Eu sou um homem Wiradjuri. Perdoem-me por não aplaudir a coroação do Rei Carlos
“Honro o meu Deus". Sirvo a minha Rainha. Saúdo a bandeira".
Estas palavras iniciaram cada dia de escola para mim. Eram os finais da década de 1960 na Austrália. Na Austrália branca.
A política australiana era branca. A primeira lei aprovada pelo parlamento australiano. quando ele foi formado em 1901, foi a legislação de controlo da imigração, que ficaria conhecida como a Política da Austrália Branca.
Os chamados povos de cor seriam excluídos. A política só foi formalmente abolida na década de 1970.
Durante a maior parte da sua história, a Austrália foi desafiadora e orgulhosamente branca.
Em 1947, o ministro da Imigração Arthur Calwell refletiu o racismo institucional da nação quando se referiu depreciativamente aos chineses, dizendo: “dois Wongs não fazem um branco”.
A branquitude está incorporada na Austrália. Em 1770, um marinheiro britânico, o tenente (mais tarde capitão) James Cook - no auge da “era dos descobrimentos” - reivindicou este continente para a Coroa.
Os direitos do meu povo foram extintos. Passámos a ser súbditos britânicos.
Isso permanece até hoje. É isso que a coroação do Rei Carlos III significará para muitos povos das Primeiras Nações: uma recordatória de uma história de conquista.
O meu povo – um povo das Primeiras Nações - foi invadido, a nossa terra foi roubada.
Foram travadas guerras nesta terra que agora se chama Austrália, onde os aborígenes foram massacrados. A lei marcial foi declarada contra o meu povo, a nação Wiradjuri, durante a década de 1820, naquilo a que se chamou uma “guerra de extermínio”.
Os sobreviventes foram trancados em missões e reservas segregadas. Todos os movimentos eram monitorizados, os confinamentos impostos, as liberdades civis negadas.
Fui criado com histórias da luta do meu povo. Como a do meu avô paterno, que serviu a sua nação na Segunda Guerra Mundial, mas regressou a um país onde não podia partilhar uma bebida num bar com os seus companheiros de guerra. Stan Grant
Os nossos idiomas foram silenciados, o meu pai viu o seu avô ser preso por lhe ter falado na nossa língua na praça pública da nossa cidade natal.
A nossa cultura foi esmagada, as crianças foram retiradas à força das famílias naquilo que ficou conhecido como as “gerações roubadas”.
Os aborígenes eram frequentemente excluídos de locais públicos - hotéis, piscinas, cinemas.
O meu povo enfrentou a possibilidade de ser apagado da Terra. Na verdade, a frase comum durante a Austrália colonial era “afagar a almofada dos moribundos” para uma raça de pessoas à beira da extinção.
Quando nasci, em 1963, eu - como todo o povo das Primeiras Nações - não fui contado nos censos. Não éramos incluídos entre outros australianos.
Isso não iria mudar até 1967.
“Honro o meu Deus. Sirvo a minha Rainha. Saúdo a bandeira".
Porque é que essa promessa da escola me diria alguma coisa?
Lembro-me, mesmo quando era criança, de me sentir desconfortável. Eu sabia, ali alinhado com tantos rostos australianos brancos, que eu não pertencia.
Éramos pessoas de Deus. Como os afro-americanos nas plantações do Sul, no nosso sofrimento recorremos à fé.
Mas a Rainha e a bandeira eram símbolos de tudo o que nos tinha sido feito.
Depois da escola, voltava para casa, para onde aquela Rainha e aquela bandeira me tinham depositado.
Nasci numa família aborígene pobre. Mudámo-nos de cidade em cidade enquanto os meus pais procuravam trabalho.
Mudei de escola mais de uma dúzia de vezes antes de entrar na minha adolescência.
Vivíamos nas periferias; nas margens. Uma caravana itinerante de primos, avós, tios e tias.
Fui criado com histórias da luta do meu povo. Como a do meu avô paterno, que serviu a sua nação na Segunda Guerra Mundial, mas regressou a um país onde não podia partilhar uma bebida num bar com os seus companheiros de guerra.
A minha mãe contou-me como o pai dela foi amarrado a uma árvore como um cão e deixado todo o dia ao sol escaldante depois de ter sido preso por ter bebido álcool, um crime para os aborígenes.
A mãe dela - uma mulher australiana branca - foi rejeitada num hospital quando estava a ter o seu primeiro filho. Era constantemente assediada pela polícia, suspeita de traficar “grogue” (calão para “álcool”) para os negros.
Vivíamos na Austrália, mas era claro para mim que a Austrália era para outras pessoas.
E tudo isto aconteceu sob o selo da Coroa. O nosso país foi roubado sob o selo da Coroa.
Com o selo da Coroa, a polícia prendeu o nosso povo. Eles levaram os nossos filhos.
No seu reinado de 70 anos, nunca a Rainha Isabel pediu desculpa ao meu povo.
Atualmente, continuamos a ser um povo não reconhecido na nossa terra. A Austrália é o único país da Commonwealth - passado ou presente - que nunca assinou tratados com os povos indígenas.
A nossa soberania nunca foi cedida mas, legalmente, não tem estatuto.
Este ano, os australianos vão votar num referendo para reconhecer formalmente os povos indígenas na Constituição australiana, e consagrar aquilo que é conhecido como a Voz - um órgão representativo das Primeiras Nações - para aconselhar o parlamento sobre leis especificamente concebidas para nós.
Esta iniciativa é vista como uma tentativa de travar gerações de fracassos políticos que deixaram os indígenas como a população mais empobrecida e encarcerada da Austrália.
Somos apenas cerca de 3% da nação australiana, mas somos mais de um terço da população prisional. Temos os piores resultados em termos de saúde, emprego e educação de todos os australianos.
Morremos, em média, 10 anos mais cedo do que os outros australianos. Nalgumas partes do país, a esperança de vida de um homem das Primeiras Nações é inferior a 50 anos.
Este ano já enterrei uma sobrinha de apenas 37 anos. O nosso povo lamenta em demasiados funerais.
Mesmo assim, temos esperança. Mesmo que seja uma esperança forjada no desespero.
O nosso povo nunca deixou de lutar pela justiça. Há dois séculos que fazemos campanha pelo nosso legítimo lugar.
Fui criado com “Yindyamarra”, a nossa palavra Wiradjuri para respeito. Respeito aqueles para quem a família real britânica importa.
Mas perdoem-me se não consegui chorar a Rainha Isabel.
Perdoem-me se não vou aplaudir a coroação do Rei Carlos.
Foto no topo: Sydney, Austrália, setembro de 2022: um mural com a rainha Isabel II pelo artista Stuart Sale foi pintado com as cores da bandeira aborígene em Marrickville. Foto de Lisa Maree Williams/Getty Images