Hélder Costa aponta para a montra da loja de roupas do nº 40 da rua Saint-Séverin, no coração do Bairro Latino parisiense. "Eis a prova de que os livros não vestem as pessoas, não dão fatos! Só mudam cabecinhas e mentalidades!" Estamos em Maio de 2018. O dramaturgo e encenador Hélder Costa, hoje director e alma do Teatro "A Barraca", solta um suspiro de ironia. "A livraria já fechou! O que é que se esperava!?" Há 50 anos, em Maio de 1968, Hélder Costa está em Paris, onde trabalha e tenta "agitar as massas". E é no nº 40 da Rua Saint-Séverin, onde funciona hoje uma incaracterística "loja de modas", que se moldam e agitam as mentalidades, na Livraria "Joie de Lire" (Alegria de Ler). A grande originalidade da livraria, fundada em 1957 por François Maspero, é apresentar e divulgar todas as teorias revolucionárias da época, da política à literatura e às artes. Por aqui se concentram e misturam todos os comunismos e esquerdismos. É local de encontro de revolucionários ibéricos e latino-americanos, guevaristas e trotskistas, anarquistas e extremistas em geral. É na "Joie de Lire" que se descobrem todos os livros proibidos e subversivos, se juntam os opositores à guerra do Vietname e muitos dos jovens universitários, franceses e estrangeiros, prestes a espoletar os grandes protestos do Maio de 1968. Hélder Costa é um deles.
Alentejano de Grândola, o jovem Hélder tem então 28 anos e uma já longa experiência política. Uns anos antes, início da década de 60, Hélder era estudante de Direito em Coimbra e activo militante maoísta. "Queria tirar Direito para dar porrada nos gajos". Expulso da Universidade pelo próprio director da PIDE, Hélder passa a organizar as fugas de muita gente para o estrangeiro, sobretudo para França. Em 1967, uma denúncia faz com que a sua casa em Lisboa fique cercada por agentes da PIDE, a polícia política de Salazar, 15 homens armados com metralhadoras. Avisado a tempo, Hélder Costa foge para França, depois de atravessar a nado um rio de fronteira. Quando chega a Paris, a primeira coisa que faz é dirigir-se à livraria "Joie de Lire". "E quem é que vem a sair?! O Zé Mário Branco!" José Mário Branco, compositor e cantor, acolhe Hélder durante um mês na sua casa de Paris. Na altura, muitos jovens pensam em fazer a Revolução por todos os meios, sobretudo os que vinham de países ditatoriais como Portugal e Espanha, além dos fugitivos latino-americanos. Muitos pedem asilo político em França. Hélder, calejado nas veredas da clandestinidade em Portugal, não vai na conversa de pedir asilo político. "Eu, pedir asilo político?! Era o que faltava! Eu era um gajo que vinha trabalhar! A polícia que descobrisse depois que era também um político, um agitador..."
Sempre libertário, Hélder passa a privar e a conspirar com vários exilados e refugiados portugueses. "O Zé Mário Branco acabava de criar aquela canção fabulosa, a do soldadinho..." Por essa altura, chegam todos os dias muitas centenas de portugueses à estação ferroviária de Austerlitz, em Paris. Passam a fronteira portuguesa a salto, fogem à miséria e à fome, muitos também à guerra colonial em África. "Vinham aldeias inteiras, às vezes até vinha o padre..." Paris é então a segunda cidade portuguesa, a seguir a Lisboa. São mais de um milhão de emigrantes - homens, mulheres e crianças. A maioria vive nos bairros-de-lata (os conhecidos "bidonville") dos arredores de Paris. Além destes emigrantes económicos, há também os "políticos", os agitadores anti-salazaristas. Alguns, como Hélder, agitam nas fábricas da Renault e da Citroen, onde trabalham milhares de operários portugueses. Encontram-se todos em vários cafés, como o "Luxemboug" e o "Lutéce". Cruzam-se maoístas, trotskistas, extremistas de várias tendências, e também o pessoal da LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária), de Palma Inácio, Camilo Mortágua e companhia, que no ano anterior haviam executado o célebre assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, de onde levam 30 mil contos (uma fortuna para a época). E nos cafés, pelo meio dos "políticos", mexem-se também os "bufos" e os agentes da PIDE. Nas mesas dos cafés, com alguma ingenuidade e muita imprudência, combinam-se acções revolucionárias armadas em Portugal. Por isso - conta Hélder - "alguns eram logo presos mal passavam a a fronteira..."