O seu filho acorda de madrugada para jogar com os amigos? As crianças podem ser viciadas em videojogos. Quais os sinais de alerta e o que podem fazer os pais - TVI

O seu filho acorda de madrugada para jogar com os amigos? As crianças podem ser viciadas em videojogos. Quais os sinais de alerta e o que podem fazer os pais

Crianças

Há crianças que acordam de madrugada para jogar com amigos, enquanto os pais dormem, sem saber o que os filhos estão a fazer. São casos extremos, mas a dependência dos mais novos das tecnologias é real. Os pais assumem-se preocupados e os especialistas deixam conselhos

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Nasceram com a tecnologia na ponta dos dedos e ela está no seu dia a dia, em demasia segundo os especialistas. É difícil determinar quando uma criança é viciada em jogos, mas há casos extremos que mostram que o fenómeno é real. Há crianças que acordam de madrugada para jogar online, às escondidas dos pais. E não se trata daquelas notícias que chegam do estrangeiro, acontece em Portugal. E quanto mais velhos, maior o perigo, porque, no caso dos jogos online, este é também o mundo dos predadores sexuais. Duas mães partilharam com a CNN Portugal as suas lutas diárias e um psicólogo explicou os sinais de alerta a que pais e educadores devem estar atentos.

O vício nos jogos atinge principalmente a faixa etária dos 18 aos 24 anos. Mas os mais novos não estão imunes aos perigos e às consequências. 

O caso de Luana Pereira trouxe à luz do dia a questão do vício. Desapareceu a 30 de maio do ano passado, pouco antes de fazer 17 anos. Oito meses depois foi encontrada pela Polícia Judiciária. A jovem tinha "uma dependência muito intensa do jogo online", segundo as autoridades, e o alegado raptor ter-se-á aproveitado disso para criar uma relação. Conheceram-se quando Luana tinha 14 anos. O tempo todo que esteve desaparecida passou-o praticamente fechada num quarto, sem sequer ter acesso a luz natural. E não o fez contra a sua vontade, de acordo com a PJ.

“Uma criança com oito, nove anos começa a ter um percurso de risco” 

“Uma dependência só se torna uma dependência se antes foi um hábito. E um hábito só se torna um hábito se foi acontecendo de forma sistemática. Portanto, a melhor prevenção será nunca deixar que o videojogo chegue à categoria de hábito, para que nunca se venha a tornar uma dependência”, explica o psicólogo João Nuno Faria.

A este especialista também chegaram os relatos de crianças que acordam de madrugada para jogar, enquanto os pais dormem. Mas, admite, não é fácil identificar a “adição” nas crianças, dependendo das idades.

“Deixe-me dizer que aos cinco anos não é assim uma idade em que se possa afirmar com muita convicção a questão da adição. Há muita coisa a acontecer na vida da criança, ainda não há dano suficiente causado pelo videojogo”, aponta.

No entanto, “uma criança com oito, nove anos começa a ter um percurso de risco, começa a ter alguns comportamentos associados ao videojogo, a jogar sistematicamente, a não estudar tanto como deveria e a mentir sobre o tempo” que está a jogar, reconhece.

E quanto mais velhos, maior o perigo. “Em termos de autonomia, a criança com sete, oito, nove anos ainda está muito dependente dos pais. Um jovem de 12, 13, 14 já fecha a porta do seu quarto, já tem capacidade de se autonomizar, de controlar o seu próprio ambiente em prol do jogo.”

Os casos que conhece de crianças que acordam de madrugada para jogar às escondidas dos pais, muitas vezes em grupo, com os colegas da escola, ou até com desconhecidos, envolvem menores a partir dos 11 anos. “Está a acontecer isso e está a acontecer mais. Estão a acontecer conflitos abertos entre familiares, pais que agridem filhos, filhos que agridem pais, pais que destroem consolas, teclados, headphones em momentos de pura fúria.”

"É como se fosse uma droga, é assustador”

Catarina tem um filho de 12 anos e, apesar de poder não ser um caso extremo, as lutas são diárias. Ainda não sentiu necessidade de procurar ajuda profissional, mas não exclui a possibilidade. “Eles estão completamente agarrados ao telemóvel, é como se fosse uma droga para mim”, desabafa. 

“Os miúdos hoje em dia só pensam nos telemóveis, nos tablets, nas televisões, estão sempre agarrados tanto aos jogos como agora aos TikToks ou redes sociais. Para mim é assustador. É assim com o meu filho, mas também com os amigos dele.”

A facilidade com que o filho sempre se ligou às tecnologias levou a que apenas este ano letivo lhe desse um telemóvel, mesmo sabendo que usava o dos amigos para jogar em alguns intervalos. Para evitar excessos, colocou uma aplicação no telefone dele e no seu e estabeleceu um limite diário de três horas de utilização. E quando quer, mesmo à distância, consegue cortar-lhe o acesso aos jogos.

“Precisam sempre de ganhar pontos, passar níveis” e dão exemplos de colegas que já o fizeram e eles também querem. Parece que “há competição". "O amigo A, B, C, D também passa níveis e eles têm de estar no mesmo nível.”

Às vezes, conta, Catarina diz ao filho: “Esquece os TTT! Porque é tudo em T, televisão, telemóvel, tablet. Só a consola é que não é T, mas está na televisão. É muito complicado.”

Mesmo sendo bom aluno, este ano as notas baixaram e o próprio reconhece que “deu muita importância ao telemóvel”. Como mãe sabe que o filho sempre se distraiu a ver televisão. Ainda o faz, nota Catarina: “Quando ele tem um problema fica absorto na televisão, porque na televisão não há problemas. É uma forma de fuga.”

Além dos jogos, o filho também passa muito tempo na rede social TikTok. Ao nível do comportamento, esta mãe já percebeu que deixa muitas vezes “de cumprir as tarefas que lhe são determinadas". "Esquece-se, porque o pensamento dele não está na tarefa, está no que vai terminar ou no que vai fazer no jogo.”

Durante a semana, enquanto não chega a casa, o filho usa o telemóvel. “Quando chego, as coisas mudam. Eu digo, acabou, não há, não quero, vamos fazer outra coisa. Vais ajudar-me a fazer o jantar, vais ajudar-me a pôr a mesa, vai tratar das coisas para amanhã, vai arrumar a mochila, vai tomar banho.”

Ao fim de semana, Catarina procura atividades fora de casa para fazer com o filho, mas às vezes assume que cede: “Só que depois ele pede, diz ‘só um bocadinho, só um bocadinho’.” Mas passado uma hora é ainda mais difícil fazer com que largue o jogo porque “tem sempre de acabar alguma coisa.”

Por enquanto, Catarina sente que é capaz de controlar ‘a coisa’: “Ainda ganho, mas não sei por quanto tempo vou conseguir.”

Como devem os pais reagir?

Um dos principais problemas que os psicólogos identificam nas famílias com que se cruzam é a “inconsistência”. Ou seja, “pais que quando estão mais zangados aplicam medidas radicais de tirar o computador, desligar routers, acabar com a internet em casa". "E depois, num outro momento, quando estão mais calmos e são envolvidos pela culpa do que fizeram, tornam-se extremamente permissivos e aceitam que se ultrapasse os limites”, observa João Nuno Faria.

Nenhuma criança ou adolescente irá reagir bem se ficar sem o seu computador, o seu tablet ou o seu smartphone. Choram, zangam-se, ficam tristes. Mas, segundo o psicólogo, isto é “algo que pode trabalhar tranquilamente".

"A forma como se reage à privação da experiência vale a pena trabalhar”, sublinha. “Está muito na forma com que se tira da mão”, alerta. Quando dá formação a pais tenta fazer uma comparação para que estes percebam o que quer dizer. “Convido os pais e as mães a pensarem que estão num cabeleireiro a cortar ou pintar o cabelo” e depois, a meio, “aparece alguém que diz vamos jantar agora mesmo”.

E, na verdade, nem sempre os pais são um bom exemplo. Seja quando também usam tecnologias nas horas das refeições ou falam entre si a olhar para os telemóveis. Sem contacto visual. “Nós, entre adultos, permitimos muitas vezes estar a falar uns com os outros, com alguém ou os dois, a olhar para o smartphone.”

“É muito importante que as famílias tenham regras muito claras, quer para os adultos, quer para os mais novos, sobre o que é uma utilização saudável da tecnologia”, defende o psicólogo.

"Ele não jogava no dele, jogava no dos amigos. Era uma luta inglória"

O filho de Margarida tem 10 anos. Já tinha um tablet e este ano recebeu um computador por causa da escola e dos trabalhos. Os pais também cederam, já depois do ano letivo começar, e deram-lhe um telemóvel mais antigo que tinham em casa. "Tornou-se essencial poder falar com ele, por causa das aulas e dos furos", justifica. No entanto, todos os colegas já tinham telemóvel e vários jogos instalados. O filho de Margarida só tem um jogo e após um demorado "sim". "Ele não jogava no dele, jogava no dos amigos. Era uma luta inglória", admite.

Este também não é considerado um caso extremo, mas há coisas que preocupam Margarida. Quando está sem tablet ou telemóvel pergunta sempre: "'O que é que eu faço?' É como se se sentisse perdido", diz. Assim que chega a casa "a primeira coisa que faz é pegar no tablet" e depois desliga-se da realidade.

"São muitas as vezes que falo com ele e não me responde. Agora digo-lhe para fazer pausa e olhar para mim", assume. Entre jogos de futebol e os shorts do YouTube [vídeos curtos, com duração máxima de 60 segundos], perde duas horas por dia. Ao fim de semana são mais. Mesmo assim, até agora, nunca abdicou de nenhuma atividade para "jogar" e tem várias atividades físicas.

Depois do jantar não há tecnologia e essa regra é para cumprir. As exceções são ponderadas pelo pai e pela mãe. Procuram também mostrar-lhe o que pode fazer além de jogar e ver vídeos. Margarida tenta usar, sempre que pode, jogos educativos, aproveitando os seus 10 anos: "Assim joga, mas aprende ao mesmo tempo." 

Quando os vídeos em demasia afetam a língua portuguesa

Começa a ser comum encontrar crianças mais pequenas que falam português com sotaque brasileiro. “Não deveriam ainda ter essa linguagem, mas a verdade é que falam com sotaque e isso só pode significar que têm muita exposição”, assume João Nuno Faria. 

E não tem dúvidas de que, por contingências profissionais e gestão familiar, “muitas famílias recorrem à Internet, e ao Youtube em particular, como fonte de entretenimento dos filhos”. Algo que levam para a escola, partilham entre colegas e incentivam-se uns aos outros a ver. Acaba por ser “uma fonte de estimulação que está a superar as fontes de vida do dia a dia, as que serão mais importantes para a vida da criança”, aponta.

Já entre as faixas etárias mais velhas, há “miúdos que conseguem encontrar expressões em inglês e não as encontram em português”.

Para o psicólogo, nesta situação, o papel da escola “tem de assumir uma maior relevância” para adequar a linguagem ao país em que estão e as próprias famílias precisam “definir limites” e, até, estar atentos “à forma como se fala”. Eventualmente, alguns acham engraçado “o abrasileirar da conversa e vão permitindo”. Na verdade, nestas idades ainda não interfere nas rotinas diárias. 

“Os pais, ao não verem os danos do presente, não perspetivam os potenciais danos do futuro” e quando chegarem ao primeiro ano podem encontrar “enormes interferências em termos de ampliação da língua portuguesa, podem substituir certos termos por outros, podem ser penalizados” nas aprendizagens.

O desafio de ensinar que a tecnologia é mais do que jogar ou ver vídeos

Cada criança é uma criança, cada família uma família. Um dos maiores desafios é também ensinar que a tecnologia e a Internet é muito mais do que jogar ou ver vídeos. “Há todo um conjunto de várias experiências que se pode ter na procura de informação, a ‘visitar’ locais, a ‘ver’ cultura”, sugere o psicólogo.

João Nuno Faria ressalva que “não é preciso jogar todos os dias”, até porque “se jogar todos os dias estou a contribuir para a criação de um hábito”. Porque não aos fins de semana? Porque não de forma aleatória? “Criar uma espécie de aleatoriedade em termos dos dias em que joga é a melhor forma para combater um hábito.”

Além disso, a importância das horas a que se começa. “Tentar evitar ao máximo horas que colidam ou interfiram com as rotinas” para que não seja preciso interromper de forma abrupta. Os videojogos, sobretudo online, podem trazer consequências para os jogadores que saírem antes do tempo previsto. Em jogos de equipa, quando se perde um elemento, “a probabilidade de serem vitoriosos é baixíssima” e os jovens sentem que deixaram mal “a equipa”.

Outro aspeto importante é “o tempo”. Quanto tempo podem/devem jogar por dia? O especialista lembra as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS): “Até aos 5 anos, nunca mais do que uma hora sempre supervisionada por um adulto. A partir dos 5 anos e até aos 8 anos, uma hora e meia. Depois um máximo de duas, três horas.”

Apesar da OMS não diferenciar o tipo de ecrãs, João Nuno Faria considera que existem “diferenças entre uma experiência passiva de estar a ver por exemplo Netflix num tablet ou uma experiência ativa de estar a jogar um videojogo”. Já o YouTube considera que “é o ponto intermédio entre o videojogo e a Netflix, ou seja, somos uns espectadores passivos”, no entanto, estes conteúdos “têm algumas propriedades aditivas". "Portanto, costumo pôr o YouTube na categoria dos videojogos”, avisa.

Procurar atividades alternativas é essencial. “Eu tenho miúdos que chegam ao pé de mim e já depois de avançarmos um pouco na terapia dizem: ‘mas o que é que eu faço ao fim de semana? Não tenho alternativas’. Claro que há muitas alternativas e essas alternativas surgem precisamente quando o indivíduo não está a jogar e tem de se entreter. E nós, seres humanos, somos mestres em encontrar formas de entretenimento.” Aqui a família pode ter um papel fundamental.

O conteúdo que os pais permitem que os filhos vejam também deve ser avaliado, pois “há um sistema de classificação etária”. “A primeira prevenção do lado parental será apropriar os conteúdos à capacidade de desenvolvimento da criança”, garante. Por fim, “a aplicação dos mecanismos de controlo parental. Saber o que é que a criança joga, por onde é que navega, a que conteúdos é que está exposto”. Mesmo quando são mais velhos, e já defendem a sua privacidade, os pais devem pedir para ver os aparelhos utilizados pelos filhos porque “quem não deve, não teme” e os pais “têm essa legitimidade”.

Quais os sinais a que os pais devem estar atentos?

Foi em 2013 que, pela primeira vez, a Associação de Psiquiatria Americana (APA) reconheceu a perturbação do vício em jogos e chamou-lhe “Internet Gaming Disorder” [Distúrbio do Videojogo na Internet, na tradução literal]. Depois, em 2018, foi a Organização Mundial de Saúde a dar-lhe um nome - “Gaming Disorder” [Distúrbio do Videojogo].

A APA identificou nove critérios e “definiu que se cinco estivessem presentes ao longo de um ano podia dizer-se que tinha critérios suficientes para o diagnóstico de perturbação associada aos videojogos”, explica João Nuno Faria, que resume à CNN Portugal os critérios definidos:

  1. “Um pensamento repetitivo, obsessivo, exclusivo em torno dos videojogos”;

  2. “Uma reação emocionalmente tensa, em termos de zanga ou tristeza, quando o indivíduo é privado do jogo”;

  3. “Necessitar de cada vez mais tempo de jogo para se sentir satisfeito”;

  4. “Tentar diminuir, tentar alterar o comportamento, mas não conseguir”;

  5. “Perder outros interesses que anteriormente tivesse na sua vida em detrimento do interesse pelo videojogo”;

  6. “Apesar dos danos causados por causa do videojogo, não há uma alteração do comportamento. Mantém o padrão mesmo na presença de experiências que o prejudicam como, por exemplo, as notas baixarem na escola, a perda de amigos, conflitos parentais, conflitos conjugais”;

  7. “Mentir sobre o tempo de jogo e sobre quanto tempo esteve realmente ligado”;

  8. “Utilizar o videojogo como fuga a determinadas experiências emocionais do dia a dia que são difíceis de lidar como, por exemplo, a culpa, a vergonha, a ansiedade e a depressão”;

  9. “Dano ou perda de relações significativas”.

Já a Organização Mundial de Saúde “estipulou três critérios que também devem estar presentes ao longo do último ano” e que “são mais abrangentes”, mas acabam por englobar os nove da APA, sublinhou ainda João Nuno Faria:

  1. “O primeiro critério tem a ver com uma utilização excessiva em termos de frequência, duração e intensidade”;

  2. “O segundo tem a ver com a perda dos outros interesses, em detrimento do interesse do videojogo”;

  3. “E o terceiro remete para, apesar dos danos causados na vida do indivíduo, não se verificam esforços significativos para alterar o comportamento”.

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