"Uma palmada bem dada no momento certo pode fazer milagres" - esta é uma frase que ainda é dita por alguns dos pais que aparecem nas consulta da pedopsiquiatra Berta Pinto Ferreira. "É uma coisa muito geracional, até há alguns anos era aceitável que os pais e educadores batessem nas crianças para as castigarem", explica a especialista à CNN Portugal. As palmadas nas mãos, no rabo ou, até, no rosto, eram consideradas normais como forma de disciplinar. Muitos dos que agora são pais levaram palmadas quando eram crianças e, por isso, acabam por repetir o chavão de que a "palmada pedagógica" pode ser útil. Mas os especialistas não concordam.
Em fevereiro, o Instituto de Apoio à Criança lançou uma campanha de combate à violência contra as crianças. "Na verdade, tem sido observado que, não obstante serem expressamente proibidos pela nossa lei penal desde 2007, os castigos físicos continuam a ser desvalorizados e tolerados, sob diversos pretextos, o que é inaceitável, face aos conhecimentos que já possuímos e que demonstram os efeitos negativos da violência", explicou o IAC no comunicado. "Quer a nível da família, quer noutros contextos, ainda persistem ideias relacionadas com a chamada “palmada pedagógica”, parecendo existir ainda a convicção de que se educa batendo. De vez em quando, sabemos de decisões judiciais que mencionam a “violência razoável”, desresponsabilizando quem agride, seja na família ou fora dela."
Felizmente, diz Berta Pinto Ferreira, os tempos estão a mudar e são cada vez menos os que defendem este tipo de abordagem: "Na maioria dos casos, os pais que recorrem à palmada fazem-no num momento de descontrolo, quando já não sabem como resolver uma determinada situação". A pedopsiquiatra compreende - "Educar é muito difícil e pode, de facto, ser muito cansativo" - mas não desculpa: "Qualquer violência sobre as crianças é errada e bater é um ato de violência, é sempre errado".
"Violência Nunca. Nem física nem verbal nem intimidatória nem humilhante", concorda o pedopsiquiatra Pedro Monteiro. "Tudo o que seja bater, castigos físicos ou humilhações são inaceitáveis. Sejam em qualquer zona do corpo ou com qualquer intensidade", diz, sem hesitar, à CNN Portugal.
Da mesma forma, a psicóloga Clementina Almeida, especialista em psicologia infantil, é categórica: “Palmada pedagógica é uma forma de dourar a pílula, já que estamos sempre a falar do uso de violência física como forma de disciplinar uma criança. E a resposta é claríssima: Nunca é aceitável, como não é aceitável o uso de violência em qualquer relação. Bater em crianças ensina-lhes que é aceitável bater nos mais pequenos e mais fracos e quanto mais crianças são agredidas pelos pais e cuidadores (quanto mais vulgar se torna o usa da dita “palmada pedagógica), maior é a probabilidade de elas baterem noutras, incluindo colegas e irmãos. Quando adultos, aumenta a probabilidade de que batam também nos seus parceiros".
De acordo com esta especialista "o tema permanece ainda muito controverso, embora a pesquisa seja extremamente reveladora, muito clara e consistente sobre os seus efeitos negativos, que vão muito para além do evidente magoar fisicamente".
A palmada, diz "tem um impacto emocional" que não se deve ignorar e "que traz danos de longo prazo para o desenvolvimento". Segundo a especialista, as conclusões de mais de 50 anos de investigações são claras: "crianças que são disciplinadas fisicamente com palmadas são emocionalmente menos saudáveis do que as outras crianças". Além disso, "os dados mostram também de forma inequívoca que o castigo corporal torna as crianças mais agressivas e menos obedientes ao longo do tempo, sendo que o único resultado positivo imediato que se possamos imaginar, ou seja, a obediência no momento, não está sequer comprovado".
Porque é que a palmada não é solução?
Antes de mais, existe um princípio de não violência contra os outros, sejam crianças ou adultos. Depois, existem muitas dúvidas de que as palmadas sejam de alguma forma "pedagógicas". Segundo Pedro Monteiro, as palmadas "dão resultados negativos em vez de positivos": "A criança não fica mais educada, pelo contrário desenvolve medo, ansiedade rancor" e, além disso, "a criança aprende com a experiência e exemplos dos adultos". Ou seja, esclarece, uma vez que "os adultos são o seu modelo", as crianças "aprendem e tendem a repetir esse estilo educativo no futuro". Resultado: "Aprendem, assim, que a forma de reagir quando estamos zangados, somos contrariados ou nos desobedecem é bater, ser violento". E isto "é o contrário do que se queremos para a sociedade – sermos dialogantes, tolerantes e exprimirmos com assertividade os nossos direitos ou pontos de vista, sem sermos violentos física ou verbalmente", diz.
No fundo, o que os especialistas dizem é que a palmada pode parecer eficaz para pôr fim a um determinado comportamento, mas a solução é extrema e apenas provisória - a criança reage por medo, mas não por ter aprendido alguma lição. E não poucas vezes, conta Berta Pinto Ferreira, as crianças começam também a "levantar a mão" aos pais, porque aprendem que essa é a maneira de reagir quando se está zangado.
"As palmadas não são aceitáveis em nenhuma circunstância, pois impedem o desenvolvimento moral, socioemocional e até cognitivo das crianças, aumentando a probabilidade de estas exibirem no futuro comportamentos de delinquência e problemas de saúde mental", esclarece Clementina Almeida e acrescenta: ."A agressão física, onde a palmada se inclui, diz-nos muito acerca da falta de controlo dos estados internos de um adulto e da perda da sua capacidade para lidar com o comportamento da criança".
Já a “palmada educativa”, diz ainda, "ensina muitas coisas, nenhuma das quais positiva: ensina a bater nas pessoas mais fracas, para conseguir o que se quer e ensina que o nosso amor enquanto pais está condicionado ao seu bom comportamento. Ensina também que atos de agressão são aceitáveis, desde que sejam para ensinar”.
E isto apenas no que diz respeito aos efeitos a curto prazo, refere a especialista, que explica que quando se pensa em efeitos a longo prazo, "inúmeras investigações já demonstraram que o castigo físico tem repercussões negativas na autoestima da criança e está relacionado com problemas de saúde mental no futuro, como transtornos de ansiedade e depressão."
Tal como bater é errado, também é errado humilhar, rebaixar ou recorrer a qualquer outra forma de violência verbal. "Ambos são maus exemplos educativos e revelam que os adultos têm dificuldade em se fazer respeitar e acima de tudo em se mostrar como bons exemplos a seguir – os pais de quem os filhos se recordarão com respeito", diz Pedro Monteiro.
"Não existe uma maneira certa de criar um filho, mas a forma como criamos as nossas crianças ao longo dos tempos (com base no autoritarismo e sem conhecimentos acerca do que está por detrás dos comportamentos mais “desobedientes” das crianças, recorrendo ao castigo, ao grito, à humilhação e até à palmada) precisa de ser urgentemente mudada", diz Clementina Almeida.
São várias razões para isso. "Primeiro, porque hoje sabemos mais e melhor acerca do desenvolvimento das crianças para conseguirmos adequar os nossos comportamentos parentais. Depois, porque a ciência demonstrou há já muito tempo e em diversos estudos a ineficácia e os efeitos negativos destas práticas parentais para o futuro das crianças". Aliás, Clementina Almeida diz que muitas vezes, "confunde-se tratar as crianças com respeito, sendo gentil, com ser permissivo na sua educação". E quanto a isso garante: "Nada poderia estar mais errado".
"Porque mostrar respeito aos nossos filhos não significa não colocar limites ao seu comportamento, até porque as crianças precisam e desenvolvem-se sentindo os limites à sua volta". A forma como limites são transmitidos é que pode fazer a diferença, sugere: "Não tem de ser aos gritos ou com necessidade de nos transformarmos num “rottweiler” assustador. De outra forma estaremos também a ensinar os nossos filhos a gritar, a humilhar e a bater."
O que fazer para evitar dar palmadas?
"Os cuidadores não usam necessariamente a disciplina violenta com a intenção deliberada de causar danos físicos à criança", pelo menos é essa a convicção da psicóloga Clementina Almeida.
"Muitas vezes, esse recurso surge como descarga de raiva e frustração e acima de tudo com a falta de conhecimento acerca dos danos a longo prazo e de outros métodos alternativos de disciplinar com base no amor e respeito", acredita.
Por outro lado, nas consultas ainda há pais que apresentam vários argumentos: que eles próprios levaram umas quantas palmadas e não morreram por isso, que uma palmada nunca fez mal a ninguém ou mesmo que uma palmada na hora certa faz muita falta. Mas estas alegações, acredita Clementina Almeida, servem para os pais "reforçarem a ideia de que não há nada de errado com esta forma de educar ou disciplinar" e não para "dizer que a palmada ensina seja o que for."
Também Berta Pinto Ferreira acredita que a palmada surge, geralmente, quando "existe da parte parental uma impossibilidade de resolver uma situação". É uma reação muitas vezes descontrolada, instintiva. Nestes momentos, diz a pedopsiquiatra, os pais devem procurar acalmar-se. Se possível, afastar-se das crianças durante algum tempo, pedir a alguém que fique com elas e "ir apanhar um pouco de ar".
Mas isto significa que os pais e educadores têm de encontrar outras estratégias para lidar com as discussões, o mau comportamento e as birras das crianças.
"Todas as crianças, desde pequenas, querem agradar aos pais. Por isso, é importante dizer-lhes quando fazem alguma coisa errada, mostrar-lhes que não estamos contentes e explicar-lhes como se deveriam comportar", propõe Berta Pinto Ferreira.
"Bater é um castigo, é uma forma de mostrar ao outro que está a ultrapassar os limites, mas há outras maneiras de o fazer. É preciso impor regras e limites, que têm de ser coerentes e consistentes", explica a pedopsiquiatra. É importante que, desde cedo, a criança perceba o que pode e não pode fazer. Uma das estratégias passa por ter uma tabela de castigos e recompensas muito clara. Existem castigos aceitáveis, como por exemplo retirar à criança algo de que ela goste ou queira muito - isto é algo que até os mais pequenos entendem.
As birras - sobretudo quando acontecem em espaços públicos - podem ser um enorme desafio para os pais, admite a especialista. "Mas há que perceber, primeiro, que todos têm direito a ficar zangados e a mostrar o seu descontentamento. O que é preciso é que a criança aprenda a mostrar o seu descontentamento sem se descontrolar, mas isso não pode ser feito durante a birra. Naquele momento, o melhor é deixar a criança fazer a birra e não ceder."
Pedro Monteiro concorda que "pode-se ter que usar a força em certas circunstâncias, acompanhada de palavras explicativa" - força no sentido de determinação, nunca no sentido de violência. "Não se deve esperar por situações extremas para se mostrar autoridade. Desde sempre deve ser claro que uma família é um espaço de diálogo mas não é uma democracia - há hierarquias que são definidas porque os pais são os responsáveis pelos filhos e a sua educação e desenvolvimento".
Ou seja, para Pedro Monteiro é importante fazer notar que são os pais "que escolhem o caminho e as regras": "Os pais devem estar seguros de si e do seu papel educativo e formativo. Não devem recear que os filhos possam discordar nem recear a comparação com outros pais."
"A autoridade deve ser transmitida de forma calma, serena, autoconfiante e firme", aconselha este pedopsiquiatra. "Não é necessário berrar. Quanto mais alto se fala mais se corre o risco de não ser ouvido e perder o controle da situação", garante
"Mostrar-se triste e contrariado pelo comportamento de um filho explicando porquê pode ser bem pedagógico", aconselha. Outra das sugestões é a de que "os castigos devem ser imediatos e não diferidos no tempo (não vais ter prenda de anos, não vais de férias)". E há mais regras que devem ser seguidas quando se aplicam castigos. "Não podem envolver humilhação e não podem envolver funções biológicas como privar de água, comida, sono etc.", explica Pedro Monteiro, sublinhando que, antes de mais, é preciso "haver entendimento de posições e regras entre os membros do casal - que podem ter pontos de vista algo diferentes, mas têm que chegar a acordo de modo a que à frente dos filhos não haja incoerências nem desautorizações nem sonegar informações".
"Educar é muito difícil e não há um livro com regras que funcionem para todos, as crianças são todas diferentes, os pais também, e tem de haver uma aprendizagem de ambos, que se vão ajustando e procurando o que funciona", conclui Berta Pinto Ferreira. Nos casos mais complicados, os pais devem procurar a ajuda de especialistas para encontrar as melhores estratégicas, podendo haver necessidade de uma terapia cognitiva comportamental.
"Os nossos filhos não são perfeitos e nós não somos pais perfeitos, mas podemos sempre tentar melhorar", acrescenta Clementina Almeida. "Se levarmos a sério a proteção das crianças contra a violência, temos que ajudar os adultos que fazem parte das suas vidas a substituir as práticas de controlo e obediência por conexão, respeito e amor incondicional". E por uma simples razão, explica: "Quando compreendemos o porquê dos comportamentos dos nossos filhos e vemos o mundo pelos olhos deles, colocando-nos ao seu lado em vez de contra eles, passamos a utilizar formas de disciplina que de facto ensinam competências para a vida."