O novo braço de ferro entre os EUA e a China é por causa do TikTok - TVI

O novo braço de ferro entre os EUA e a China é por causa do TikTok

  • Filipe Santos Costa
  • 14 dez 2022, 06:38
TikTok (AP)

App chinesa de partilha de vídeos é suspeita de ser uma ferramenta de espionagem e manipulação a favor de Pequim. Vários estados americanos já limitaram o seu uso, e há uma proposta bipartidária no Congresso dos EUA para proibir a aplicação

Não faltam campos de batalha tecnológica na nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China - há uns anos, foi a guerra de Trump contra a Huawei, este ano foi a proibição de venda de chips de última geração e partilha da respetiva tecnologia, pela Administração Biden. Agora, depois das batalhas dos telemóveis e dos microprocessadores, vamos assistir à batalha do TikTok.

A aplicação chinesa de partilha de vídeos, famosa sobretudo pelas coreografias virais copiadas por milhões de jovens em todo o mundo, é há muito tempo suspeita de servir os interesses geopolítico de Pequim, seja como ferramenta de espionagem, seja como instrumento de propaganda e manipulação da opinião pública fora da China. Essa suspeita tem levado diversos governos estaduais norte-americanos a restringir o uso desta app nos respetivos estados, nomeadamente proibindo os funcionários públicos de a utilizar. 

O assunto é sério e o FBI já alertou para os riscos que o TikTok representa para a segurança nacional dos EUA. A própria Casa Branca está há meses a tentar encontrar uma forma de fazer a quadratura do círculo: permitir que a app continue a ser utilizada nos EUA, pois é muito popular entre milhões de norte-americanos, mas ao mesmo tempo limitar o seu eventual uso abusivo e malévolo por parte de um governo estrangeiro. 

Agora, há uma proposta no Congresso norte-americano que pode significar a guerra total dos EUA à mais popular criação tecnológica da China em muitos anos: representantes do Partido Republicano e do Partido Democrata propõem que o uso do TikTok seja simplesmente proibido nos Estados Unidos. 

A iniciativa foi apresentada ontem, e tem como principal proponente o senador republicano Marco Rubio. O senador, eleito pela Florida, tornou-se uma figura nacional quando tentou ser candidato presidencial pelo seu partido em 2016 (foi um dos muitos adversários que Donald Trump trucidou nessas primárias). Agora, tem cavalgado a onda anti-chinesa que domina uma parte do seu partido, e que foi bastante visível na campanha eleitoral para as eleições intercalares de novembro.

A iniciativa legislativa propõe-se bloquear todas as transações de qualquer empresa de media social baseada na China ou na Rússia, ou sob a influência destes países, informou o gabinete de Rubio num comunicado à imprensa. Ao anunciar o projeto de lei, Rubio assumiu que o seu principal alvo é o TikTok, declarando que "é altura de proibir definitivamente o TikTok controlado por Pequim". "Sabemos que é usado para manipular conteúdos e influenciar eleições", disse o republicano numa declaração. 

A iniciativa de Rubio é tanto mais relevante por ser subscrita também por um congressista do Partido Democrata. Raja Krishnamoorthi, democrata da Câmara dos Representantes eleito pelo Illinois, subscreve o projeto de lei e considera-o "um forte passo para proteger a nossa nação da nefasta vigilância digital e das operações de influência dos regimes totalitários".

“Desinformação”, acusa o TikTok

A resposta do TikTok, pouco depois do anúncio da iniciativa bipartidária, foi bastante dura, classificando como “desinformação” as referências a eventuais usos abusivos da app por parte das autoridades de Pequim. "É preocupante que, em vez de encorajar a administração a concluir a sua revisão da segurança nacional do TikTok, alguns membros do Congresso tenham decidido pressionar para uma proibição politicamente motivada que nada fará para fazer avançar a segurança nacional dos Estados Unidos", disse um porta-voz da empresa numa declaração escrita.

A mesma fonte garantiu que a empresa continuará a informar os membros do Congresso sobre os passos que estão a ser dados (e que estão "bem encaminhados") para "tornar ainda mais segura a nossa plataforma nos Estados Unidos".

A proprietária do TikTok - a empresa chinesa ByteDance Ltd. - tem estado sob enorme escrutínio das autoridades norte-americanas, estando a ser estudadas formas de reduzir a influência chinesa sobre as operações da app nos Estados Unidos. A Comissão de Investimento Estrangeiro dos EUA, um organismo da administração norte-americana que analisa potenciais riscos para a segurança nacional colocados por empresas estrangeiras, está a procurar formas de permitir que o TikTok continue a operar no país, ao mesmo tempo que impede a possibilidade de o governo chinês poder aceder aos dados dos utilizadores. Uma das vias que tem sido analisada pela Administração Biden passa por um acordo, anunciado pelo TikTok em Junho, segundo o qual o tráfego de utilizadores dos EUA é encaminhado através de servidores mantidos pelo gigante norte-americano Oracle.

Na altura do acordo, feito já sob pressão da Casa Branca, o TikTok anunciou a mudança do local de armazenamento dos dados dos utilizadores dos EUA, do seu centro de dados na China para a Oracle Cloud Infrastructure - o objetivo seria "salvaguardar melhor a nossa aplicação, sistemas e a segurança dos dados dos utilizadores dos EUA". 

Já depois desse negócio, a Oracle começou negociações com outros gigantes chineses de tecnologia para a prestação de serviços de infra-estruturas de armazenamento de dados. "Eles precisam de um fornecedor global forte que lhes possa dar a garantia de que os dados serão controlados e geridos dentro das regras de governação e dos requisitos" em cada parte do mundo, disse ao jornal Nikkei Asia Garrett Ilg, presidente da Oracle Japão e Ásia-Pacífico. Segundo este responsável do gigante norte-americano, empresas chinesas de diversas áreas - do retalho às redes sociais - estão a considerar utilizar a infra-estrutura de cloud da Oracle para expandir as operações fora da China.

Departamento de Justiça apreensivo com abusos do TikTok

A Comissão de Investimento Estrangeiro dos Estados Unidos chegou a apresentar um esboço de acordo final sobre novas regras de funcionamento do TikTok, mas este terá sido bloqueado pelo Departamento de Justiça, que supervisiona as operações de contra-espionagem nos EUA, e tem mostrado grande apreensão em relação à plataforma chinesa. Segundo a Bloomberg, a Procuradora-Geral-Adjunta, Lisa Mónaco (nº2 do Departamento), já manifestou em privado a sua preocupação de que um acordo sobre novas regras de funcionamento da app não vá suficientemente longe para manter os dados dos utilizadores dos EUA a salvo da manipulação chinesa.

De resto, são muitas as dúvidas sobre se algum acordo possa realmente impedir que o governo chinês tenha acesso a todos os dados dos utilizadores dos EUA - qualquer que fosse o propósito do acesso a esses dados - e travar qualquer tentação de manipulação de informação ou de interferência no software dos aparelhos que tenham o TikTok instalado.

É sabido que Pequim tem canalizado milhões de yuans em tecnologia para monitorizar e armazenar dados de utilizadores de redes sociais em países estrangeiros considerados críticos, desde logo os Estados Unidos. Uma investigação do Washington Post publicada há um ano revelava que as autoridades chinesas fizeram grandes encomendas de software destinado a recolher dados de alvos estrangeiros a partir de fontes como o Twitter, o Facebook e outras redes sociais e meios de comunicação social ocidentais. 

No caso do TikTok, tudo será mais fácil, pois o governo de Xi Jinping joga em casa - esta é a app chinesa mais bem sucedida no Ocidente, e há bastante tempo que existem suspeitas de que é utilizada como uma espécie de cavalo de Tróia para espiar os utilizadores e manipular a opinião pública.

Os avisos do diretor do FBI

As suspeitas, que circularam de forma mais ou menos discreta ao longo de anos, saltaram para o centro das atenções em novembro, quando o diretor do FBI, Christopher Wray, alertou que o TikTok pode ser usado como uma “arma de agressão” pela China contra os Estados Unidos.

Falando perante o Comité de Segurança Interna da Câmara dos Representantes, Wray reiterou preocupações antigas do FBI em relação à popular aplicação made in China. "Segundo a lei chinesa, as empresas chinesas são obrigadas essencialmente - e eu aqui vou abreviar - a fazer basicamente o que o governo chinês quer que elas façam em termos de partilha de informação ou de servir como instrumento do governo chinês", disse Wray aos congressistas. "Isso por si só é motivo de sobra para estar extremamente preocupado".

Segundo Wray, o governo chinês pode utilizar o aplicativo para controlar milhões de dados ou interferir no software dos utilizadores, e o seu algoritmo de recomendação - o programa que determina quais os vídeos que os utilizadores veem a seguir - "pode ser utilizado para operações de influência, se assim o desejarem".

Wray disse que o FBI está preocupado com a ameaça específica do governo chinês, dizendo que as suas leis podem ser usadas como "uma arma de agressão" contra as empresas americanas e chinesas "para fazer o que o governo chinês quiser que elas façam". Na mesma ocasião, o diretor do FBI ofereceu-se para dar aos legisladores um briefing secreto sobre as preocupações do Bureau em relação à plataforma chinesa, e revelou que a unidade de investimento estrangeiro do FBI estava a dar contributos sobre as novas regras de funcionamento do TikTok nos Estados Unidos, que estão a ser trabalhadas pela Comissão de Investimento Estrangeiro - o FBI, a par do Departamento de Justiça, ter-se-á oposto ao primeiro esboço de acordo apresentado pela comissão, que Wray considerou que não era suficientemente duro para a companhia chinesa.

A batalha perdida de Trump

Embora a Administração Biden ainda procure um acordo, este será cada vez mais difícil tendo em conta as reversas do FBI e do Departamento de Justiça, e também a pressão da nova maioria republicana, que passará a dominar a Câmara dos Representantes a partir de janeiro.

Recorde-se que o primeiro político republicano a declarar guerra ao TikTok foi nada menos do que Donald Trump, quando era presidente dos Estados Unidos. Em 2020, em plena guerra comercial e política com a China, o antigo inquilino da Casa Branca anunciou que iria proibir o TikTok nos Estados Unidos, bem como o Wechat (versão chinesa do Whatsapp), referindo ameaças à segurança nacional. A venda da operação americana do TikTok chegou a ser negociada com a Microsoft, mas tal acabou por não acontecer. Quando, no final do seu mandato, Trump assinou ordens executivas proibindo novos downloads do TikTok e concretizando a proibição da app em território norte-americano, a companhia chinesa recorreu à justiça e conseguiu travar a ordem presidencial. Biden acabaria por revogar as decisões de Trump.

Agora, com maioria na câmara baixa do Congresso, e apoio entre alguns democratas, os republicanos voltam à carga. Em novembro, um grupo de congressistas republicanos divulgaram uma carta com as suas preocupações, acusando a empresa chinesa de ter induzido em erro o Congresso sobre o volume de dados de utilizadores que partilha com a China. "Algumas das informações fornecidas pela TikTok durante o briefing do pessoal parecem ser falsas ou enganosas, incluindo que a TikTok não segue a localização dos utilizadores dos EUA", disseram dois legisladores republicanos de primeira linha numa carta ao CEO do TikTok, Shou Zi Chew.

Agora, com a iniciativa de Marco Rubio, fica aberto o caminho para uma eventual proibição decretada pelo congresso, inviabilizando as tentativas de acordo que decorrem entre a Administração Biden e a empresa proprietária da plataforma. E este pode ser um dos raros casos de acordo entre os dois grandes partidos norte-americanos. 

Mark Warner, senador democrata da Virgínia que é presidente da Comissão de Inteligência do Senado, disse há três semanas que a app é "uma enorme ameaça" – "Todos os dados que o seu filho está a introduzir e a receber estão a ser armazenados algures em Pequim", afirmou o senador do partido de Biden. "Não é apenas o conteúdo que carrega no TikTok, mas todos os dados do seu telefone, outras aplicações, todas as suas informações pessoais, até mesmo imagens faciais, mesmo para onde os seus olhos estão a olhar no seu telefone", acrescentou o republicano Tom Cotton, do Arkansas. 

O TikTok, disse Colton, é "um dos programas de vigilância mais massivos de sempre, especialmente sobre os jovens da América". Parece haver cada vez mais americanos a concordar com ele.

Nove estados já impuseram medidas contra o TikTok

Enquanto não há uma decisão nacional sobre a app chinesa, cinco estados norte-americanos decidiram limitar o seu uso, proibindo os funcionários estaduais de ter a aplicação nos seus telemóveis e computadores. Os estados do Alabama e do Utah foram os últimos a fazê-lo, na segunda-feira, juntando-se a Texas, Maryland e Dakota do Sul. "De forma perturbadora, o TikTok recolhe grandes quantidades de dados, muitos dos quais não têm qualquer ligação legítima com o suposto propósito da aplicação de partilha de vídeo. A utilização do TikTok envolvendo infra-estruturas informáticas estatais cria assim uma vulnerabilidade inaceitável a operações de infiltração chinesa", disse a governadora do Alabama, Kay Ivey, ao justificar a decisão.

O Comissário Federal das Comunicações, Brendan Carr, disse que, para além destes cinco estados que baniram o uso do TikTok por parte dos funcionários públicos, outros quatro tomaram outro tipo de medidas contra a app, "com base nas graves ameaças à segurança que [o TikTok] apresenta".

Uma fonte da empresa lamentou que "tantos Estados estejam a saltar para o comboio, decretando políticas baseadas em falsidades infundadas e politicamente motivadas sobre o TikTok". Em novembro, uma porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China acusou os EUA de "difundir de desinformação e utilizá-la para esmagar empresas chinesas". 

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