Eis a ciência "dos travões" que pode ajudar o nosso corpo a deixar de se atacar a si mesmo - TVI

Eis a ciência "dos travões" que pode ajudar o nosso corpo a deixar de se atacar a si mesmo

  • CNN Portugal
  • VP
  • 6 out, 23:55
Nobel Medicina (getty)

As descobertas relativas à forma como o sistema imunitário funciona deram a três cientistas um prémio Nobel da Medicina. Vão influenciar o tratamento do cancro, os transplantes de órgãos e o combate às doenças autoimunes 

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O sistema imunitário é como um “exército”: está sempre pronto para atacar vírus, bactérias e outros invasores. Mas tal como em qualquer exército, pode haver falhas, afirma à CNN Portugal Ricardo Moutinho Guilherme, médico especialista em medicina geral e familiar. Neste caso, o exército de células às vezes engana-se e reconhece o próprio organismo como um inimigo, que é o que acontece no caso das centenas doenças autoimunes existentes - um mal-funcionamento do sistema imunológico que leva o corpo a atacar os seus próprios tecidos.

O Prémio Nobel da Medicina foi entregue a cientistas que descobriram como é que o corpo evita este erro. A chave está na chamada tolerância imunitária periférica, uma espécie de travão natural que impede o sistema imunitário de se virar contra nós.

O instituto sueco Karolinska, órgão responsável pela atribuição do prémio, explicou que os três laureados - Mary E. Brunkow, Fred Ramsdell e Shimon Sakaguchi - trouxeram para a conversa as chamadas células T reguladoras, uma classe de glóbulos brancos que atuam como seguranças do sistema imunológico, impedindo que as células imunológicas ataquem o nosso próprio corpo.

Nuno Alves, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), explica que esta tolerância imunitária periférica que funciona como um “travão” para que as células não desencadeiem ataques contra o próprio corpo tem dois grandes mecanismos: a tolerância central, que ocorre no timo e na medula óssea através de um processo de “seleção negativa” que elimina grande parte das células potencialmente perigosas; e a tolerância periférica, estudada pelos premiados, em que as células circulam pelo organismo e suprimem respostas imunitárias excessivas. 

Os cientistas isolaram um gene chamado “FOXP3”, que é importante para a formação das células T, que, segundo Mary E. Brunkow, “são raras, mas poderosas, e são essenciais para atenuar a resposta imunológica”, impedindo assim que o organismo colapse e se ataque a si mesmo.  

O movimento dessas células é benéfico porque permite ao organismo reagir a qualquer elemento estranho. No entanto, esse processo “também envolve riscos”, explica Nuno Alves. Quando a chamada tolerância periférica falha, podem surgir doenças autoimunes. As novas descobertas representam, portanto, um avanço importante na compreensão e possível regulação dessas doenças: “o impacto que isto pode ter nas doenças autoimunes é tremendo, pois esta ausência das células T reguladoras desencadeia fenómenos de autoimunidade.”

Ricardo Moutinho Guilherme lembra que existem “centenas de doenças” com componentes autoimunes, como artrite reumatoide, esclerose múltipla, anemia hemolítica e vitiligo, entre muitas outras.

Mas Nuno Alves refere que os efeitos não se limitam às doenças autoimunes. No caso do cancro, por exemplo, a ação das células em causa na tolerância imunitária periférica pode ser contraproducente. Isto porque muitas vezes, os “travões” são fortes demais e impedem o corpo de atacar tumores. “Quando nós temos estes bloqueios a operar, pode inibir a resposta antitumoral”, nestes casos a estratégia terapêutica é a oposta: reduzir a ação supressora das células reguladoras para estimular a luta contra o tumor. 

“Acredito que chegará o momento em que o cancro deixará de ser uma doença assustadora e passará a ser uma doença curável”, afirmou Shimon Sakaguchi, citado pela Reuters. 

Quando falamos de transplantes, esta regulação "vai ter um impacto enorme”, porque conseguindo suprimir o sistema imunológico existe uma probabilidade maior de o órgão não ser rejeitado pelo corpo. O sistema imunológico está “programado” para responder a órgãos transplantados, que não são do nosso próprio organismo, o que é uma resposta normal que leva à rejeição. “Nós queremos que haja uma supressão do sistema imunológico para levar a um aumento da longevidade do órgão transplantado e, portanto, impedir a sua rejeição”, sublinha Nuno Alves.  

Shimon Sakaguchi afirmou numa conferência de imprensa em Osaka que “pensava que algum tipo de galardão poderia estar para vir se o que têm feito avançasse um pouco mais e se tornasse benéfico para as pessoas em contextos clínicos.” 

Estas descobertas vão abrir caminho para novos tratamentos que ajustam a atividade do sistema imunitário: “vão surgir novas terapias, novos fármacos, para regular este sistema periférico, ou seja, permitem combater algumas doenças autoimunes, tratar melhor os pacientes nos pós-transplantes e até desenvolver estratégias para imunoterapia contra o cancro”, destaca o médico Ricardo Guilherme. 

Os vencedores do prémio são selecionados pela Assembleia Nobel do Instituto Karolinska, uma universidade de medicina de renome, e recebem um prémio no valor de 11 milhões de coroas suecas (cerca de um milhão de euros), bem como uma medalha de ouro entregue pelo rei da Suécia. 

Após anunciar os vencedores, Thomas Perlmann, do Instituto Karolinska, disse que terapias específicas ainda não tinham sido aprovadas para comercialização, mas que mais de 200 ensaios em humanos que envolvem células T reguladoras estavam em andamento. Entre as empresas na corrida inicial está a Sonoma Biotherapeutics, de Ramsdell, que é parcialmente financiada e apoiada pela farmacêutica americana Regeneron para trabalhar em terapias contra doenças, incluindo a doença inflamatória do intestino.

Graças a estas investigações premiadas torna-se possível ajustar estes “travões” em diferentes doenças. “Não é só a descoberta em si que tem importância, mas o facto de já se conseguir manipular as funções destas células e ter um impacto direto em terapias”, sublinha Nuno Alves. 

O prémio de medicina do ano passado foi concedido aos cientistas norte-americanos Victor Ambros e Gary Ruvkun pela descoberta do microRNA e seu papel fundamental no crescimento e na vida dos organismos multicelulares.

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