Investigadora, especialista em educação e parentalidade, a canadiana Catherine L’Ecuyer defende que é urgente o regresso ao ócio e às coisas simples da vida. Escritora, autora de vários livros, como “Educar na Curiosidade” e de “Educar na Realidade” considera um erro o valor que atribuímos à tecnologia na educação das crianças de hoje: “A ligação WiFi não é o mesmo do que a ligação humana, das pessoas que olham para os olhos. A educação é uma coisa humana, não tecnológica”.
Catherine L’Ecuyer esteve em Portugal para participar na 31ª conferência da EECERA, uma organização não governamental britânica de educação, sobre a “Abordagem do Encanto”. Em entrevista à CNN Portugal a propósito dessa visita, a escritora defende que “as crianças e jovens hoje mostram vontades, mas não têm anseios”. E, a propósito do tempo que passamos com os nossos filhos, deixa um desafio: “Chegue junto do seu chefe e diga-lhe que vai fazer as sete horas de trabalho em duas horas de trabalho de qualidade. Isso é o que dizemos aos nossos filhos todos os dias”.
Catherine L’Ecuyer nasceu no Canadá e vive em Barcelona. É mãe de quatro filhos. É consultora, investiga, escreve e dá conferências sobre parentalidade e educação. Em 2020, foi nomeada membro honorário da Asociación Montessori Internationale, em Espanha, e faz atualmente parte de um grupo de assessores educacionais do Governo do México.
Qual o maior desafio que os pais enfrentam atualmente na educação dos filhos?
As crianças crescem num ambiente cada vez mais frenético e exigente que, por um lado, tem tornado a tarefa de educar mais complexa, e, por outro lado, afasta-os do essencial. Para o sucesso dos nossos filhos, consideramos necessário programá-los para um sem fim de atividades que os estão a afastar daquilo que resgata a sua natureza. A vida dos nossos filhos transformou-se numa verdadeira corrida para saltar etapas. Muitas crianças estão a perder o melhor da vida: descobrir o mundo e envolver-se na realidade.
Qual a fórmula secreta para despertar a curiosidade das crianças de hoje para assuntos que não envolvam ecrãs?
Regressar ao ócio de sempre, à brincadeira livre, à naturalidade, ao silêncio e à beleza. O espanto (maravilha) é não dar nada por garantido. Ver tudo com olhos novos, como se fosse pela primeira ou pela última vez. O assombro é o desejo de conhecer, dizem os filósofos. Se nos preocupamos com o facto de as crianças estarem desmotivadas para aprender, temos de semear uma educação na qual se respeitem o assombro e o desejo de aprender.
No livro “Educar para a Realidade”, fala justamente sobre o desafio das tecnologias. São a nova realidade ou um instrumento para escapar da realidade?
A “realidade virtual” não é real. São as sombras da caverna de Platão. São reflexos da realidade, não a realidade em si. Os ecrãs são úteis, mas nunca serão substituídas pelo contacto humano. A ligação WiFi não é o mesmo do que a ligação humana, das pessoas que olham para os olhos. A educação é uma coisa humana, não tecnológica. Na pandemia, demos conta disso: os alunos acusaram um atraso importante nas aprendizagens. Não é o mesmo aprender online do que estar numa aula presencial.
Temos atualmente crianças mais apáticas, menos interessadas, menos assombradas pelas coisas mais simples da vida? Temos filhos mais desligados da natureza, dos outros, dos afetos?
A criança que deseja conhecer tem interesse pela realidade, quando essa realidade se ajusta aos seus ritmos internos. Quando os estímulos externos são muito fortes, substituem-se ao seu desejo de conhecer e a criança torna-se passiva. O próximo passo é a dependência. Vai depender dos estímulos externos para se ganhar interesse. Quando deixa de ter estímulos externos, a reação do menino oscila entre a ansiedade e o aborrecimento. O contrário do assombro é o cinismo. E a criança cínica não se interessa por nada.
Afirma que as crianças mais pequenas deveriam ficar totalmente afastadas dos ecrãs. Quais são os verdadeiros riscos dos ecrãs para os bebés? Que danos lhes podem provocar?
As principais associações pediátricas (Academia Americana de Pediatria e a Associação Canadiana de Pediatria) recomendam que as crianças não usem ecrãs antes dos dois anos. E recomendo que, entre os dois e os cinco anos, tenham acesso a ecrãs menos de uma hora no dia. E o conteúdo deve ser de qualidade.
Os estudos associam o consumo precoce de ecrãs com a hiperatividade, dificuldades de atenção, fuga à realidade, menos vocabulário, a perda de sentido de relevância. As crianças aprendem de duas formas: através de experiências sensoriais e através de interações pessoais. Não aprendem através de ecrãs.
Existem escolas onde os livros físicos não são mais utilizados. Apenas computadores e tablets. Em Portugal, experimentámos já exames exclusivamente digitais, inclusive no ensino primário. É benéfico ou antes pelo contrário?
Não há estudos que indiquem que os tablets contribuem para uma boa aprendizagem. Há estudos pontuais que dizem que as crianças “gostam mais”. Alguns desses estudos são patrocinados por empresas tecnológicas. “Gostar mais” também gostam de guloseimas e de chocolate, mas isso não quer dizer que sejam boas para as crianças. Pelo contrário, existem estudos que apontam para uma dispersão da atenção [na aprendizagem com recurso ao uso de tecnologias].
Pergunto-me como podemos apresentar essas ferramentas nas aulas sem solicitar às empresas tecnológicas que realizem testes aos benefícios educativos objetivos e da ausência de efeitos prejudiciais. Há muito dinheiro em jogo. Estamos a iniciar a “desdigitalização”. Em cinco anos, olharemos para. trás e encararemos a situação com a perplexidade.
A Catherine é um pouco crítica da expressão e do conceito “nativos digitais”. Mas a verdade é que os nossos filhos nasceram numa época em que a comunicação é digital. Eles não aprenderam melhor com esses suportes?
Os nascidos desde o ano 84 tiveram mais contato com o mundo digital. É um fato incontestável. Nesse sentido, podemos chamá-los de “nativos digitais”. Mas a expressão “nativo digital” vai mais além e afirma que, por ter estado em contato com o mundo digital desde uma época precoce, essa geração aprende melhor através das ferramentas digitais. As evidências mostram que isso não é correto. As crianças de hoje aprendem da mesma forma que as crianças de há 500 anos. A multitarefa tecnológica não é possível, nem para os “nativos digitais”. Não é possível fazer duas coisas quando necessitamos de processar informações. Quando tentamos fazer isso, há uma fatura a pagar: mais superficialidade, mais erros, perdemos de vista o relevante. Os jovens de hoje são apaixonados pela irrelevância.
Serão as tecnologias as principais responsáveis pelo desencanto das crianças de que falamos anteriormente em relação às pequenas coisas da vida (uma flor, um pássaro, uma concha da praia…)?
As crianças e jovens hoje mostram vontades, mas não têm anseios. Como diz Meg Wollizer, ‘têm manteiga, mas não têm pão’. A sobreestimulação está abaixo do limiar do sentir. Estão cheios de emoções fortes, mas não sentem simplesmente. Têm os sentidos apurados pela velocidade e pelo ruido. Não captam os pequenos lugares da vida, como o prazer de assistir a um pôr do sol ou a leitura lenta de um livro clássico. Perderam de vista o essencial e são presas fáceis do imediatismo.
Como podemos então resgatar esse encantamento?
Adaptemos à amplitude da realidade. A realidade é lenta e exigente. A realidade nem sempre se comporta como desejamos. Temos de voltar a atividades lentas, como a leitura por prazer, com a pesca, como a bricolage, como os passeios na natureza, com a cozinha, ou como a jardinagem…
Temos cada vez menos tempo para nossos filhos. Costumamos dizer que o que importa é a qualidade do tempo que passamos com eles, não a quantidade. Isso é verdade? Concorda com isso? Ou é antes uma desculpa que damos a nós mesmos para aliviar as nossas consciências?
Chegue junto do seu chefe e diga-lhe que vai fazer as sete horas de trabalho em duas horas de trabalho de qualidade. Isso é o que dizemos aos nossos filhos todos os dias. O que precisamos para os nossos filhos não é apenas qualidade, é também quantidade. Especialmente entre os zero e os três anos. Além disso, não entendemos muito bem o que é “qualidade”. Pensamos que a qualidade é “sobreestimular” ou “comprar coisas caras”. O tempo de qualidade é “estar” com a criança. Às vezes até apenas “estar disponível” para ela e com ela, sem dizer nada, é tempo de qualidade.
Sabemos que é importante que as crianças conheçam e vivenciem a frustração. O tédio também é importante para o desenvolvimento das crianças?
Tolstoi dizia que o aborrecimento é “desejar o desejo”. O desejo é o preâmbulo da criatividade da brincadeira. Quando damos entretenimento às crianças o dia inteiro, estamos a impedi-los de serem eles próprios.
E o risco? Correr riscos também é importante?
É bom que as crianças aprendam a correr riscos e desenvolvam uma resistência à frustração. A partir dos dois anos (digo dois anos, porque antes poderíamos interferir no vínculo de apego), é bom que as crianças esperem antes de ter algo. Quando o menino tem tudo o que deseja “antes de desejar”, pensa que o mundo tem que se comportar como “ele quer”. E depois, pensa que as pessoas devem se comportar como eles querem. Imaginamos uma sociedade formada por pessoas que pensam que os demais devem comportar-se como cada um deseja. Seria catastrófico.
Muitas crianças, além da escola, têm outras atividades (desporto, música, outros idiomas…). Essas atividades são importantes para o seu desenvolvimento? Quando é que essas atividades extracurriculares se tornam demasiado?
Às vezes, as atividades extracurriculares existem para “colocar” as crianças enquanto os pais trabalham. É uma lástima que os horários laborais não se harmonizam com os horários escolares. Em geral, não me parece bom que algumas crianças de menos de seis anos tenham de aumentar a sua jornada escolar com atividades extracurriculares. As crianças precisam de criar raízes em casa, estabelecendo um vínculo de apego com os pais. Ao completar seis anos, podem começar a praticar atividades em função dos seus gostos e dos seus talentos. É bom que seja na dose certa, para a criança tenha tempo para a brincadeira livre.
As crianças brincam o suficiente?
Em geral, as crianças brincam cada vez menos. E estão cada vez menos tempo ao ar livre. No meu livro, defendo a brincadeira semiestruturada. Trata-se de um tipo de brincadeira em que a criança escolhe a atividade de forma espontânea, mas não é abandonado a si mesmo, “fazendo o que lhe dá na real gana”. É importante que o adulto escolha o ambiente (sem perigo e sem ecrãs) e depois dê oportunidade à criança de escolher a atividade e de levá-la a cabo por si mesma. “Brincar” implica uma ação de “liberdade interior”, de espontaneidade racional. Poderíamos dizer que é uma atitude chave também no adulto. Podemos ver a vida em termos de brincadeira ou dever. Quando somos protagonistas de nossas vidas, vemos a vida como uma brincadeira.