Mário foi a pessoa em todo o mundo mais tempo ligada à ECMO e não consegue esquecer isso: três histórias com sequelas sobre três anos de covid - TVI

Mário foi a pessoa em todo o mundo mais tempo ligada à ECMO e não consegue esquecer isso: três histórias com sequelas sobre três anos de covid

Covid-19 (Associated Press)

Mário Rui, 56 anos, uma infeção por covid que o deixou na História por motivos que lhe doem muito. Pedro Cunha, 44 anos, uma infeção - foi dos primeiros portugueses a ter covid, o filho dele "foi a primeira criança em Portugal internada com o vírus". Beatriz Nora, 23 anos, duas infeções que ainda hoje têm sequelas. Março de 2020 - março de 2023, três anos de covid em Portugal. Mas entre toda a dor e todas as consequências, por vezes o pós-covid até traz uma vida melhor - como verá no fim desta reportagem

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Os sintomas eram semelhantes aos de uma gripe mas o corpo rapidamente começou a dar sinais de que seria algo mais. Beatriz Nora, agora com 23 anos, ficou infetada com covid-19 em março de 2020, tendo sido o pai o primeiro a apresentar sinais da doença. Na altura, o nome SARS-CoV-2 já fazia manchetes e o medo imperou. “Hoje teria procurado outro tipo de ajuda, mas tínhamos tanto medo de ir para o hospital”, diz. “Eu e o meu pai tivemos alguns sintomas que precisavam de internamento: falta de ar, muito cansaço, muitas dores de corpo e febre”, conta a agora enfermeira, que em 2020 ainda estudava e vivia com os pais. “Resguardámo-nos porque tínhamos medo.”

O confinamento foi passado com muita incerteza, com muitas dúvidas sobre o que viria aí e de como seria o pós-covid. Hoje ainda tem essa dúvida: Beatriz, três anos depois da infeção, tem indicação para fazer fisioterapia respiratória por ter ficado com sequelas da doença, uma dor e uma fraqueza que ainda a acompanham. “A nível respiratório ainda tenho algumas dificuldades, faço infeções respiratórias muito facilmente, o que não era habitual.” A capacidade respiratória dá também sinais de fragilidade “a subir escadas ou a percorrer longas distâncias”.

Beatriz, natural do Porto, só viu um teste negativo 25 dias depois de ter testado positivo pela primeira vez. E esses 25 dias foram de medo e também de estigma dos que estavam mais próximos, também eles alarmados pelo que estava a acontecer e com receio do que pudesse estar para vir - nos primeiros meses de pandemia, o toque em objetos era evitado ao máximo, as desinfeções minuciosas eram o novo normal. “Senti estigma, tínhamos de estar totalmente em casa, mesmo para as tarefas mais básicas dependíamos dos nossos vizinhos e amigos, até para pôr o lixo fora, e foi difícil arranjar pessoas, toda a gente tinha medo.” 

E já depois do teste negativo, o medo dos outros continuou. “Durante algum tempo senti que as pessoas tinham medo de se encontrar connosco.” E até meses depois o cenário repetiu-se. Em outubro de 2020, Beatriz preparava-se para começar a sua prática clínica como enfermeira mas o vírus voltou a invadir-lhe o corpo. “Isso influenciou a minha vida, exigiu um teste negativo, não tinha sintomas mas estava positiva, então tive de voltar a esperar duas semanas para poder iniciar o estágio, toda a gente tinha muito medo, mesmo os professores.”

Beatriz Nora começou a sua vida profissional como enfermeira em plena pandemia. Esteve duas vezes infetada, uma logo no início de 2020, e ainda hoje tem dificuldades respiratórias. (DR)

Hoje, Beatriz Nora trabalha numa unidade de cuidados continuados e tenta que os pacientes não sintam a solidão forçada que sentiu quando ficou infetada - quando era uma minoria no caos, um fator de risco para todos. Apesar de reconhecer que as pessoas mais idosas de que cuida agora estão mais “tranquilas” perante a pandemia, não esquece o “desespero” que via nas pessoas, “o desespero de não saber o que vai acontecer, não saber porque é que estão sozinhas”. “Cabe-me a mim e aos enfermeiros dar apoio emocional, fazer o papel da família em falta”, explica, assumindo a importância do combate à solidão dos mais velhos que a covid tornou ainda mais notória.

Mário Rui ficou na História com uma história que não consegue esquecer

Solidão é também uma palavra que caracteriza o discurso de Mário Rui, uma solidão que o desligou do mundo mas uma solidão que os profissionais de saúde do Hospital São João, no Porto, não o deixaram sentir nem um segundo ao longo destes três anos de pandemia. Mário foi a pessoa em todo o mundo mais tempo ligada à ECMO (ExtraCorporeal Membrane Oxygenation, ou oxigenação por membrana extracorporal), foram cinco meses com uma máquina a fazer-lhe as vezes dos pulmões e dos corações, cinco meses com médicos e enfermeiros à sua volta, a dar-lhe apoio, mesmo que o coma o impedisse de perceber isso. Mas percebeu depois, garante. 

“Foi a equipa do doutor [Roberto] Roncon que me foi resgatar entre o sexto e sétimo dia de ser internado no [Hospital] Pedro Hispano. Depois estive sempre com aquela gente a lutar por mim, eles são os meus heróis. À minha volta tinha sempre uma série de pessoas, éramos todos uma equipa, todos a batalhar para salvar vidas.” Mário Rui ainda luta contra as sequelas da covid-19. O diagnóstico a 17 de março de 2020 nada fazia prever o que se seguiria: um internamento em cuidados intensivos, coma, reabilitação, cirurgias e um atestado de 73% de incapacidade. Precisou de uma cadeira de rodas para se deslocar e agora fá-lo com um andarilho. “Mas estou a lutar para o deixar. Ainda estou de baixa médica, estou em recuperação, se calhar não hei de recuperar mais, há de haver um limite e esse limite está a chegar”, diz com a voz a tremer. “Vou emocionar-me, as lágrimas vêm-me aos olhos, sou um chorãozito, fiquei um pouco mais sensível.”

Mário Rui, de 56 anos, é um dos milhares de portugueses que ainda sentem no corpo as marcas da covid - tal como Ana Magalhães e Laurinda Lopes, mãe e filha, das primeiras internadas em Portugal com covid-19 e que já contaram as suas histórias à CNN Portugal. “Fiquei com sequelas nos pulmões, fiquei a saber que tenho osteoporose por ter estado muito tempo inativo, estou paralisado dos joelhos para baixo. Veio tudo no decorrer da covid por ter estado quatro meses em coma. Fiquei paralisado das mãos, mas recuperei um bocadinho, o quanto baste para as poder mexer mas não as consigo apertar ou cerrar o punho”, conta Mário Rui. 

“Quem imagina que isto iria acontecer? Ouvia falar de covid, lembro-me da primeira notícia do fulano que tinha sido infetado. Eu apanhei logo a seguir”, diz, referindo-se a Adriano Maranhão, que testou positivo ainda a 22 de fevereiro de 2020, quando estava a bordo do cruzeiro Diamond Princess.

Três anos depois, Mário Rui ainda está em recuperação. Faz fisioterapia e terapia ocupacional. Ficou com uma série de sequelas e 73% de incapacidade (DR)

Mas apesar de um físico ainda “débil”, Mário Rui orgulha-se da sua mente. “Acordei cognitivamente muito bem, sei de casos que ainda hoje têm dificuldade, mas cognitivamente estou bem”, diz, apressando-se a dar conta de uma série de datas e detalhes que lhe marcaram a vida nestes três anos de pandemia, quase como se de um desafio a superar se tratasse. “Quando o delegado de saúde me mandou para o hospital tinha uma equipa à minha espera, pareciam astronautas prontos para ir para a lua. Ainda brinquei com o anestesista”, lembra-se, dizendo logo de seguida, a rir-se: “Falo muito”.

A boa disposição mantém-se, qual pilar para enfrentar mais um dia de dificuldades, mais um dia de luta. E a essa luta Mário Rui alia a gratidão. “Às vezes dizemos mal do SNS, se não fosse o SNS não estava aqui, tive acompanhamento psicológico e psiquiátrico quando saí do hospital para me tirar essas ideias parvas que às vezes temos. Mas considero-me felizardo, tive pneumologia, ortopedia, consulta da dor, tenho agora reumatologia, tenho uma série de profissionais de saúde do meu lado.”

“Sofri bastante. Tem sido esta a minha recuperação, com percalçozitos pelo caminho”, mas esse caminho, garante, é para continuar a ser feito. “Claro que sim, sempre a lutar” e jamais sozinho. “Fiz muitos amigos que estiveram comigo no hospital, tenho amigos de Guimarães, de Braga, do Porto, há amigos que conhecem amigos que andaram comigo na fisioterapia. Às vezes fazemos uns convívios, vamos lutando juntos. Isto é um marco na nossa vida, é algo que não podemos esquecer e temos de tirar as coisas boas disso, as pessoas que conheci, a luta que fiz e que nunca imaginei ser capaz de fazer. Isto para mim foi uma lição, é uma lição de vida.” Emociona-se.

O Santiago e a “estação espacial”

“Lembro-me muito bem.” Tal como Mário Rui, Pedro Cunha tem em viva memória a chegada da covid-19, a entrada de um vírus desconhecido no seu corpo. “Lembro-me de tudo muito bem, foi muito intenso. Os primeiros sintomas surgiram a 16 de março.”

O jornalista de 44 anos estranhou a intensidade dos sintomas. Praticante de desporto, alarmou-se com a “falta de ar, acima de tudo”, e com “febres muito altas”. Pedro recorda “a sensação de não estar a respirar bem, não é fácil de explicar, nunca tinha sentido nada do género, fiz desporto toda a vida, federado”. Acabou por desenvolver uma pneumonia mas não esteve internado. “Na altura, a linha SNS24 recomendava que não fôssemos ao hospital.”

Lá em casa, num ápice todos ficaram infetados e foi aí começou uma odisseia contra o vírus: dois pais doentes a tentar cuidar de duas crianças doentes, uma delas com mais gravidade e que chegou a ter de ser internada. Tudo isto ainda no (longínquo) mês de março de 2020.

“Fui dos primeiros portugueses a ter covid-19. O nosso filho - chama-se Santiago - foi a primeira criança a ser internada na urgência do [Hospital] São João. Ficou bem mas esteve uma semana internado.” Na altura, foi a mãe que ficou com a criança “numa ala completamente isolada”, quem entrava e saia de lá estava totalmente protegido, “está a imaginar os equipamentos mais robustos?, como máscaras, capacetes, viseiras, parecia que estávamos numa estação espacial”. Ficaram os dois isolados oito dias.

Os primeiros infetados com o vírus apanharam o período do confinamento obrigatório mas também da necessidade de ter um teste negativo para voltar à vida normal, mesmo que num novo normal. “Demorou bastante tempo até ter teste negativo, terei feito uns seis ou sete testes”, recorda Pedro. E sempre fechado em casa. “Na altura senti-me um bichinho do mato. Foi um jogo emocional um pouco complicado.”

Pedro Cunha e o filho, Santiago (DR)

Hoje, Pedro diz que todos lá em casa estão bem. Mas há pequenos sinais que ainda se fazem notar. “O processo de recuperação foi lento, passado uns meses recorri a um pneumologista que me deu uma medicação durante um ano, que é uma medicação compatível para asmáticos. Depois parei um ano e, curiosamente, em dezembro tive uma pequena inflamação brônquica e agora faço a medicação novamente.”

E no fim um relato sem sequelas

Nem tudo na história do marcante mês de março de 2020 é mau. Na altura circulava a primeira cepa do vírus, menos contagiosa, mas muito mais perigosa para a saúde e potencialmente fatal. E o mundo ia fechando as portas aos poucos. 

Ricardo Rampazzo, copywritter de profissão, e Beatriz Cruz, enfermeira, estavam a viajar pelos Estados Unidos quando o então presidente Donald Trump decide fechar as fronteiras. O retorno a Portugal teve de ser antecipado e, perante a dúvida - uma vez que tinham estado num outro país e viajado com várias pessoas de avião -, os dois isolaram-se em casa “com receio de passar a alguém”, mesmo não tendo qualquer sintoma na altura. 

Ricardo começou com dor de garganta e um pouco de febre, “dois ou três dias e fiquei bem”. Já Beatriz desconfiou de que tinha covid-19 quando perdeu o olfato e o paladar, um sintoma pouco comum na altura. “Ainda não se falava nisso, mas era estranho.”

Ao contrário de uma boa parte dos primeiros infetados, tanto Beatriz como Ricardo saíram ilesos: os sintomas foram suaves e autolimitados e, ao dia de hoje, não apresentam qualquer sequela. Mas, mesmo sabendo que estavam a passar melhor, o facto de na altura ser “tudo muito desconhecido faz com que o teste positivo seja chocante - era uma doença contagiosa, daquelas em que uma pessoa fica assustada”, conta Beatriz.

O facto de ser profissional de saúde fez com que tivesse uma postura cautelosa. Apesar de, na altura, os EUA não serem um país de risco para Portugal, Beatriz achou que devia ficar em casa porque “trabalhava numa unidade de cuidados intensivos com bebés”. “O SNS não me queria deixar ficar em casa mas sabia que devia estar. Ainda bem que fizemos os testes porque viemos a testar positivo”, recorda. “Nunca voltei ao trabalho até ele testar negativo, o Ricardo teve muitos inclusivos.” Ao todo foram dois meses.

Ricardo e Beatriz nos Estados Unidos, a última viagem que fizeram antes dos confinamentos. Testaram positivo no regresso, mas sempre com sintomas ligeiros. (DR)

Beatriz e Ricardo, 27 e 31 anos, entretanto trocaram Lisboa por Marinha Grande. “Para ser muito sincero, aumentou a nossa qualidade de vida, sendo muito frio e direto”, diz Ricardo. Tal como muitos outros portugueses, os dois aproveitaram algumas das mudanças impostas pela covid para mudarem também de vida: trocaram um grande centro urbano por uma zona mais calma e Ricardo conseguiu ainda fazer do teletrabalho a regra, quando para muitos ainda continua a ser a exceção. 

“A pandemia revelou muita coisa que não sabíamos que era possível fazer, como o teletrabalho. Eu posso facilmente trabalhar a partir de casa, foi algo que foi uma solução temporária e que se mostrou que funcionava muito bem”, explica Ricardo. O trabalho remoto permitiu que saíssem de Lisboa “porque as rendas eram muito altas” e, entretanto, Beatriz também foi colocada em Leiria, estando mais próxima.

“Dentro do que aconteceu, acabou por ser positivo, acabou por abrir horizontes”, frisa Ricardo Rampazzo.

Beatriz concorda e mostra-se otimista com o que vem aí. “Estamos num ponto de viragem, as vacinas permitiram isso. O vírus vai continuar a circular, vai haver uma ou outra pessoa internada, aliás, ainda ontem tive contacto com um doente de covid, mas agora é completamente diferente a forma como lidamos com isso nos hospitais.”

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