"Escrevo sobre o que me parece particularmente sério, perigoso, injusto ou estúpido. Obviamente, às vezes estou errado": Javier Marías (1951-2022) - TVI

"Escrevo sobre o que me parece particularmente sério, perigoso, injusto ou estúpido. Obviamente, às vezes estou errado": Javier Marías (1951-2022)

Javier Marías (Quim Llenas/Getty Images)

Dele se disse isto: "A escrita de Javier Marías é diferente de qualquer outra. É fácil de parodiar, é impossível de imitar". Morreu este domingo, isto é sobre quem ele foi

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O escritor espanhol José Marías recebeu na primavera de 2006 a jornalista Sarah Fay em casa, em Madrid, para uma longa entrevista que se estendeu ao longo de seis noites. Na descrição feita na Paris Review, José Marías parecia uma daquelas pessoas que viviam fora do seu tempo. Não tinha computador nem telemóvel. Bebia coca-cola e podia sobreviver com uma dieta à base de presunto serrano e queijo Manchego. Não usava gravata, a menos que a tal fosse obrigado. E não gostava de se sentar direito, preferindo recostar-se descontraidamente no sofá. "Não muito longe da estante do chão ao tecto que abriga seus livros gregos, latinos e bizantinos há uma sala inteira de DVD com filmes de Jerry Lewis e Dean Martin, além de episódios de Bonanza, Maverick e Friends", contava a jornalista, ilustrando assim a diversidade de interesses do autor, que tanto lia poesia como gostava de cinema, colecionava soldadinhos de chumbo e era adepto de futebol. Não por acaso, o Real Madrid publicou uma nota de pesar pelo "verdadeiro madridista" assim que se soube da morte do escritor, este domingo.

Javier Marias, que ia completar 71 anos no próximo dia 20, foi um dos escritores espanhóis mais internacionais de sempre. Os seus livros foram publicados em 46 idiomas e em 59 países e vendeu mais de oito milhões de cópias em todo o mundo. "Se me consideram, fico feliz, agradeço, mas se não me considerarem, não me importo", declarou em maio, numa das últimas entrevistas que concedeu. “No meu caso, tudo o que tinha que acontecer já aconteceu em grande parte. Não posso reclamar, tive muita sorte." E dizia não estar preocupado com o destino de seus romances: “A posteridade é um conceito do passado, apesar da aparente contradição. Hoje não faz o menor sentido. Tudo envelhece a uma velocidade excessiva. Quantos autores, logo que morrem, passam ao esquecimento imediato”. É difícil, no entanto, acreditar que no seu caso isso aconteça. 

Marías estreou-se como escritor em 1971. Tinha apenas 19 anos quando publicou "Los dominios del lobo", romance escrito “pela manhã” no apartamento parisiense do seu tio, o cineasta Jesús Franco. Pouco depois publicou "Voyage Along the Horizon" (assim mesmo, com o título em inglês).

Durante anos conciliou a escrita com as aulas que dava na Universidade Complutense (e depois também em Oxford, Londres, Boston e Veneza)  e com a tradução de escritores americanos e ingleses tão diversos quanto Thomas Browne, Sterne, William Faulkner, Nabokov, Yeats, W. H. Auden, Wallace Stevens,  Joseph Conrad ou John Ashbery. A tradução, explicou, era também uma maneira de ler e de treinar a escrita. 

Em 1979, a sua tradução de "Tristram Shandy", de Laurence Sterne, ganhou o Prémio Nacional - que ele recusou, tal como voltaria a fazer em 2012 quando  obteve novamente a mesma distinção, desta vez na categoria narrativa, por "Os Enamoramentos". Rejeitou sempre todos os prémios atribuídos por instituições do Estado: "Acredito que o Estado não me deve dar nada por cumprir a minha tarefa de escritor", explicou na altura. "Durante todo este tempo evitei as instituições do Estado, independentemente do partido que governava. Considero-me uma pessoa independente." 

Haveria de ganhar muitos outros prémios, incluindo o Herralde, com "O Homem Sentimental" (1986), e o Prémio da Crítica, com "Coração Tão Branco" (1992), e até teve direito a estar na shortlist para o National Book Critics Circle Award (EUA) com "Os Enamoramentos" (2013). Ficou a faltar-lhe o Prémio Nobel, para o qual era recorrentemente referido há vários anos.

A partir de "Todos as Almas" (1989), o seu nome tornou-se incontornável. Depois desse, o já referido "Coração Tão Branco", seguido de "Amanhã na Batalha Pensa em Mim" (1994) e "Negra espalda del tiempo" (1998) definem o escritor que se equilibra entre a realidade e a ficção, usando frequentemente a escrita na primeira pessoa, escolhendo diferentes narradores para esse "eu" que se conta e se questiona permanentemente.

"Sempre escrevi sobre coisas que me interessam, na minha vida, as coisas em que penso, as coisas com as quais me preocupo, que são bastante universais, eu diria. Sigilo, confiança, traição e desconfiança e amor e amizade e morte e casamento – coisas que me preocupam, não como assuntos literários mas apenas na vida. Eu nunca planeio nada", explicou. Costumava dizer que escrevia como se usasse uma bússola, não um mapa. Sabia mais ou menos em que direção haveria de ir, mas seguia errando pelo caminho. Sem pressas. "Não escrevo para ganhar tempo: escrevo para perdê-lo, para senti-lo, para senti-lo a passar. Eu levo o meu tempo. Para um leitor impaciente, os meus romances devem ser às vezes muito enervantes ou irritantes", disse.

"A escrita de Javier Marías é diferente de qualquer outra. É fácil de parodiar, é impossível de imitar", escreveu este domingo o amigo e escritor Eduardo Mendonza. "Várias vezes o ouvi dizer que tinha escrito o seu último romance, que não tinha mais nada a dizer. Depois de alguns meses ele confessava que tinha começado outro romance, quase contra o seu próprio julgamento. E esse outro Marías, que o obrigava a escrever, fazia-o cada vez melhor."

"Há uma pergunta muito comum que os jornalistas fazem quando se lança um livro: 'O que vai fazer a seguir?'. Bem, acabei de terminar um livro que me levou três anos, não me pergunte sobre o próximo. Eu nem sei se deverá haver um próximo", dizia. "Às vezes pergunto-me: porque continuo a fazer isto? Eu comecei a escrever para ler mais. Mas porque estou a fazer isto agora? Porque continuo? Isso é mais difícil de responder."

Entre a América e Espanha, sempre a tentar compreender o mundo

Entre 2002 e 2007, Javer Marías dedicou-se à trilogia monumental em que, sob o título "O Teu Rosto Amanhã", abordou a Guerra Civil a partir de um episódio inspirado na denúncia do seu pai, filósofo e discípulo de Ortega y Gasset. Preso como republicano, Julián Marías foi proibido de lecionar na universidade em Espanha por se recusar a assinar os princípios do Movimento. Isso obrigou-o a fazer viagens regulares aos Estados Unidos para dar aulas. Javier Marías passou o seu primeiro ano de vida em Massachusetts, perto do Wellesley College, onde o seu pai era professor. Hospedado na casa do poeta Jorge Guillén, teve como vizinho Vladimir Nabokov, cujos poemas acabaria a traduzir e que retratou no volume "Vidas Escritas", mítica compilação dos perfis publicados na revista Claves, fundada pelo seu amigo Fernando Savater. 

A família voltaria a viver na América quando Javier tinha quatro para cinco anos. Apesar de reconhecer que a experiência de viver num país tão diferente o possa ter influenciado, o escritor tendia a desvalorizar este impacto: "No resto do tempo fui uma criança espanhola como as outras", dizia. Apesar disso, era muitas vezes visto como um "marginal" na literatura espanhola, sobretudo pela maneira livre como usava a língua, a pontuação, a sintaxe. Escritores como J. M. Coetzee, Salman Rushdie ou W. G. Sebald elogiaram a forma como ele contrapunha o humor negro espanhol à grandiloquência inglesa para produzir romances que eram simultaneamente acelerados e meticulosos, especulativos e analíticos, elegantes e clássicos.

Numa entrevista em 2013, Javier Marías recordava como tinha sido difícil a sua aceitação por parte dos críticos e académicos: "Os meus dois primeiros romances não tinham nada que ver com Espanha ou com os espanhóis ou com questões políticas e algumas pessoas começaram a dizer que eu era um escritor inglês. Disseram que o meu espanhol estava cheio de imprecisões sintáticas e é verdade – eu forcei muito a sintaxe na minha escrita, não só por causa do meu conhecimento de inglês mas também porque os idiomas deveriam ser mais resilientes do que alguns académicos permitem que seja. Então, eu tinha esse rótulo de escritor estrangeiro – e era muito depreciativo – mas tive vários rótulos diferentes ao longo da minha longa carreira. Quando finalmente fui aceite como um bom escritor, era considerado muito 'brainy' ou cerebral, muito frio. Noutra altura disseram: ‘Sim, mas ele escreve para mulheres’, como se isso fosse algo mau. E ainda por cima não é verdade, eu tenho todos os tipos de leitores e na verdade toda a gente tem mais leitores do sexo feminino porque as mulheres leem mais do que os homens".

Em 2019, numa entrevista ao Expresso, confessava não ser um autor disciplinado ou obsessivo. “Não desapareço do mundo nem costumo isolar-me.” E dizia: “Talvez eu escreva porque é a escrever que penso melhor. Se estiver aqui em casa a olhar para o tecto penso pior do que se estiver à frente de uma máquina a tentar contar uma história. Isso estimula, digamos, ideias ou reflexões — não quero ser pomposo — que de outra forma não surgiriam. Então, prefiro ter esta atividade, na qual a minha cabeça fica mais ativa, do que não a ter. Prefiro passar pelo mundo a tentar compreendê-lo. Mas não acho que isso possa ajudar alguém. Faço-o apenas para pensar melhor e passar melhor o tempo. E porque, já o disse um dia, na ficção descansa-se”.

Na "Zona Fantasma": polémico e contra a corrente

Submetido a uma dolorosa operação à coluna pouco antes da pandemia, Javier Marías passou os últimos anos confinado entre a sua casa na Plaza de la Villa, em Madrid, e a da sua esposa, Carme López Mercader, em Sant Cugat (Barcelona). Publicou o seu último romance, "Tomás Nevinson", já em 2021.

O seu último livro (crónicas), "Será buena persona el cocinero?"chegou às livrarias espanholas em fevereiro passado. Trata-se de uma compilação das colunas que publicou entre 2019 e 2021 no El País Semanal, onde ocupava a última página desde 2003. "La Zona Fantasma" - era assim que se chamava a coluna de domingo e na qual escrevia sobre todos os assuntos que o preocupavam ou interessavam, sem qualquer agenda premeditada. "Escrevo sobre o que me parece particularmente sério, perigoso, injusto ou estúpido. Obviamente, às vezes estou errado ou posso ir muito contra a corrente", admitia. Nunca se escusou a polémicas, fosse por criticar a Igreja ou os movimentos feministas.

Foi o último colaborador regular do jornal a enviar os seus artigos por fax para a redação. A sua única concessão tecnológica foi enviá-los via Whatsapp depois de fotografar as páginas que saíam da sua querida Olimpia Carrera Deluxe. Tinha decidido que no dia em que a máquina de escrever falhasse terminaria a sua carreira como colunista. O último texto, o número 939, foi publicado domingo. Marías tinha-o deixado escrito em julho para ser publicado depois das habituais férias de agosto. Fumador de cigarrilhas há muito tempo, as complicações associadas a uma pneumonia levaram-no ao hospital no verão. Esteve mais de um mês em coma antes de morrer. Terá sido cremado, sem velório nem cerimónias públicas, tal como era a sua vontade.

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