Márcio Sousa: o Maradona que ajuda a salvar vidas - TVI

Márcio Sousa: o Maradona que ajuda a salvar vidas

Márcio Sousa

Antiga promessa pendurou as chuteiras e trabalha na central de telecomunicações de uma corporação de bombeiros no Algarve

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«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@tvi.pt.

Márcio Sousa, apelidado de Maradona desde tenra idade, decidiu a final do Campeonato da Europa de sub-17 em 2003, assinando os dois golos de Portugal frente à Espanha de Adán e David Silva (2-1).

O talentoso esquerdino dividiu a sua formação entre V. Guimarães e FC Porto, numa fase em que todos lhe auguravam um futuro risonho. Márcio acumulou bons desempenhos nos escalões inferiores, é certo, mas terminou a carreira sem pisar os relvados da Liga.

Aos 35 anos, o típico camisola 10 pendurou as chuteiras nos campeonatos distritais da AF Braga e mudou por completo de vida. Fez as malas, rumou ao Algarve e trabalha atualmente no centro de telecomunicações de uma corporação de bombeiros.

«Tenho de estar extremamente concentrado durante o dia de trabalho porque estamos a lidar com a vida das pessoas. Estou a tentar ajudar a salvar vidas e, quando isso acontece, dá-te uma satisfação enorme. Mas também há um sentimento enorme de tristeza quando alguém não consegue resistir», explica, ao Maisfutebol.

Como disse certa vez o italiano Arrigo Sacchi, o «futebol é a coisa mais importante de entre as coisas menos importantes».

Márcio Sousa esteve ligado ao futebol profissional durante mais de vinte anos. Porém, ao longo dos últimos meses, percebeu que de facto os jogadores vivem numa realidade paralela.

«Quando estás no mundo do futebol, sabes de casos de pessoas que passam dificuldades, mas se não for alguém muito ligado a ti, acabas por seguir em frente. Neste momento, lido diariamente com doenças, com acidentes, com situações que não consigo esquecer de um dia para o outro», admite.

«Este trabalho tornou-me melhor pessoa»

«Isso começa a entrar-te na cabeça, levas a vida de uma outra forma, sentes que tens de aproveitar, porque isto são dois dias. Faz-me pensar que temos de aproveitar cada dia como se fosse o último. Se acordarmos amanhã já é uma bênção. Este trabalho tornou-me melhor pessoa nesse sentido», acrescenta.

A resistência mental e a concentração são aspetos determinantes na ocupação atual do antigo jogador. «Tens de ter uma capacidade mental muito grande, porque há coisas que os colegas bombeiros te contam, sobre as situações que enfrentam, que são difíceis de lidar. Por outro lado, quando o CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes) liga para ti, não podes atender a chamada a pensar em outra coisa. Tens de perceber ao certo o que a pessoa está a sentir, anotar exatamente onde é, não podes falhar em nada, porque todos os segundos são vida. Quando mais rápido, maior a percentagem de sucesso», explica.

Aqui chegados, expliquemos melhor a função atual de Márcio Sousa, que prefere não identificar a corporação de bombeiros com que colabora atualmente no Algarve.

Em caso de emergência, o número de contacto incontornável é o 112. Daí, as chamadas relacionadas com saúde são encaminhadas para o CODU e as relacionadas com incêndios ou outras ocorrências desse âmbito seguem para o CREPC (Comando Regional de Emergência e Proteção Civil da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil). Por fim, tendo em consideração a área geográfica, a mensagem chega à central de telecomunicações onde trabalha o ex-jogador.

«Recebo os alertas, por telefone ou email, e tenho de passar rapidamente toda a informação, sem falhas, com a localização exata, para os bombeiros ou as equipas de emergência médica (INEM). Quando é para ir para um hospital, por exemplo, tenho de saber logo qual tem a urgência aberta, se Portimão, Faro ou outro, para não haver perdas de tempo. Depois, tenho de anotar o veículo, o número de colegas que vão, as horas a que saíram, para onde vão e a que horas terminam a intervenção. Tudo tem de ficar no relatório», refere.

«Andei um pouco aos papéis ao início»

Márcio Sousa admite que o processo de transição foi extremamente complexo, mas considera que já ultrapassou a natural amargura pelo fim da carreira. O último jogo oficial foi realizado a 29 de maio de 2021: «Estamos habituados ao sonho que é o futebol e depois chega a um ponto em que temos de parar, ter a consciência que não dá mais. Não foi fácil essa mudança.»

«Felizmente, surgiu esta oportunidade, tirei todas as formações necessárias nos bombeiros e um ano depois sinto-me bem nesta função. Andei um pouco aos papéis ao início, mas agora olho para trás e digo que foi o passo que fazia mais sentido. Gosto mesmo do que faço», reforça.

O futebol, o seu futebol, fica em lista de espera: «Eu vou acompanhando sempre, o futebol é uma paixão que vai morrer comigo. Já pensei tirar o curso de treinador, mas não é no imediato, tenho de trabalhar, porque são poucos os jogadores que ganham para uma reforma dourada, a maioria não consegue juntar para depois. Neste momento, estou focado no que estou a fazer. Tem-me tornado uma pessoa completamente diferente.»

Antes de ajudar a salvar vidas, Márcio Sousa teve uma história que é bem conhecida, em traços gerais, pelos adeptos portugueses. Por isso mesmo, não vale a pena insistir na questão habitual, no discorrer de justificações para uma carreira que teimou em seguir um caminho diferente do esperado.

«Por falta de oportunidades, ou culpa própria, não cheguei ao topo»

Não há respostas concretas para a inquietação. «Ou por falta de oportunidades, ou por culpa própria, não cheguei ao topo. O que conquistei, conquistei sozinho, sem ajuda de ninguém e sinto-me orgulhoso por isso. As pessoas diziam que nunca tinham visto nada igual, isso é muito satisfatório, mas a carreira foi o que teve de ser. Já pensei muito nisso, agora não adianta olhar para trás», desabafa.

Natural de Guimarães, o esquerdino comparado a Maradona brilhou na formação do Vitória a par de Vieirinha, formando uma dupla entusiasmante que chegou à seleção nacional e que atraiu a atenção de outros clubes, com o FC Porto a ganhar a corrida.

Márcio Sousa chegou como juvenil ao clube portista em 2002 e explodiu no Campeonato da Europa de sub-17 no ano seguinte, ao lado de nomes como Miguel Veloso, Paulo Machado, João Moutinho ou Hélder Barbosa.

A 17 de maio de 2003, em Viseu, marcou dois golos a Adán, anulando a resposta espanhola por intermédio de David Silva, outro esquerdino talentoso (2-1). A conquista ficou para a história. Três meses depois, porém, a Espanha vingou-se em pleno Mundial, afastando Portugal com um triunfo claro nos quartos de final (5-2).

O vimaranense acumulou 49 internacionalizações pelas seleções de Portugal, entre os sub-16 e os sub-19. No FC Porto, por outro lado, as oportunidades escassearam. O médio ofensivo não passou da equipa B dos dragões, entre 2003 e 2006.

«Apanhei uma das melhores equipas de sempre do FC Porto»

«O Vitória é um clube especial para mim e também guardo muito boas recordações do FC Porto. Lembro-me de ir para o lar do clube, sair de casa, e ser muito bem tratado. De resto, fiz a transição de júnior para sénior no ano em que o FC Porto venceu a Taça UEFA. No ano seguinte, conquistou a Champions. Quando assim é, as tuas chances são mínimas. Apanhei uma das melhores equipas de sempre do FC Porto», explica.

Entre as temporadas no FC Porto B, Márcio Sousa também viveu períodos de empréstimo a Sp. Covilhã (2005/06) e Vizela (2006/07) na II Liga. Nessa altura, terminou a ligação aos dragões, aos 21 anos.

«Desde muito cedo, destaquei-me com o Vieirinha no V. Guimarães e começaram a falar muito de nós. Foi tanto tempo a falarem de nós quando éramos jovens que chegámos aos 21 anos e parecia que já tínhamos 30. Houve ali um desgaste», considera.

O esquerdino passou por UD Rio Maior (III Divisão), SL Nelas (III Divisão), FC Penafiel (II Divisão B) e SC Esmoriz (II Divisão B) até chegar ao ponto mais feliz da carreira sénior: Tondela.

Em cinco épocas pela equipa beirã, Márcio Sousa disputou perto de 150 jogos e garantiu duas subidas de divisão, desde a II Divisão B à Liga. Em 2015, aos 29 anos, parecia ter chegado a altura de pisar os maiores palcos do futebol português. Porém, tal não viria a acontecer.


«Até hoje não sei por que saí de Tondela»

«Estive lá cinco anos, subi duas vezes de divisão e até hoje não sei por que saí de Tondela. Na altura fiquei um bocado triste, mas não guardo rancor. Tenho um carinho enorme por Tondela, foi o clube onde passei mais tempo e onde fui feliz, cheguei com a equipa na II Divisão B e saí com a equipa na Liga. Ainda tenho pessoas muito ligadas a mim em Tondela», frisa.

A carreira prosseguiu nos escalões inferiores do futebol português: Farense (II Liga), Lusitano VRSA (Campeonato de Portugal), Limianos (CP), Moncarrapachense (CP), Torcatense (CP), Ninense (Pro-Nacional da AF Braga), Vilaverdense (Pro-Nacional da AF Braga) e por fim Os Sandinenses (Honra e Pro-Nacional da AF Braga).

«Sinceramente, sinto que se chegasse aos palcos a que os meus colegas chegaram, ia mostrar qualidade, porque só quem tem unhas é que toca viola. Mas isso não aconteceu e mostrei noutros palcos. Nunca desisti, cheguei a um segundo patamar e fiz coisas muito boas por lá», considera.

Já na reta final da conversa, Márcio Sousa explica que teve de encontrar forma de lidar com as elevadas expectativas que sempre o acompanharam: «Tive de fazer um trabalho psicológico ao longo da carreira, porque sentia que podia ter chegado lá acima, mas nunca cheguei. As pessoas pensavam sempre que eu ia resolver todos os jogos, mas sou um ser humano igual a todos os outros. Havia jogos em que me destacava, outros em que não e era logo criticado.»

«Agora olho para trás e sinto-me orgulhoso daquilo que fiz. Sinto uma satisfação enorme por aquilo que consegui na formação e por momentos fantásticos que vivi noutros patamares no futebol sénior. Não vou dizer que a minha carreira foi má. Foi boa», remata o esquerdino.

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