Como todas as grandes ideias, a coisa surgiu um dia por acaso. Nuno Miguel era jogador amador, representava o Portomosense e chateou-se com as botas que tinha comprado. Antes de um jogo, decidiu que não queria mais aquilo e foi ao armário procurar umas velhas.
«Encontrei umas botas que usava em iniciado ou juvenil e levei-as para o jogo. A verdade é que aquilo criou um certo burburinho no balneário, por ser um produto que já não se via e que trazia a todos nós algumas boas memórias», conta em conversa com o Maisfutebol.
«Entretanto comecei a interessar-me pelo tema e notei que havia alguma procura destes produtos. Os colegas que jogavam comigo na distrital começaram a pedir-me modelos antigos e a procura foi aumentando, até abrir a minha empresa dedicada só a isto.»
Nuno Miguel fundou assim a UNIC Football Boots. Hoje tem funcionários a trabalhar com ele e percorre o mundo inteiro à procura de chuteiras antigas. Os jogadores profissionais tornaram-se o principal nicho de mercado, mas não são o único: há também grande procura de colecionadores e até de curiosos.
«A verdade é que começou por ser uma brincadeira e acabou por se tornar um negócio. Era um hobby, agora tornou-se sério e há três anos que estou a full time nisto.»
O sucesso da ideia levou Nuno Miguel a abrir uma página nas redes sociais, o que conduziu o negócio até aos jogadores mais mediáticos.
«O primeiro cliente mais sonante foi o Marlon Xavier, quando jogava no Boavista.»
Entretanto já calçou verdadeiros galácticos. Estrelas como Vinicius Júnior, por exemplo, mas também internacionais portugueses como Nuno Mendes e Toti Gomes, brasileiros como Caio Henrique, Paulo Henrique Ganso, Matheus Cunha ou Alex Telles, iranianos como Ghoddos ou Mohebi, mais Edwards, Carlos Vinicius, Kenedy, Ruben Vinagre, Gedson Fernandes, Atiba Hutchinson, Foulquier, Gelson Martins, Taarabt, Gabriel ou Jadson.
São dezenas e dezenas de jogadores, de Portugal, de Espanha, de Inglaterra, do Brasil, enfim, que recorrem aos serviços de Nuno Miguel. Já enviou até botas para o Mundial do Qatar.
«Como é que encontro chuteiras? Esse é o segredo do negócio», responder a sorrir.
«Mas é muito através dos contactos que já tenho, do networking que fui fazendo. Conheço colecionadores, procuro muito na internet, vou a certas lojas que sei que têm stocks antigos que acabaram por não vender, até mesmo em falências que sei que existiram.»
As chuteiras que Zaidu queria para oferecer aos amigos... e acabou a utilizar
Ora nesta sexta-feira vai haver Benfica-FC Porto e para Nuno Miguel não é surpresa ver no relvado do clássico chuteiras que ele comprou: geralmente são modelos antigos que o obrigaram a semanas de trabalho até chegarem aos pés dos craques.
Nesta altura, por exemplo, Eustáquio, Zaidu, Namaso e David Carmo são clientes da empresa, tal como Alexander Bah e Chiquinho do lado encarnado.
«O Zaidu, por exemplo, pediu-nos uns modelos que já tinha usado no FC Porto, modelos que já não existem em loja. A ideia dele era levar essas botas quando fosse representar a seleção, para depois oferecer a amigos, mas a verdade é que acabou por utilizá-las», conta.
«Já o Namaso tem patrocínio com a Puma, mas gosta de usar um modelo anterior da mesma marca. É um modelo de edição limitada que já não existe em lojas e como já nem a marca lhe consegue encontrar essas botas, ele recorre a nós para as arranjar.»
No fundo essa é a especialidade da empresa: encontrar botas raríssimas, que dificilmente se conseguem arranjar de outra forma. Nuno Miguel está disposto a ir ao fim do mundo pelo modelo que o cliente deseja, sendo que quanto mais raro for a chuteira, mais cara sairá, claro.
«Houve um negócio em que tive de apanhar avião, depois comboio e por fim alugar carro, para chegar a uma aldeia pequenina na Bélgica. Aquilo era mesmo o fim do mundo. Um contacto tinha-me dito que numa loja, lá nessa aldeia, havia as chuteiras que eu procurava para um cliente, mas o dono da loja era um senhor muito idoso. Não tinha whatsapp, pouco usava o telemóvel e tive de ir lá negociar com ele», recorda.
«O senhor não estava muito confortável com a venda e fui obrigado a ir falar com ele pessoalmente. Foi difícil, e no fim acabei por ter de lhe comprar um lote de 70 pares.»
Mas o que leva os jogadores profissionais, a maior parte deles com acesso privilegiado aos modelos mais recentes das melhores marcas, sem para isso ter sequer que gastar dinheiro, a investir em comprar chuteiras antigas e desaparecidas do circuito comercial?
Nuno Miguel diz que há, geralmente, duas razões.
«Por um lado, querem modelos antigos que lhe trazem boas memórias: ou porque os transportam para infância, ou porque lhes deram sorte em determinado momento, ou porque coincidiram com os períodos mais felizes da vida deles. O Ricardo Mangas, por exemplo, já assumiu que este tipo de botas antigas lhe recorda a fase da formação, em que era jogador do Benfica e ia às seleções jovens, e por isso mentalmente trazem-lhe confiança», refere.
«Depois há outros jogadores que preferem estes modelos antigos porque lhes trazem mais conforto. Muitas vezes os modelos atuais são feitos com maior percentagem plástico, adaptam-se pior ao pé e alguns jogadores sentem-se menos confortáveis com eles.»
As botas dos sonhos de Darwin Nuñez em criança e as outras que traziam sorte a Alex Telles
Nuno Miguel recorda que Darwin Nuñez foi um bom exemplo do primeiro caso: jogadores que procuram chuteiras que lhes trazem boas memórias.
«Ele estava a jogar no Benfica, viu o nosso Instagram, entrou em contacto e pediu-nos um par específico: era um modelo antigo, de quando ele era apanha-bolas no Uruguai e não tinha dinheiro para comprar aquele tipo de chuteira. Depois o modelo saiu de circulação e ele nunca chegou a tê-lo, mas sempre foi o que queria mesmo ter. Quando estava no Benfica, pediu-nos esse modelo e foi complicado consegui-lo», lembra.
«Encontrei um par dessas chuteiras, mas vinham de fora da Europa e na alfândega foram devolvidas ao país de origem. Depois lá conseguimos que voltassem a enviá-las. Fui entregar-lhas pessoalmente e ele ficou muito contente. »
Finalmente ia poder ter as chuteiras que sempre sonhara calçar. Mas há mais. Outro cliente que apareceu por causa das boas memórias foi Alex Telles.
«Quando estava no FC Porto, muito perto do final da época pediu-nos um modelo específico. Eram umas Nike Hypervenom laranja, com as quais tinha jogado no Galatasaray e tinha sido campeão. Entrou em contacto connosco, queria mesmo muito aquele modelo, porque era um modelo que lhe tinha dado sorte. Queria jogar com elas na parte final da época», conta.
«Encontrámos um par, que pertencia a um colecionador. Ele não estava disposto a vendê-las, acabámos por negociar durante algum tempo e só conseguimos convencê-lo a vendê-las se lhe encontrássemos outro par raro de outro modelo que queria. Em vez de um par, tivemos de trabalhar para encontrar dois. Mas lá conseguimos e curiosamente o Alex Telles voltou a ser campeão com elas, agora no FC Porto.»
Alexander Bah foi uma situação muito semelhante à que tinha acontecido com Alex Telles.
«Estava a terminar o campeonato e ele pediu-nos um modelo que lhe trazia boas memórias. No jogo do título, em que o Benfica se tornou campeão, ele estreou esse par antigo.»
O modelo remake de David Carmo e a recusa de Vinicius Júnior em ser patrocinado
Nuno Miguel diz que há botas muito complicadas de encontrar.
«Aquelas botas icónicas que o Ronaldo Fenómeno usou no Mundial 2002, por exemplo, são talvez o modelo mais difícil de encontrar. Nesta altura, aliás, já é praticamente impossível. São botas que marcaram uma geração e que facilmente podem ultrapassar os mil euros. As botas do Zidane no Mundial 2006, em dourado, ou as botas do Ronaldinho do tempo do Barcelona, que a Nike fazia só para ele, também atingem valores muito elevados.»
Nuno Miguel diz a dificuldade, muitas vezes, não passa só por encontrar esses modelos raros: passa também por encontrar o número de calçado certo desses modelos raros. Uma tarefa concluída traz por isso um sentimento grande de felicidade.
«O Ruben Vinagre pediu-nos um modelo da Nike que demorou largos meses a encontrar», recorda.
«Nós vamos a todo o lado para trazer a bota pretendida. Europa, América, onde for preciso, nós vamos. O problema é que muitas vezes essas botas raras não se encontram nos grandes centros. Estão escondidas em locais improváveis. Também trabalhámos muito com edições limitadas. Há vários jogadores que gostam de se diferenciar e recorrem a nós para conseguir modelos de edições limitadas que já não se encontram à venda em loja.»
Foi o caso, por exemplo, de outro jogador que vai estar no clássico desta sexta-feira.
«O David Carmo pediu-nos uns pares dessas edições limitadas: os célebres modelos remake, que imitam modelos antigos, mas que esgotaram em loja e já são difíceis de encontrar.»
Mas, afinal de contas, e como surgiu Vinicius Júnior nesta história?
«O Vinicius Júnior só usa um modelo específico de chuteiras e recorreu a nós para que lhe conseguíssemos alguns pares desse modelo. É um modelo não muito antigo, tem talvez uns dois anos, mas começa a rarear e já não se vende. Ele talvez se sinta bem com aquela cor e com aquela bota», revela.
«Aliás, todas as grandes marcas andam atrás dele para o patrocinar e ele não quer, porque só quer jogar com aquelas botas.»
Recorde-se que esta história deu pano para mangas, aliás. Vinicius Júnior era patrocinado pela Nike desde os 11 anos, mas rescindiu contrato e a empresa norte-americana avançou para tribunal. O jogador conseguiu mesmo a desvinculação e não aceitou assinar com mais nenhuma marca. Curiosamente agora joga com umas chuteiras antigas da própria Nike, que supostamente lhe trazem sorte, e já recorreu a Nuno Miguel para lhe arranjar mais exemplares.
Essa é, de resto, outra questão: os jogadores patrocinados são obrigados a utilizar uma bota da marca que os patrocina, naturalmente, e têm muitas vezes, pelo menos nos jogos, de calçar o modelo mais recente. Afinal de contas tem de haver contrapartida para a marca.
«O Chiquinho é um desses casos, ele tem patrocínio e calça a chuteira da marca. Mas veio ter connosco para lhe arranjarmos três modelos que gostava muito para colecionar.»
Por isso, esteja atento. Quando na sexta-feira forem 20.15 horas e os jogadores entrarem no Estádio da Luz para disputar mais um clássico do nosso contentamento, olhe para baixo. É possível que nos pés dos jogadores, quais cinderelas dos tempos modernos, estejam calçadas verdadeiras raridades. Daquelas que deram muito trabalho a encontrar.