A caminhos dos Jogos Olímpicos, o Maisfutebol traz uma série de conversas com atletas portugueses que estarão em Paris. A delegação nacional tem 73 atletas. Estas são as suas histórias
«Talvez não ter conseguido à primeira nem à segunda me tenha dado a força interior para tentar mais uma vez e conseguir o sonho de todos os atletas.» À terceira tentativa de apuramento para os Jogos Olímpicos, Miguel Nascimento conseguiu. Estará em Paris, a nadar nos 50m livres e a viver finalmente a experiência que definiu como meta ainda em criança. Estará ao lado de Diogo Ribeiro, que o tinha como ídolo, que ele vê como uma espécie de irmão mais novo e com quem partilha a piscina e os métodos de trabalho que estão a levar a natação portuguesa a outro patamar.
É de tudo isso que fala Miguel Nascimento, de 29 anos, nesta conversa com o Maisfutebol, ele que no fim de semana passado conquistou no Jamor a prova de 50m livres nos Nacionais, na reta final da preparação para os Jogos Olímpicos.
A qualificação para Paris foi garantida há mais de um ano, no início de abril de 2023. Miguel Nascimento foi dos primeiros atletas portugueses a garantir o bilhete para Paris, logo depois de Diogo Ribeiro e Camila Rebelo, todos na piscina do Funchal, no Open de Portugal. Mas, para ele, tinha sido uma longa viagem.
O «momento único» da qualificação: «Senti a piscina toda em volta de mim»
A primeira vez que tentou a qualificação foi para o Rio 2016, então nos 200 m mariposa. Ficou à porta, tal como quatro anos mais tarde, na corrida a Tóquio. «Fiquei sempre muito perto. Da primeira vez que não consegui tentei arranjar um mecanismo de defesa para que não me deixar ir abaixo e continuar a acreditar. Acabei por fazer isso», diz, a recordar o dia em que finalmente baixou a fasquia dos 21.96 segundos.
«No fim de semana anterior eu já tinha ficado mesmo muito perto do tempo. Eu sabia que o tempo estava dentro de mim. Naquele momento senti-me bem. Na mesma prova, nadei duas vezes praticamente colado ao mínimo», diz. Quando nadou os primeiros 50m da estafeta de 4x100m em 21.91 segundos, foi das bancadas que veio a confirmação.
«Foi engraçado. porque eu senti a piscina toda de volta de mim. O apoio, o público ao rubro. Percebi imediatamente que tinha feito o mínimo. Ainda para mais depois de tanto tempo, parece que ainda soube melhor. Só queria ligar à minha mulher para contar. Pá, foi um momento realmente único.»
A sua companheira, Victoria Kaminskaya, também foi nadadora e representou Portugal nos Jogos Olímpicos de 2016, sendo ainda detentora dos recordes nacionais dos 200m e 400m estilos. Tem sido um dos pilares do percurso de Miguel Nascimento. «Como ela foi atleta, tem toda a noção do que é que é ser nadador. Nas provas, dá-me conselhos, ainda para mais ela tem uma maneira de estar nas competições diferente de mim, o que me ajuda a perceber outros lados e a tentar levar o melhor dela para as minhas provas. Apoia-me em tudo e tentamos viabilizar as coisas de modo a que seja compatível para os dois. Ainda por cima fomos pais há relativamente pouco tempo», diz o atleta português, a falar da filha Margarida, que fará dois anos precisamente a 1 de agosto, no dia em que ele se estrear em Paris.
A sonhar com os Jogos desde criança, com Popov como inspiração
Miguel Nascimento está a viver o sonho que perseguiu desde que se lembra. Desde que ficou colado à televisão a ver natação nos Jogos Olímpicos, fascinado com aquele que é ainda uma das grandes referências da velocidade na piscina. As datas já se confundem na memória, terá sido 2000, os últimos Jogos em que o russo Alexander Popov participou. «Eu já nadava na altura e então vi os Jogos Olímpicos. Vi o Popov a nadar e pensei: ‘É isto que eu gostava de fazer, estar lá a competir com os melhores’. Havia outros grandes nadadores, mas no mundo do sprint ele era muito conhecido e, não sei porquê, chamou-me a atenção de imediato. Desde então meti na cabeça que queria aquilo.»
Miguel Nascimento cresceu no Algarve e nada quase desde bebé. «Comecei aos três, quatro anos, no colégio. Depois o gosto foi aumentando, a minha habilidade também foi melhorando, e quando os treinadores perceberam que eu era diferente tentaram puxar-me mais para a natação.» Não era o único desporto que praticava. «Eu gostava muito de desportos de luta e adorava filmes de luta. Queria fazer kung fu, porque adorava filmes do Jackie Chan. Mas não havia, então entrei no karaté. Fui até ao cinturão castanho, depois tive de abdicar porque já não dava para conciliar os dois.»
Entre o karaté e a natação, venceu a amizade
O ambiente que encontrou na natação foi determinante na escolha, diz. «Acho que escolhi a natação não tanto pelo desporto em si, mas pelas amizades que fiz e pelas relações que tinha», continua, a falar sobre o Portinado, o clube onde cresceu e que representou até aos 19 anos.
A partir daí estava na altura de tomar decisões sobre o futuro, à procura de melhores condições para evoluir na natação. «Não treinávamos em piscina olímpica. Até aos 19 anos eu praticamente só treinava em piscina de 25. Não tínhamos ginásios, não tínhamos condições para estar a competir com os melhores», recorda.
Esteve em cima da mesa a possibilidade de deixar o país, como fizeram vários nadadores antes dele, mas Miguel Nascimento optou por ficar. «Quando estava no secundário tive oportunidade de ir para fora. Mas entretanto abriu o Centro de Rendimento de Rio Maior e eu decidi experimentar.»
Ficou lá até 2017, antes de se mudar para o Benfica. Continuou a crescer, fixou vários recordes nacionais e integra a elite de nadadores portugueses que desde 2021 trabalha com os antigos treinadores da seleção olímpica brasileira. Não tem dúvidas em definir a chegada de Alberto Silva, conhecido por Albertinho, acompanhado de Samie Elias e Igor Silveira, como um ponto de viragem. Eles trabalham com os atletas femininos e masculinos de elite, com foco nas provas de velocidade, até 200m.
Albertinho, a filosofia Ubuntu e o «crescimento gigante» da natação portuguesa
«São treinadores com experiência a nível mundial que conseguiram partilhar a sua mensagem, a sua experiência. Juntaram um grupo para desenvolver a velocidade em Portugal. E os resultados estão à vista, tivemos os melhores resultados de sempre da natação portuguesa. Bateram-se n recordes em termos de classificações em campeonatos, seja Europeus, seja Mundiais. Houve um crescimento gigante no nosso desporto.»
Esse trabalho que fez a diferença faz-se na piscina e fora dela, explica. Na água, passa pelo treino específico, dividindo cada prova em etapas, em função também do momento da época. «Há o trabalho de força e de resistência na água, com paraquedas. E depois trabalho específico. No treino, por exemplo, trabalhamos partes da prova. Eu faço 50m livres, mas parto a prova em cinco, que é a partida, ali os primeiros 15 metros de nado e depois outros 15 metros e depois outros 15 metros. Medimos cada etapa e tentamos melhorar e trabalhar durante o treino esses pedaços de prova.»
E depois passa pelo lado humano, diz Miguel Nascimento, da sensibilidade com os atletas. «Eu acho que o melhor treinador nunca é o que sabe mais, mas o que conhece melhor os seus atletas. É necessário ter muita sensibilidade com os atletas para perceber onde é que nós podemos ir. Os treinadores confiam em nós, porque nós estamos aqui com a ambição de querermos mais. E então quando dizemos que hoje não dá, é porque não dá mesmo. E eles ajustam o seu planeamento, de modo que a façamos o treino intensivo nos dias em que realmente nós conseguimos dar o máximo que eles exigem.»
«Nem todos os atletas são iguais», continua. «É saber ligar os pontos todos e ter um grupo de treino que seja minimamente homogéneo, em que, por exemplo, haja um que acordou e não se sentiu bem ou não lhe apetece, mas está lá outro a dizer ‘Não, hoje vamos.’ E puxa pelo grupo. Isto é uma química que se constrói. Às vezes corre bem, outras vezes não, mas quando corre bem, tende para ter bons resultados. Porque uma equipa feliz é uma equipa campeã.»
Nessa relação entram também princípios da filosofia Ubuntu, valores como a humanidade e a fraternidade. «Eles falaram-nos disso logo numa das primeiras reuniões. Partilharam um pouco da sua ideia, do que vieram cá fazer e disseram que trabalham muito com uma palavra, o Ubuntu, que se não estou em erro é de uma tribo africana», conta Miguel Nascimento. «Quando fizemos um estágio no Rio de Janeiro o Albertinho até fez uma tatuagem a dizer Ubuntu.»
«Passaram-nos essa mensagem e nós tentámos dia após dia, em vez de usá-la com palavras, usá-la com ações. Nós passamos mais tempo com a equipa do que com a família. Acabamos por construir ali laços que ficam para a vida. Eu acho que essa mensagem é importante, porque nós temos de confiar nas pessoas que estão connosco e temos de fazer tudo para que todos se sintam bem», observa. «Hoje isso já está intrínseco em nós. É este tipo de coisas que eles passam e nós adoramos. E realmente traz frutos.»
A primeira referência do «irmão» Diogo Ribeiro
Nesse grupo está Diogo Ribeiro, o expoente maior da natação portuguesa. Aos 19 anos, um fenómeno com o futuro pela frente, que Miguel Nascimento viu crescer bem de perto. «Lembro-me dele logo no início do grupo e realmente ele cresceu muito rapidamente. Sempre soube que ele era muito bom, mas ele sempre que entra dentro de água parece que me impressiona mais. A capacidade de superação que tem é fenomenal. Ainda é tão novo e tem um futuro tão promissor pela frente, independentemente de já ter feito tanta coisa.»
Têm quase dez anos de diferença e Diogo Ribeiro cresceu a olhar para Miguel Nascimento como ídolo e referência. Já conversaram sobre isso, sobre a forma como Diogo via o agora companheiro de seleção como o exemplo a superar. «Antes de fazermos mínimos para os Jogos Olímpicos, nós fomos mais cedo para a Madeira, para termos uns dias de adaptação. Um dia fomos jantar fora e a tia dele disse-me: ‘O Diogo via-te como ídolo, queria ser como tu’. E eu disse-lhe. ‘Olha, é muito bom ouvir isso e faz-me lembrar eu quando era mais novo. Porque eu também passei por isso.’»
«Fico obviamente muito feliz por saber isso e saber que fiz parte da ambição dele de criança. Eu olho para ele e revejo-me naquela determinação, naquela vontade de ganhar e de ser o melhor», diz Miguel Nascimento, contando que também ele teve essa referência, o campeão que queria superar. «Era o Alexandre Agostinho, da Portinado, o ex-recordista nacional, antes de eu bater os recordes dele. Eu também dizia que queria ser melhor que ele. Tentava aquecer com ele, tentava competir com ele, tentava fazer tudo para ser melhor. É engraçado que as gerações passam e isso acaba sempre por acontecer.»
Miguel Nascimento diz também que se sente uma espécie de «irmão mais velho» de Diogo. Dá-lhe conselhos também, mas isso vale para os dois lados, conta. «Falamos sobre muitas coisas. Dou-lhe conselhos, obviamente. E eu também recebo. Treinamos juntos, as nossas provas são praticamente as mesmas. Muitas vezes eu digo, ‘Olha, fizeste isto, fizeste aquilo’. E ele também, ‘Miguel, acho que tens de fazer isto, tens de chegar melhor.’ Tem sido recíproco. No início partia talvez mais de mim. Mas ele cresceu muito e em algumas coisas já parece muito maduro. Hoje já é natural tentarmos ajudar-nos mutuamente, nos treinos e antes da prova. Na hora da prova cada um quer ganhar, claro.»
Hoje, Diogo Ribeiro já superou os principais recordes de Miguel Nascimento, que detém no entanto ainda a melhor marca nos 200m livres. O jovem nadador vai somando resultados até há bem pouco tempo impensáveis para a natação portuguesa, com ponto alto nos Mundiais de Doha, em fevereiro deste ano, quando se sagrou campeão do mundo dos 50m mariposa e depois dos 100m, distância olímpica.
«Foi um prazer» acompanhar este percurso, diz Miguel Nascimento. «Quando qualquer pessoa da nossa equipa faz história, principalmente ele que é tão chegado a mim, por estarmos todos os dias juntos, torna as coisas mais especiais. Desejo-lhe tudo do melhor, como é óbvio», conclui. «Vou sempre lutar pelo meu lugar, enquanto nadar, mas dou-lhe os parabéns e espero poder também continuar a contribuir e ajudar para o crescimento dele. Ele também me tem feito crescer, porque há coisas que ele passou que eu nunca tinha passado. É muito benéfico para todos, porque põe o nome de Portugal na boca do mundo. Isso é importante, porque cada vez mais acho que temos essa possibilidade e essa capacidade.»
Tentar estar «a 101 ou 102 por cento» em Paris
Em Paris, vão nadar lado a lado nos 50m livres, enquanto Diogo Ribeiro estará ainda nos 100m livres e nos 100m mariposa. Miguel Nascimento parte com o objetivo de aproveitar o momento e tentar superar-se. O que implicaria baixar dos 21.90s que são a sua melhor marca.
Antes de mais, quer tirar o máximo partido da experiência olímpica, do ambiente, da vivência na aldeia. «A primeira expectativa é estar na vila e sentir aquela dimensão desportiva que eu nunca senti, tentar aproveitar o máximo daquelas emoções que me vão surgir, para tentar canalizar e poder usá-las na minha prova», diz.
«Tenho objetivos pessoais que gostava de atingir lá, mas obviamente o objetivo principal é aparecer na melhor forma possível para tentar fazer o meu melhor tempo. E isso não é estar a 100 por cento, é estar a 101 a 102. Se aparecer melhor que a minha melhor forma será uma coisa gira e aí já posso pouco a pouco sonhar outras coisas», antecipa Miguel Nascimento, lembrando que chegar a uma final «seria histórico».
Até hoje, Portugal só esteve representado por uma vez numa final olímpica de natação – com Alexandre Yokochi, que foi sétimo nos 200m bruços em Los Angeles 1984. Há 40 anos, portanto. «Cada eliminatória que eu fizer lá é uma final. É assim que tenho de encarar. Em vez de olhar já para o topo da montanha, tenho de olhar cada etapa como se fosse a última. Para me poder mobilizar e tentar ir o mais além possível.»
Para já, não sabe se esta será a sua única experiência olímpica, ele que para lá da natação está muito perto de concluir a licenciatura em gestão de empresas «Falta-me um semestre. Está quase», suspira, sem ter ainda definido um horizonte para deixar a alta competição. «Eu meti de tal forma o foco e a atenção nos Jogos Olímpicos que não penso mais além. É o evento especial da minha carreira e só depois vou sentar-me e delinear o meu futuro com mais calma. Tudo indica que vou continuar a nadar. Não sei se mais um ciclo, se não, só o tempo dirá. Para já, é estar concentrado no que consigo fazer, no que tenho de fazer.»