A TÁCTICA DO CHAPÉU
Para lá dos factos políticos e históricos, há ainda testemunhas vivas e memórias que não se apagam, e que abrem o véu sobre algumas faces ocultas de Oliveira Salazar. Por exemplo, o testemunho de um dos dois sobrinhos-netos do ditador, Rui Salazar de Lucena e Melo, 70 anos, que ainda vive numa casa no Vimieiro junto à do tio-avô. A casa de Salazar, que não deixou descendentes, pertenceu até há pouco tempo a Rui Salazar e ao irmão. Ali funciona hoje uma espécie de canil para cães abandonados. A casa-natal de Salazar, mesmo ao lado, está retocada por fora, mas também muito estragada por dentro.
Em vida de Salazar, quem podia falar dos aspectos mais íntimos da sua vida pouco falou, por medo ou ignorância. Casos de Marcelo Caetano, o seu sucessor, ou de Franco Nogueira, seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que ainda assim, nas Memórias, abre um pouco o véu sobre aspectos mais privados da vida e do quotidiano do Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo. Alguns, supostamente próximos do ditador, falaram e escreveram mais tarde, depois da sua morte e/ou após o 25 de Abril. Gente que foi poderosa, e que Salazar parecia desprezar, mas que deixou tornarem-se ainda mais poderosos.
Há obra escrita sobre Salazar, às vezes esquecida, outras vezes renascida, conforme as modas e os "bites" televisivos. Jornalistas como Fernando Dacosta, Joaquim Vieira ou Felícia Cabrita, ou historiadores como Fernando Rosas, Irene Flunser Pimentel e Filipe Ribeiro de Menezes, abriram caminho para se conhecer melhor alguns aspectos da vida e das acções do ditador. Fernando Dacosta, enquanto jornalista, conheceu e privou com Salazar, em S. Bento, e sobretudo com a sempre presente Dona Maria, a eterna governanta. Dacosta explica que tudo começou por causa do vinho do Porto. "Foi por causa do vinho e da agricultura que ele me contactou. Como jornalista, estava lá em S. Bento, e ele queria saber como é que estava o vinho do Porto nessa altura. Havia uns ataques de míldio nas vinhas (o míldio é uma doença que dá cabo das uvas), e a minha família é de vinhateiros do Alto Douro. E ele então queria saber..." Já ninguém se lembra dos vinhos de Salazar, e a própria obra política se foi esbatendo aos poucos. Mas o espírito salazarista e "salazarento" ainda paira como um fantasma sobre o dia-a-dia de muitos e muitos portugueses, da Direita à Esquerda. É um espírito mesquinho e desconfiado que deixou marcas, e que Salazar disfarçava, imagine-se, com o chapéu. "Ele utilizava o chapéu para não apertar a mão às pessoas. Há muito poucas fotografias ou circunstâncias em que ele aparece a apertar a mão aos outros. Tirava o chapéu, ficava com ele na mão, para não ter de cumprimentar ninguém!", conta Fernando Dacosta.
Quanto à família e origens do ditador, poucos saberão que António Oliveira Salazar herdou o apelido Salazar da mãe, D. Maria do Resgate Salazar, de origem espanhola. Se o sr. António Oliveira seu pai se tivesse imposto, o filho ficaria para a História com o nome de António Oliveira, segundo a tradição portuguesa. Não seria a mesma coisa, até porque Oliveiras há muitos mais. Mas D. Maria do Resgate terá insistido nos hábitos espanhóis, onde o último apelido é sempre o da mãe.
António é o filho mais novo, o único varão de António e Maria do Resgate. A mãe engravida aos 44 anos, idade perigosa para a maternidade, sobretudo naqueles tempos de 1889, há 130 anos. O pequeno António cresce rodeado de mulheres - a mãe e as quatro irmãs (Marta, Elisa, Leopoldina e Laura). A mãe, Maria do Resgaste, é uma mulher de forte personalidade. O pai Oliveira é mais apagado. A família vive da agricultura. O pai começa como feitor dos grandes senhores da terra de Santa Comba Dão, os Perestrellos, mas possuem de seu algumas propriedades rurais. São pequenos agricultores, ainda que relativamente abastados - até têm vários criados. "Quando Salazar nasceu, o pai deu à mãe uma moeda em ouro, que era os 10 mil réis D. Luís!", conta Rui Salazar.