"Temos de começar a pensar também em decrescimento”? A ideia é polémica, mas o PIB já não chega para avaliar o bem-estar - TVI

"Temos de começar a pensar também em decrescimento”? A ideia é polémica, mas o PIB já não chega para avaliar o bem-estar

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  • Mariana Espírito Santo
  • 23 abr 2023, 10:59
Preços, dinheiro, euro, inflação, economia. Foto: Marijan Murat/picture alliance via Getty Images

As preocupações ambientais têm estado na ordem do dia e muitos questionam o papel do crescimento económico na sustentabilidade do planeta. Soluções não são consensuais mas indicadores devem evoluir.

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"Temos de começar a pensar também em decrescimento”. A frase não é de um economista, mas sim de um ator e encenador, João Reis, que acabou por despoletar uma discussão sobre os contornos desta teoria que propõe colocar um travão na economia para salvar o planeta.

A ideia de descolar o crescimento do desenvolvimento é polémica e divide opiniões, mas tem vindo a ganhar tração numa altura em que as alterações climáticas são uma ameaça cada vez mais presente. Muitos são os críticos da teoria, mas raro é quem não admita que é necessário fazer adaptações à forma como olhamos para a economia e a sociedade para evitar atingir os limites do planeta.

Economistas ouvidos pelo ECO assumem também que o crescimento do PIB pode não ser um indicador fiável do bem-estar, pelo que sugerem mais métricas a serem tidas em conta na avaliação do desenvolvimento de uma sociedade.

O chamado degrowth (decrescimento, em português) é “uma forma de discutir o crescimento que já vem de há muito: ainda nos anos 70 no âmbito do clube de Roma, que produziu um relatório sobre essa matéria”, explica José Reis, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, ao ECO. “No fundo, está relacionada com ideia de que o crescimento em si mesmo não é desenvolvimento, ou seja, o crescimento pode ser uma condição para o desenvolvimento mas não é necessariamente garantido que leve a desenvolvimento”, continua.

A sustentabilidade está também na génese desta teoria, que diz que o “crescimento que temos tido e podemos ter é tão utilizador de recursos que vai depauperar os recursos de que dispomos, porque os usa intensivamente e vai criar efeitos contraproducentes que são os ambientais”.

Agrega assim duas ideias: de que o crescimento económico é “meramente uma avaliação quantitativa e não nos diz nada sobre qualidade das sociedades”, bem como a noção de que “atingimos um nível tal de exaustão de recursos e degradação ambiental que é necessário decrescer”.

Segundo os dados do Banco Mundial, o PIB mundial a preços constantes multiplicou-se por quase oito vezes entre 1961 e 2021. Já o PIB português era, em 2021, seis vezes maior do que o registado 60 anos antes. E vivemos melhor, mas será que é “em média seis vezes mais”? “Provavelmente não”, concede José Reis.

Pedro Conceição, economista português que é responsável pelo Relatório do Desenvolvimento Humano, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, também salienta que a relação entre o crescimento económico e o desenvolvimento não é linear. “O crescimento económico e a expansão das economias é importante porque as pessoas precisam de rendimentos para comprar bens e serviços importantes, mas no índice de desenvolvimento humano, o rendimento nacional bruto (RNB) não entra de forma linear”, explica ao ECO.


Portugal em 38º lugar no Índice de desenvolvimento humano

“À medida que cresce, a importância diminui”, destaca, sendo que é aplicada uma “transformação logarítmica do RNB, porque o que importa não é o crescimento económico linear infindável: à medida que os países ficam mais ricos, a contribuição para o desenvolvimento vai sendo menos importante”, explica.

O índice avalia três “dimensões-chave do desenvolvimento humano: uma vida longa e saudável, ser instruído e ter um padrão de vida decente”. Portugal situa-se no 38º lugar no índice de desenvolvimento humano, segundo a última edição de 2021, tendo subido um lugar face a 2020. A liderar o índice está a Suíça, seguida pela Noruega e Islândia.

O tema tem já sido mencionado a nível internacional, sendo que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU citou recentemente o decrescimento num relatório e o Parlamento Europeu está a organizar uma conferência chamada “Beyond Growth” na próxima primavera. Vai contar com a participação de Pedro Conceição, num painel sobre ir além do indicador do PIB, sendo que também está prevista a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na conferência.

Estamos demasiado presos ao PIB?

A métrica do crescimento do PIB é assim outro dos pontos a ser discutido à luz desta teoria. O economista João César das Neves diz ao ECO que este pode não ser um bom indicador do bem-estar: “É apenas o mais usado, e considera um elemento muito relevante, o rendimento, mas não é de todo um bom resumo do bem-estar”. “Tal como a nossa conta bancária não é um bom resumo da felicidade pessoal”, acrescenta.

Já Pedro Brinca salienta que “existem muitas limitações ao PIB enquanto medida de bem-estar, e por isso é muitas vezes acompanhado por outros indicadores complementares que ajudam a descrever melhor as condições de vida de um país, como a taxa de desemprego, taxa de pobreza, esperança média de vida, mortalidade infantil, indicadores relacionados com a segurança”. “Não obstante é uma medida que é objetiva, tem regras específicas de contabilização, é comparável no tempo e entre países e tipicamente encontra-se fortemente correlacionada com a maioria das outras variáveis que medem o bem-estar das populações”, defende.

E que outros indicadores se poderiam usar? César das Neves destaca que “temos de ter em conta indicadores de saúde, de educação e cultura, de condições de vida, de consumo, de pobreza, de desigualdade, além de elementos mais difíceis de medir como a liberdade pessoal, a democracia política, a confiança comunitária, a paz e civilização nacional, serenidade espiritual”.

O economista da Nova SBE também aponta que há “indicadores sintéticos, como o índice de desenvolvimento humano, e que para além do PIB captura outras dimensões como a esperança média de vida e os níveis de educação”. “Existe o life satisfaction index, que faz inquéritos as populações dos diferentes países para perceber quão felizes, numa determinada escala, as pessoas se sentem”, no entanto estes “encerram em si uma subjetividade muito grande e encontram-se fortemente correlacionados com o PIB”, ressalva.

Pedro Conceição, por sua vez, defende que “há um problema na medição do PIB: se fosse medido de forma mais correta, dando conta da degradação ambiental, o que aparece como crescimento económico muito alto nos países poderia não ser assim tão elevado”. Isto já que “na verdade aquilo que consideramos o crescimento económico, utilizando os padrões em vigor, não dá conta daquilo que os economistas chamam externalidades”.

Tomando o exemplo da destruição de uma floresta para produzir papel, é uma atividade que “aumenta o PIB mas não dá conta da destruição do ecossistema”. Por esta razão, já estão a ser desenhadas algumas formas de medir a degradação do capital ambiental, sendo que o responsável adianta mesmo que a comissão estatística da ONU aprovou um novo sistema de contabilidade económica ambiental, “paralelo à contabilidade nacional”, mas que ainda não foi implementada.

É de salientar que há outros movimentos que defendem que se deve olhar para além do PIB, como é o caso da economia donut. Esta consiste em dois anéis, que combinam os limites do planeta, que não devem ser ultrapassados, com as bases sociais, que devem ser garantidas. O modelo foi criado pela economista britânica Kate Raworth, da Universidade de Oxford, e apresentado primeiro num artigo, em 2012, e depois num livro, publicado em 2017.

O “donut” proposto por Kate Raworth

No entanto, para Pedro Conceição esta pode não ser a abordagem certa. “Não sei até que ponto esta ideia de que há limites é mobilizadora de ações, que inspirem pessoas a caminhar na direção da sustentabilidade”, defende.

Decrescimento pode não ser “viável” mas economia “deve ter em conta os custos que gera no ambiente”

As opiniões dividem-se sobre o decrescimento, mas muitos economistas consideram que não é realista ou viável e há quem diga também que é “dispensável”. Apesar das críticas, já começa a ser claro que é necessário “ter em conta os custos que o crescimento da economia gera no ambiente”.

Há algumas figuras sonantes do lado dos críticos desta teoria, ainda que admitam que é necessário mudar algo para fazer face às alterações climáticas. No ano passado, Bill Gates disse que esta teoria era irrealista: “Não acho realista dizer que as pessoas vão mudar completamente seu estilo de vida por causa de preocupações com o clima”, disse Gates a Akshat Rathi num episódio do podcast da Bloomberg, “Zero”.

A solução, de acordo com Gates, é criar melhores alternativas tecnológicas onde seja o mesmo preço ou mais barato atingir o mesmo objetivo de maneira consciente do clima.

Já Martin Wolf, Chief Economics Commentator do Financial Times, mostrou-se cético relativamente ao decrescimento, defendendo ao invés que o foco para salvar o planeta devia estar na transformação tecnológica, na conferência de sustentabilidade do Jornal de Negócios realizada este mês.

Por cá, o economista Pedro Brinca é taxativo: “O decrescimento – a ideia de que temos de criar menos riqueza de forma a não pormos em causa a saúde do planeta – não é uma política que seja viável política ou socialmente”. O economista defende que este tipo de raciocínio ignora “o impacto que a inovação tecnológica tem no aumento da produtividade, da capacidade de com os mesmos recursos, produzirmos muito mais, ou seja, a ideia de que uma maior produção implica necessariamente uma cada vez maior exaustão dos recursos é desafiada pelo facto de que a ‘disponibilidade’ de recursos não é definida apenas pela sua disponibilidade física – é também definida pela capacidade que temos de os utilizar de formas cada vez mais eficientes”.

Mesmo seguindo esta tese, o economista admite que “é óbvio que existem graves problemas ambientais que têm de ser resolvidos”, considerando ao invés que “existem maneiras mais inteligentes de os resolver”. “Os incentivos para a investigação no melhoramento das energias renováveis e na sua aplicação é uma ferramenta que tem permitido a que em algumas geografias as emissões possam ser mais baixas apesar de as necessidades energéticas poderem até ter crescido”, nota.

Para João César das Neves, pode fazer sentido discutir o decrescimento “em certos setores, regiões ou estratos”. “Em geral, o crescimento da economia continua a ser indispensável, mas deve ter em conta os custos que gera no ambiente”, pelo que “se esses custos forem integrados (e há várias formas de o fazer há muito apresentadas), é possível crescer de forma sustentada”, diz.

Já Pedro Conceição defende que “o que inspira as preocupações do degrowth é legítimo, porque há uma correlação muito grande entre crescimento económico e degradação do ambiente e alterações climáticas”. No entanto, admite que “mecanicamente reduzir o crescimento não é necessariamente a solução”.

“O problema não é o crescimento económico em si, mas vem do facto que o crescimento económico hoje em dia é alimentado pela produção de energia que utiliza combustíveis fósseis”, bem como a utilização de materiais, como o plástico, onde não há perspetiva do ciclo de vida, considera.

Para o responsável do relatório de desenvolvimento publicado pelo programa da ONU, a solução “passa por investimentos em energias renováveis e isso pode até criar crescimento económico”.

José Reis também defende que há a possibilidade de, “se tratarmos bem as questões ambientais e sociais, podermos ainda continuar a crescer porque os desequilíbrios não se verificariam”.
 

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