O retrato de vida da família Duarte, numa reportagem de Diogo Assunção, com imagem de Miguel Bretiano e edição de imagem de João Pedro Ferreira.
Cruzaram-se nos corredores da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e queriam ser professores de geografia. Ele gostava de contar piadas e falar com todos, sobre tudo, ela gostava de contemplar a natureza e “as coisas simples da vida”.
Ester e Carlos viriam a casar, anos mais tarde, e a trazer ao mundo dois bebés.
Guilherme era destemido, apaixonado pelo mar e adorava brincar com carrinhos e ‘playmobil’ de bombeiros. O segundo filho do casal gostava de dançar, brincar com ‘barbies’ e colher flores.
Na chegada à escola, essa “diferença” levou-o a ser vítima dos colegas.
Foi na primária, no primeiro ano em que eu estava a brincar com uma amiga minha, quando os miúdos do ciclo começaram a atirar-me laranjas podres. Eles atiraram aquilo com imensa força e estamos a falar de um miúdo com seis anos, comparado com miúdos de 17 anos. Chorava só… Não podia ter outra reação”, conta.
Houve um dia em que fui buscar o meu filho à escola, e para poder interagir com os outros meninos estava a servir de bola. No chão. Enroladinho. A servir de bola", confidencia a mãe Ester.
Às vezes em casa, quando os meus pais não estavam por perto, costumava usar a roupa, as malas e os sapatos da minha mãe”, contou a jovem de Arouca.
Estes foram os primeiros passos do longo caminho que o filho mais novo de Ester e Carlos viria a percorrer.
À medida que ia crescendo, os sinais de que era um menino especial tornavam-se evidentes.
O filho do casal de Arouca percebeu cedo que não se identificava com a imagem que via refletida no espelho, nem com o nome pelo qual era chamado, e junto com os pais começou a procurar respostas.
Foram horas de pesquisa, dezenas de consultas em psicólogos, pedo-psiquiatras e sexólogos até chegar à resposta, que mesmo sem saber, passou a vida a procurar.
Nasceu com uma identidade de género, diferente do sexo que lhe foi designado no momento do nascimento. Nasceu menina, em corpo de menino.
Durante este processo escolheu o nome Alice, porque o seu filme preferido é o clássico da Disney, “Alice no País das Maravilhas”, e foi numa manhã de novembro, em 2018, que começou a luta para ver o seu verdadeiro eu, refletido no espelho.
A terapia hormonal ajuda as mamas a crescerem, inclusivamente a glândula mamária. As ancas, que eu já tinha, acabaram por crescer ainda mais, assim como o rabo”, descreveu Alice.
Durante todo este processo, Alice contou com o apoio incondicional dos pais, que após um período inicial de dúvidas e algum preconceito, não largaram mais a mão da filha.
Se nós sabemos qual é o nosso lugar, logo a partir daí conseguimos atingir um determinado grau de felicidade. quando nós não sabemos qual é o nosso lugar, seja de que maneira for, o nosso grau de infelicidade é imediatamente reduzido”, afirmou o pai Carlos.
Alice vive rodeada de amor, desde os pais, aos amigos próximos, até aos avós.
A minha neta é bonita? Bonita é favor, mais que bonita, é a menina mais linda que existe no planeta, esta minha menina… Os olhos da minha cara! Quem é que não gosta de uma coisa assim tão linda, quem é?”, partilhou a avó Dulce.
Alice encontra-se neste momento na fila de espera para a cirurgia de readequação sexual, um dos últimos passos no caminho que vem a trilhar desde a infância, até lá vive cada dia junto daqueles que mais ama e que mais a amam.