Nota do editor: se você ou alguém que conhece está a debater-se com pensamentos suicidas ou questões de saúde mental, procure apoio e utilize os contactos no final deste artigo.
“Destransição”. A palavra tem surgido cada vez mais nas redes sociais, com relatos de jovens que decidiram interromper e/ou reverter o seu processo de afirmação de género. O arrependimento tem alimentado os mais críticos, que consideram estes procedimentos “anti natura” e fruto da “ideologia de género”.
Segundo os profissionais de saúde e ativistas que lidam diariamente com a comunidade LGBTQIA+, acompanhando os chamados processos de transição, os casos de arrependimento são muito residuais. E, quando acontecem, estão relacionados com outros quadros no âmbito de uma saúde mental frágil.
Vários estudos internacionais, citados também pelos especialistas portugueses ouvidos nesta investigação, têm apontado neste sentido, indicando que as taxas de arrependimento após as cirurgias de afirmação de género serão inferiores a 2%. E, quando tal acontece, é sobretudo em indivíduos com pouco apoio familiar e dificuldades de integração, que encaram a transição como o passo para resolver outras questões de saúde mental que eventualmente existiam.
É por isso que Marco Gonçalves, o coordenador da consulta de sexologia no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, defende que o acompanhamento da saúde mental destas pessoas deve ser permanente – antes, durante e depois dos procedimentos cirúrgicos, caso haja efetivamente essa vontade, já que nem todas as pessoas trans desejam ir à marquesa.
A maior parte destas pessoas precisaria de um acompanhamento antes de tomar a decisão. Não por terem uma doença mental. Mas para ajudá-las a perceber se a cirurgia vai resolver essa questão. Na disforia de género, a cirurgia está validada cientificamente”.
Mas isso não significa que ela, só por si, seja uma solução mágica para todo um passado de sofrimento. “É um caminho, muitas vezes, de sofrimento, de invalidação. E que acarreta quadros graves de depressão, ansiedade, tentativas de suicídio, que deviam ser contempladas nesse tratamento”, aponta o médico.
Vários estudos internacionais, também citados pelos especialistas, reforçam que a prevalência do suicídio na comunidade trans é elevada, especialmente em fases de descoberta, em que a pessoa não sabe como se assumir perante os outros. São também comuns a automutilação e a ingestão de medicamentos. Daí a importância do apoio familiar e de profissionais de saúde especializados nesta comunidade.
“Ter disforia de género não é uma doença”, sintetiza Marco Gonçalves. Há antes um conflito entre o cérebro e o corpo, que é possível ajudar a resolver. “Da nossa experiência em consulta, raramente há situações em que não se confirma a disforia de género”.
A importância de uma “via verde”
Zélia Figueiredo, psiquiatra, acompanhou mais de 700 jovens trans ao longo dos últimos anos no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto. Depois da reforma, continua a fazê-lo através das redes sociais ou das inúmeras mensagens que lhe chegam ao telemóvel. E há arrependimentos? Só se lembra de um caso. Com o aviso de que o quadro de saúde mental era muito frágil.
Os especialistas têm procurado que haja uma “despatologização” da forma como é encarada a disforia de género, indo ao encontro das mudanças que tem havido na lei, no sentido da autodeterminação. Mas o acesso a profissionais de saúde continua a ser assimétrico, com especial dificuldade para quem vive em meios mais pequenos.
Zélia Figueiredo sugere mesmo que os médicos de família, à partida os mais próximos dos utentes, tenham capacidade para funcionar como uma “via verde”, fazendo a ponte para outros terapeutas durante todo o processo, para que os pacientes não andem “perdidos”. Era o que já devia estar a acontecer, mas muitos médicos de família não fazem sequer ideia de como lidar com pessoas trans, lamenta.
“Imagino o seu sofrimento, agora imagine o do seu filho”
Enquanto médica, Zélia Figueiredo criou a prática de grupos de partilha de experiências no Magalhães Lemos, para jovens trans, mas também para as suas famílias. “O que ajuda mais os pais é falarem uns com os outros. Os que eles ganham nas reuniões é muito mais rico do que ganhavam só a falar comigo”.
Cria-se uma almofada emocional. Para as famílias em que esse processo possa ser mais difícil, em que os pais dizem estar a sofrer com tudo o que se está a passar, a psiquiatra tem uma fórmula simples: “Imagino o seu sofrimento, agora imagine o do seu filho”.
Nesta partilha de experiências entre jovens trans e suas famílias vai-se contribuindo também para o tratamento de eventuais quadros de depressão. Só assim é possível avançar, diz, de forma segura, com o resto do processo, onde a espera é sempre uma barreira que pode deitar tudo a perder.
Quando começam o tratamento, estando muito ansiosas ou isoladas, há uma melhoria de todas essas queixas. Se houver retaguarda, protege-os da depressão e ansiedade. É saber que alguém entende as dificuldades que estão a passar”.
Falta de ligação?
Os psiquiatras lamentam que nem sempre seja possível fazer um acompanhamento das pessoas trans antes, durante e após as cirurgias de afirmação de género. Um doente que seja seguido no Júlio de Matos, ao passar para a fase de cirurgias - na URGUS, o centro de referência a nível nacional, por exemplo – acaba a “saltar” para outro psiquiatra daquela equipa. Há quem sinta que o processo recomeça, que foi feita tábua rasa de todo o trabalho prévio.
“Nós gostávamos de continuar a acompanhar as pessoas que já foram acompanhadas, que estão agora na cirurgia. Mas nós deixamos de as ver. Elas deixam de comparecer na consulta”, lamenta Marco Gonçalves. Para resolver este problema, é tudo uma questão de maior articulação entre os diferentes centros, bem como de reforço de profissionais, aponta.
Até porque a cirurgia nunca é o ponto final de afirmação de género. Em especial se existirem complicações e o resultado ficar longe das expectativas. Muitas destas pessoas a quem isto acontece dizem sentir-se abandonadas, sem apoio, com a sua saúde mental ainda mais frágil do que antes. E mesmo quando tudo corre pelo melhor, há um corpo novo com que é preciso aprender a lidar.
“Muitas vezes precisam de apoio. Aprendi isto com as mulheres trans. Diziam-nos para nunca lhes darmos alta, por causa da cirurgia", conta Zélia Figueiredo. "A intimidade muda. É uma altura sempre difícil”.
Apoio a pessoas LGBTQIA+
Contactos, informações e apoios
Apoio a pessoas LGBTQIA+
Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade.
É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.
Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.
Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.
Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.
Sobre suicídio
Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.
Linhas de apoio
SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660
Telefone da Amizade
16:00 – 23:00
222 080 707
Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159
Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt
Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707
Linha SNS24
808 24 24 24
Emergência Médica
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Perguntas e Respostas
Sociedade Portuguesa de Suicidologia: www.spsuicidologia.com
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