Jogou com Ronaldo e tornou-se mestre dos hambúrgueres artesanais - TVI

Jogou com Ronaldo e tornou-se mestre dos hambúrgueres artesanais

Francisco Saturnino Cunha esteve na formação do Sporting e do Benfica mas desistiu do sonho do futebol profissional aos 19 anos, devido a lesões; passou pela moda, trabalha com vinhos no negócio da família e é atualmente sócio da maior cadeia de hamburguerias artesanais de Portugal

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«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

Francisco Saturnino Cunha nasceu uma semana depois de Cristiano Ronaldo, em fevereiro de 1985, entrou nos infantis do Sporting ao mesmo tempo que o prodígio vindo do Funchal mas chega aos 35 anos com um percurso completamente distinto.

Cristiano Ronaldo prepara-se para disputar o 1000.º jogo por equipas principais, brilhando ao mais alto nível com a camisola da Juventus e da seleção nacional de Portugal. Francisco Saturnino Cunha não foi além de uma formação de topo e teve de procurar alternativas após sucessivas lesões.

Nascido em Alpiarça, Francisco Alexandre Pereira Saturnino Cunha chegou ao Sporting com 12 anos, passou pela Académica de Santarém após três épocas no clube de Alvalade e ainda representou o Benfica, onde perdeu o grande amigo Bruno Baião, cujo nome tem tatuado na perna esquerda. Contraiu a primeira lesão, saiu para o Alverca no segundo ano de júnior, lesionou-se de novo, ainda foi a França tentar a sua sorte mas acabou por desistir do sonho do futebol profissional aos 19 anos.

Os pais nunca permitiram um afastamento dos estudos e o tempo deu-lhes razão. Francisco deixou o futebol para segundo plano, jogou apenas nos campeonatos distritais pelo Águias de Alpiarça e tirou um curso superior de Economia. Trabalhou num banco, ajudou a empresa de vinhos da família (Pinhal da Torre), fez desfiles de moda e dedicou-se nos últimos anos, com sucesso, a uma cadeia de hamburguerias artesanais.

Este é o seu testemunho:

Maisfutebol – Francisco, começou a jogar em Alpiarça e foi para o Sporting, como é que isso aconteceu?

Francisco Saturnino Cunha - Comecei a jogar no Águias de Alpiarça, o clube da minha terra, durante três anos. Nessa altura, um amigo de família, Mário Lázaro, pessoa que muito estimava e que era treinador do futebol, indicou-me para o Sporting. Fui lá fazer meia dúzia de treinos e acabei por ficar. Durante os três anos que fiquei no Sporting, fui e vim todos os dias de Alpiarça, porque os meus pais queriam que continuasse a estudar. Nos primeiros dois anos fui de carro, mas no terceiro ia e vinha de comboio. Era cerca de uma hora para cada lado.

MF – Foi nessa altura que ficou a conhecer um jovem muito especial?

FSC – Exato. Lembro-me que aquela equipa de infantis tinha três ou quatro reforços: eu, o Cristiano Ronaldo e o Fábio Ferreira, não sei se havia mais algum, mas penso que não. Lembro-me perfeitamente do primeiro dia em que o Ronaldo chegou, porque os pais dos jogadores já o tinham visto jogar na Madeira e diziam que ele tinha um talento fora do normal. Confirmámos rapidamente que isso era verdade. No primeiro ano de infantis, disputámos vários torneios e ele foi sempre o melhor jogador.

MF – Em que posição jogava o Ronaldo nessa altura?

FSC – Ele jogava como avançado mas caía na esquerda, caía na direita, fazia o que queria, ao contrário dos outros. Se o treinador me dizia para jogar como médio esquerdo, ficava sempre ali. Ele não. Já era irreverente, tinha personalidade, ouvia os treinadores mas tinha sempre uma resposta. Sentíamos que só ele é que podia dizer alguma coisa, mas tinha moral para o fazer.

MF – Quais são as memórias que tem desses anos com Cristiano Ronaldo?

FSC – Lembro-me de várias histórias dele. Lembro-me por exemplo de um jogo nos iniciados que ele falhou por lesão. O Ronaldo na altura jogava com o 10 e, ao ver na folha da convocatória o Francisco Sousa com o número 10, passou-se. Foi bater à porta do treinador, a dizer que aquilo não podia ser, que o Francisco não tinha qualidade para jogar com o 10 dele. Dessa geração, do meu ano (nascidos em 1985), os que chegaram mais longe foram mesmo o Cristiano Ronaldo e o José Semedo.

MF – É verdade que ele chegou a distribuir os prémios pelos colegas de equipa?

FSC – Sim, já contei essa história anteriormente. Num torneio no Algarve, o melhor jogador em campo recebia um fim-de-semana de estadia num hotel, para ele e para a família. Foram cerca de cinco jogos e ele foi o melhor em todos. Como a família dele não estava cá, acabou por distribuir os fins-de-semana pelos companheiros de equipa. Dava-me bem com ele, ele chegou a passar vários fins-de-semana em minha casa em Alpiarça e foi o meu pai que lhe deu o primeiro telemóvel, um Motorola daqueles pesados.

MF – Fica orgulhoso do percurso que o Cristiano Ronaldo teve?

FSC – Muito, muito mesmo. Posso dizer que tive o prazer de jogar três anos com ele, nunca vou esquecer isso. Só mais uma história. No ano em que o Sporting foi campeão, em 2002, os miúdos da formação costumavam receber bilhetes para os jogos e depois alguns ainda eram chamados para serem apanha-bolas. Lembro-me do jogo frente ao Benfica, que podia dar o título e foi decidido pelo Sabry. Nessa altura, estava muito na moda os sapatos de vela da Portside, toda a gente tinha uns. Nós, miúdos com 15 anos, por vezes recebíamos os bilhetes do clube e íamos vendê-los para junto das bilheteiras, para ganhar mais algum, e depois entrávamos como apanha-bolas. Só que nesse dia, enquanto nós ficamos todos ali, porque o Sporting podia ser campeão, o Ronaldo pegou no dinheiro e foi-se embora, dizendo que ia apanhar o metro para ir ao Colombo comprar uns Portside para ele. Sempre foi assim, com uma personalidade muito forte.

MF – Voltando a si, após três anos na formação do Sporting, porque é que saiu do clube?

FSC – Saí porque andava infeliz, estava a jogar pouco, falei com o meu pai e optámos pela saída. Existia o interesse do Benfica, que me conhecia, mas o Sporting pediu um valor absurdo pelos meus direitos. Então, por acordo com o Benfica, fui um ano para a Académica de Santarém, para a equipa que disputava o nacional de juvenis, porque aí o Sporting já não pediu tanto pela saída, e na época seguinte cheguei ao Benfica.

MF – Deixou o Sporting e um ano depois chegou ao Benfica. Como é que foi recebido?

FSC – Nas primeiras duas ou três semanas, fui colocado um pouco de parte pelos meus colegas, porque tinha estado no Sporting. Era natural isso acontecer, mas passou rapidamente e fui muito feliz nos dois anos de Benfica. Éramos muito amigos e costumávamos passar férias juntos em Portimão, no final da época. Dessa geração, do meu ano, destacaram-se o João Vilela, o Fernando Alexandre e o Tiago Gomes, o médio.

MF – No Benfica também jogou com o Bruno Baião, que faleceu em 2004, com 18 anos. Como é que lidou com isso?

FSC – O Bruno Baião era um grande amigo e todos sentimos muito a morte dele. Quatro jogadores decidiram fazer tatuagens com o nome dele e eu fui um deles. Eu, o Bruno Simão, o João Vilela e o Diogo Martins. Tenho a tatuagem na perna esquerda, acima do tornozelo. Nessa altura, fizemos um texto que eu li no funeral dele e até hoje fazemos todos os anos um jogo de homenagem, um jogo de recordação do Bruno Baião, no final da época. Chegámos a ter entre 50 a 60 jogadores - por vezes somos menos, mas não falhamos - no convívio, que normalmente acaba no restaurante da família dele, o Horácio.

MF – Esteve dois anos no Benfica e acabou por sair. Porquê?

FSC – A certa altura, já como lateral esquerdo, fui o melhor marcador da segunda fase do campeonato de juniores, estava na seleção distrital, tinha assinado contrato com o José Veiga, mas foi quando contraí a primeira lesão, uma rotura dos ligamentos cruzados. Foi o princípio do fim. No final da época saí do Benfica para os juniores do Alverca, já depois de ter feito a pré-época com os seniores do Lourinhanense.

MF – E voltou a ter problemas físicos?

FSC – Sim, nunca mais fiquei bom. Fui operado três vezes ao joelho direito e senti que não tinha condições para continuar. Ainda fui treinar a um clube francês, o Laval, que estava na segunda liga, por intermédio do empresário Óscar Dias, mas certo dia estava a nevar, escorreguei no treino, senti o joelho a ceder e decidi desistir. Apanhei o comboio para Paris, daí para Portugal e entreguei-me a sério aos estudos. Entrei na Universidade Lusófona, no curso de Economia, e joguei apenas nos distritais pelo Águias de Alpiarça.

MF – Quando é que começou a trabalhar?

FSC – Curiosamente, até hoje faltam-me duas cadeiras para concluir o curso de Economia. Nessa altura, ajudava no negócio da família, a empresa Pinhal da Torre, levando vinho de Alpiarça para Lisboa, para o vender durante a semana. Entretanto, consegui emprego na Caixa Geral de Depósitos, na Avenida 5 de outubro, mas fiquei apenas seis meses lá. O meu avô adoeceu e eu decidi regressar a Alpiarça para ajudar no negócio dos vinhos.

MF – Como é que a moda apareceu na sua vida?

FSC – Por mero acaso. Conheci o Manuel Fernandes na altura do Benfica e ficámos amigos desde essa altura. Eu costumava passar muito tempo na loja de roupa que ele tinha em Lisboa, onde vendiam roupa do estilista Nuno Gama. Certo dia, ele foi à loja, conheceu-me e, passado algum tempo, convidou-me para desfilar. Eu tinha 29 anos e nunca tinha feito moda, fui recusando, mas ele insistiu e, quando dei por mim, estava a ser convidado para desfilar na Moda Lisboa. Fiz a Moda Lisboa durante quatro anos, fiz o Portugal Fashion, foi bom para fazer alguns amigos, dava um rendimento extra, mas nesta altura não tenho mesmo tempo.

MF – Entretanto, o Francisco virou-se para a área das hamburgueiras. Porquê?

FSC – A história foi relativamente simples. Certo dia, encontrei uns amigos que tinham aberto uma Hamburgueria da Baixa, de hambúrgueres artesanais, em Faro e disseram-me que aquilo estava a correr muito bem. Algum tempo depois, numa noite qualquer, decidi parar com a minha namorada num sítio que vendia hambúrgueres na Segunda Circular, porque estava cheio de fome. E foi aí que se deu uma luz: toda a gente gosta de hambúrgueres, eles caem bem a toda a hora, quero apostar nisto. Falei com os meus amigos e avançámos para a abertura da Hamburgueria da Baixa em Santarém.

MF – Vinha do futebol, da Economia, dos vinhos, da moda, mas percebia alguma coisa de restaurantes?

FSC – Sou sincero, não percebia nada do negócio, só sabia comer. Os meus sócios, João Mello e João Sotto Mayor vieram do Algarve quando foi a abertura em Santarém, trouxeram staff para ajudar na fase inicial, porque aquilo estava sempre cheio, mas a dada altura um deles disse-me: ‘Pronto, agora vamos regressar ao Algarve, desenrasca-te’. Foi nesse momento que parei para pensar: e agora? Ou desistia, ou ia em frente, e decidi ir em frente.

MF – Hoje em dia, sente que foi a aposta certa?

FSC – Claramente. Quatro anos infernais depois, porque houve muito trabalho à mistura, sou sócio da maior cadeia de hamburguerias artesanais do país. Temos dois espaços em Faro, dois em Lisboa, um em Albufeira, em Vilamoura, Loulé, Castelo Branco, Leiria, Covilhã, Santarém, Évora, Caldas da Rainha e vamos abrir a 14.ª Hamburgueria da Baixa no mês que vem, em Barcelos. Estou feliz e sempre a trabalhar intensamente.



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