Destino Paris: Rochele Nunes, do ballet ao judo, com uma surpresa preparada (olá, Cristiano) - TVI

Destino Paris: Rochele Nunes, do ballet ao judo, com uma surpresa preparada (olá, Cristiano)

Rochele Nunes (Foto COP)

Vai estar nos seus segundos Jogos Olímpicos. Depois do nono lugar em Tóquio, aponta alto em Paris. Antes disso, faz os últimos preparativos, que incluem pintar as unhas com as cores portuguesas. O percurso da atleta que se apaixonou pelos Jogos ainda criança, no Brasil, por causa da cerimónia de abertura, que leva o judo muito a sério mas também adora divertir-se e soltar uma boa gargalhada. E que já decidiu como vai celebrar se chegar ao pódio em Paris

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Os últimos dias antes da partida para os Jogos Olímpicos são mais tranquilos. «A fase mais difícil já passou», diz Rochele Nunes. Depois de garantida a qualificação, depois de uma série intensa de competições, é altura de treinos de manutenção e de tratar de assuntos mais triviais. Fazer a mala, arrumar a casa e cuidar do visual, sorri a judoca. O que inclui pintar as unhas nos tons da bandeira portuguesa. A caminho dos seus segundos Jogos Olímpicos, ela aponta alto e até já sabe como irá festejar se ganhar uma medalha. Vai falar disso mais à frente.

«Agora é mais manutenção, tanto dos treinos quanto da minha rotina. Arrumar a mala, deixar o cabelo bem bonito, fazer as tranças, fazer as unhas, então agora está a ser a parte mais tranquila», sorri. «Cada atleta tem um ritual, não é? Eu antes de uma competição faço uma refeição em família e com amigos para me despedir. A trança também sempre tem de estar bem feitinha. Dessa vez até vou fazer as unhas com as cores da bandeira de Portugal. Quer dizer, vou ver se a manicure consegue fazer. E deixar também a casa arrumada. Vida de adulto, não posso somente viajar. Então, deixo a casa toda pronta e tudo mais.»

A expectativa pela «energia» dos Jogos e para, quem sabe, «tietar»

Rochele Nunes já esteve em Tóquio, onde conseguiu o nono lugar na sua categoria, +78kg. Agora, já não se sente tão nervosa como da primeira vez, mas a expectativa é grande. «Acho que só vou sentir mais nervosismo quando começarem as provas. Estou mais com ansiedade, porque eu gosto muito dessa energia. Tenho estado radiante nos últimos dias, porque estou muito feliz de poder estar a fazer o que gosto. A minha ansiedade é mais para participar da cerimónia de abertura, ver como é que está a aldeia olímpica», conta.

Em Tóquio, a pandemia limitou muito dessa vivência. Por isso, ela agora quer a experiência completa. «Quero realmente viver os Jogos, desfrutar de todo o processo. Porque Tóquio foi muito duro, tínhamos muitas limitações, dentro da aldeia olímpica e tudo. Então acho que agora sim, eu vou vivenciar. Vou poder estar com mais colegas, conviver um pouco mais com atletas de outras modalidades, talvez tietar», sorri, enquanto explica essa expressão do português do Brasil. «Tietar é tipo tirar fotos, é pedir autógrafos, falar com os atletas que eu admiro.»

Antes de se tornar atleta, foi essa imagem dos Jogos Olímpicos que seduziu Rochele Nunes, ainda criança. «O despertar do meu sonho olímpico veio exatamente com a cerimónia de abertura. Eu vi aquela festa na Olimpíada de 2000, de Sydney. Eu estava em casa, vi os países serem chamados, a fazerem uma festa, eu na minha inocência pensei que iria um dia estar naquela festa. E olha, consegui.»

«Nem sei se eu desisti do ballet ou se o ballet desistiu de mim»

Vivia então em Pelotas, no Brasil. Onde começou por praticar ballet. Daí para o judo é todo outro mundo, mas foi o que aconteceu. «É bem diferente», ri-se. «Eu nem sei se eu desisti do ballet ou se o ballet desistiu de mim. porque eu não sou uma pessoa muito calma. Também não sou pessoa de briga. Mas eu acho que os movimentos do ballet, aquela coisa clássica, mais refinada, não tem muito o meu perfil.»

 

Também fez vários outros desportos. Andebol, atletismo, futsal. Dava-se bem. «Não era muito boa com a bola, mas eu sempre tive habilidade no desporto para um pouco de tudo», conta, recordando que essas experiências eram incentivadas pelos pais, que queriam dar aos filhos tantas ferramentas quanto pudessem para terem uma vida melhor.

«No Brasil, a gente sabia da realidade que tinha. Se eu quisesse ter algo a mais na vida tinha de ter oportunidades diferentes. Sempre que eu via alguma novidade na escola, eu interessava-me, pedia para fazer e eles garantiam que eu pudesse ter essa escolha. Às vezes era curso de inglês, ou também atividades da igreja, que eu cresci na igreja católica.»

O judo à boleia do irmão, a quem nunca ganhou um combate

O judo apareceu à boleia do irmão. «Ele fazia porque gostava de anime, gostava do Dragon Ball Z, era muito fã quando criança e queria fazer algo perto. E os meus pais viram o judo ali perto. Os meus pais deixavam-me no ballet, levavam-no para o judo, depois iam buscar-me no ballet e buscavam ele no judo. Só que às vezes eu tinha de ficar um pouco à espera dele, olhava um pouquinho de treino de judo dele e gostava. Tanto que quando eu quis fazer judo, eu já sabia fazer bastantes coisas, só de olhar.»

Só não conseguiu ganhar no judo ao irmão, que também fez alta competição e hoje vive na Irlanda, onde faz parte da equipa técnica da seleção. «Nunca lhe ganhei. Ele fala disso com orgulho, porque fomos os dois competidores e ele disse-me: ‘O dia que tu me derrubar vai ser por mérito teu, porque tu conseguiu.’ Então eu nunca consegui, até hoje.»

A frase termina com uma gargalhada, como muitas nesta conversa. Rochele é assim, é extrovertida, gosta muito de falar e de se divertir. «Sou sociável. Sempre fui assim, sempre me destaquei pela minha personalidade. Sempre fui muito falante», sorri. «Às vezes eu passo por situações que as pessoas pensam, ‘Meu Deus, que vergonha’. E eu não tenho vergonha nenhuma de falar, de ser quem eu sou. De postar os meus vídeos na internet, de viver intensamente.»

 

A porta de Portugal que Telma Monteiro abriu

O judo, esse, foi desde cedo um assunto sério para ela. Chegou à seleção brasileira de judo e conquistou lugares de pódio nas competições continentais americanas. Até que um dia, à procura de mais oportunidades, decidiu mudar. E escolheu Portugal. Para isso, teve a ajuda de Telma Monteiro. A judoca portuguesa que foi medalha de bronze no Rio 2016 fez a ponte para Rochele e Bárbara Timo atravessarem o Atlântico, em 2018, e se tornarem apostas de Portugal nas categorias mais pesadas do judo feminino, onde havia uma lacuna no plano nacional.

«Ela viu que a gente tinha a capacidade e abriu as portas para que as pessoas pudessem nos ouvir. E eles escutaram-nos. Acho que pensaram que poderia ser boa a nossa vinda para cá, porque não tínhamos ninguém na nossa categoria aqui. Foi algo bem genuíno, foi muito natural o nosso processo de vir para cá», diz, a falar mais sobre o envolvimento da «madrinha» Telma.

«Ela disse que tínhamos de ir a Portugal. Disse que existiam dois clubes com estrutura de judo, o Sporting e o Benfica. Ela falou: ‘Não posso tomar partido por vocês, porque as cores têm de ser de vocês.’ Mas a gente não teve muitas dúvidas, porque como ela era a única atleta de Portugal que tinha tido medalha nos Jogos, já a tínhamos como referência. Então acabámos por optar pelo Benfica. E pronto, deu certo. O Benfica abraçou-nos de certa forma. Eu até brinco, digo que eu me tornei benfiquista antes de ser portuguesa.»

«Superámos as minhas expectativas, as expectativas do clube e as do país»

Rochele fala sobre o que a levou a mudar. «Aqui em Portugal nós temos boa qualidade. No Brasil a gente tem qualidade e quantidade. Quando vim eu era número 3 do Brasil. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio eu era número 9, tinha uma brasileira que era número 3 e outra era número 5 do mundo. Eu estava no Top 10, estava muito bem, mas existiam ainda duas na minha frente. As chances de eu poder realizar o meu objetivo olímpico seriam mais difíceis. Eu ter vindo para cá foi exatamente por isso, para poder ter a oportunidade. Portugal deu-me a oportunidade e acreditou que eu podia ter potencial.»

A aposta foi ganha. Depois de ter nacionalidade portuguesa, Rochele Nunes somou grandes resultados a nível nacional e internacional, com destaque para duas medalhas de bronze em Europeus e a conquista do Grand Slam de Abu Dhabi no ano passado, além do nono lugar nos Jogos de Tóquio. «Acho que superámos as minhas expectativas, as expectativas do clube e as do país. Eu estive 10 anos na seleção brasileira e aqui num ano e meio fiz resultados superiores. Era questão de ter alguém que acreditasse em mim, e de eu também acreditar um pouco mais.»

Do Brasil a Portugal, a aproveitar «o melhor dos dois lados»

«Acho que Portugal estava no meu destino», diz. «Mais tarde eu fui atrás da minha família biológica da parte do pai. O meu avô já era falecido, então nós não sabíamos da história dele. E descobrimos que ele era português. Então hoje o meu pai também tem nacionalidade portuguesa, eu também tive. E eu cresci numa cidade que é muito igual a Lisboa. É engraçado porque que é a capital nacional dos doces do Brasil e os doces são todos portugueses. Portugal sempre esteve muito próximo de mim.»

A adaptação ao país também foi fácil. «Claro que tem as diferenças culturais, mas a mudança foi muito prazerosa», diz Rochele, a contar que continua a ter muito de Brasil no seu dia a dia, no convívio com amigos, nos concertos a que vai, mas que Portugal, a comida e os hábitos, também já fazem parte da sua vida. «As pessoas às vezes criticam, como se eu fosse uma pessoa que esquecesse a minha origem, ou então que não me sinto realmente 100% portuguesa. Mas a verdade é que eu consumo o melhor dos dois lados e sinto-me confortável assim.»

As barreiras como brasileira e uma «voz pelas mulheres negras»

Um balanço positivo, apesar de também já ter vivido episódios mais desagradáveis. «Como brasileira, às vezes as pessoas não me dão alguma liberdade, por exemplo, para arrendar casa. Já tivemos problemas, mas não dá para generalizar. Acabam por me tratar melhor quando sabem quem eu sou, o que faço da minha vida. Mas às vezes é uma barreira. É uma característica um pouco até do povo português. São mais desconfiados, mais retraídos. Até me conhecerem de verdade, têm aquele pé atrás», diz.

Também já levantou a voz contra o racismo. E gosta da ideia de ser um exemplo para outras meninas que não se veem normalmente representadas no espaço público. «Eu não sofria muito racismo quando eu era criança. Mas sentia que não tinha referências. Não via pessoas conhecidas que se parecessem comigo, cresci sem essa identificação. Então, eu gosto de ser um bom exemplo. Principalmente para as crianças negras, para as mulheres negras, tanto no desporto quanto fora dele. Gosto de poder usar a minha voz para essas pessoas se sentirem realmente representadas.»

O exemplo de Telma Monteiro, que estará em Paris a apoiar

Nesta mudança, ficou de resto uma grande amizade com Telma Monteiro. Rochele acompanhou de perto o esforço da mais consagrada judoca portuguesa para debelar uma lesão e tentar o apuramento para Paris, que seria a sua sexta presença em Jogos Olímpicos. Lutou até ao fim, mas não conseguiu. «A gente respeita muito o momento dela, mas ela é incrível como amiga e como pessoa, porque ela está muito feliz por nós. Ela não conseguiu, mas ela está de consciência limpa, porque fez o possível e o impossível para ir», diz Rochele.

«Eu também passei por uma cirurgia de cruzado, em 2021, e levei quase um ano para recuperar. Ela voltou a competir em cinco meses e meio. Eu nunca tinha visto isso na vida. É uma pena. Mas às vezes eu brinco com ela, como eu sou uma pessoa de fé, e digo-lhe: ‘Deus falou comigo e disse que já te deu muito, então dê-se por satisfeita.’ Ela está em paz com ela. Está tranquila, a treinar com a gente para nos apoiar», continua Rochele. Telma Monteiro vai aliás estar com a comitiva do judo em Paris. «Fez questão de nos acompanhar para nos assistir.»

Estará na Arena do Champ de Mars, ali perto da Torre Eiffel, onde decorrerá a competição de judo. Onde Rochele Nunes espera brilhar, a apontar alto. Atualmente 13ª no ranking mundial, ela será a número 8 em Paris, o que lhe garante o estatuto de cabeça de série.

A apontar alto em Paris: «Quero chegar lá e brilhar. Brilhar é medalha»

«Sinto que eu estou a chegar a Paris não só melhor preparada, mas mais confiante. Eu Tóquio saí muito dececionada. Queria retribuir nos Jogos Olímpicos tudo que foi feito por mim. Mas acalmei-me, passou, e soube logo que queria voltar, porque eu sabia que era possível», começa. «Estou feliz porque sinto que é possível, porque fiz tudo e mais um pouco para chegar bem aos Jogos. Quero desfrutar deste processo todo, chegar lá e brilhar. Estou pronta.»

«Brilhar é medalha», assume. «Eu já me vejo a cantar o hino. Se eu não acreditar que sou a melhor, era melhor nem ir. Mas eu imagino-me exatamente no lugar mais alto do pódio. Se alguma coisa der errado, que eu nem conto com isso, eu venho com uma medalha.»

Nas bancadas vai ter a família a assistir, o que é mais um factor de motivação. «Vem o meu pai, a minha mãe e o meu irmão. Isso também me deixa o coração mais quente, dá-me dá mais força. É um orgulho para eles. Fortalece-me saber que eles vão estar lá.»

Olá, Cristiano Ronaldo. Ela é a Rochele

Está tudo planeado. Até a forma como irá comemorar se ganhar uma medalha. «Já pensei como vou celebrar, claro. Com o «Siiim» do Cristiano Ronaldo. É para ver se ele repara em mim. Tenho todo o plano já na minha cabeça.»

É todo um plano mesmo. «Há três pessoas de quem sou muito fã na minha vida. O Ayrton Senna, que já faleceu, mas que eu admiro muito, a Beyoncé e o Cristiano Ronaldo. Na minha cabeça, a Beyoncé com certeza sabe quem é o Cristiano Ronaldo. Então eu penso, se o Cristiano Ronaldo souber quem eu sou, automaticamente estou mais perto da Beyoncé também», ri-se.

Aos 35 anos, Rochele Nunes não sabe se estes serão os seus últimos Jogos Olímpicos. Ela quer continuar e tentar conciliar a competição com outros projetos de vida. Inspirada num exemplo da própria comitiva portuguesa nos Jogos de Paris. «Eu acho que não vão ser os meus últimos Jogos. Tenho planos, penso talvez em ser mãe, mas voltar para o judo. As pessoas dão-me condições para isso, o meu treinador, o clube, o Comité Olímpico. A Ana Cabecinha, que vai ser uma das porta-bandeira, foi mãe em maio. E quando vi, eu pensei, ‘É muito possível’. Então, a gente não sabe, porque quatro anos realmente é muito tempo. Mas a minha vontade hoje é continuar, porque eu quero fazer mais história. Para já é o foco na medalha, depois a gente vê.»

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