Telmo era apenas ele, agora somos nós
Reportagem de Paulo Salvador, com imagem de Ricardo Ferreira e edição de imagem de Miguel Freitas
Uma vida com tudo certo para dar errado. Uma criança madeirense, pobre, violentada, sem direito à infância, aos pais.
Um projecto com tudo errado para dar certo. Um homem vindo de S.Paulo, com uma vida, dinheiro e família.
Qual a probabilidade de vidas tão apartadas se juntarem no meio do Atlântico e construírem algo inspirador e que nos faça pensar para lá de nós?
Telmo Ferreira e Henrique Amoedo são protagonistas de uma singularidade. Um lutou para sobreviver, outro mudou o seu paradigma existêncial para viver.
Um viveu o que o obrigaram a viver, a fingir, a sofrer. Outro vivia o que queria até perceber que não era sua aquela vida, os mercados financeiros sem rostos, sem pessoas.
A história de Telmo na TVI emocionou cerca de milhão e meio de pessoas, incendiou as redes sociais de apoios e carinhos sem fim aos protagonistas da reportagem. Uma reacção tão imediata, orgânica, crua, que confesso a surpresa.
Na rua, nos mais variados locais públicos, anónimos queriam saber o que se passara com o Telmo. Se ele estava bem, o que lhe acontecera.
Não deixa de ser inquietante alguém que até ao dia 23 de Abril de 2017 era desconhecido do grande público - apesar de várias reportagens terem sido feitas por vários media sobre o projecto Dançando com a Diferença e o Telmo - seja agora um exemplo inspirador de tantos milhares de pessoas que bateram de frente com uma realidade que, não sendo nova, é genuína, verdadeira. Pessoas que sentiram o que o menino das caixinhas lhes contou, que choraram quando ele chorou, que sofreram quando ele se calou, que engoliram em seco quando ele descreveu - como só um escritor ousaria - as pequenas dentadas num simples pão com molho que parecia saciar toda a fome do mundo.
Esse é o poder da televisão, sobretudo uma televisão líder como a TVI, dirão alguns.
Em parte é verdade, mas há algo mais do que isso. Uma história não sobrevive à bastardia. O Telmo tocou quem o viu porque tem legitimidade, simplicidade e dignidade. O Telmo mexeu com todos nós porque no seu sofrimento escondem-se tantas outras dores e desânimos quantas aquelas com que nos identificamos, entendemos, escondemos. Ele reflecte-nos.
Quando comecei a escrever esta reportagem a minha primeira frase foi : “Telmo era apenas ele, só ...” Sinto agora o tempo verbal como premonitório. O pretérito imperfeito parecia adivinhar que, passadas 48 horas e duas reportagens, todos nós estaríamos mais perto dele. Agora que todos nós o conhecemos e admiramos, estamos mais conscientes do que este ex-menino das caixinhas representa. Por isso nos inspira. E nesse sentido, se calhar todos nós somos também um pouco mais Telmo.