaud haveria de rumar até à Herdade do Belo.