Como se cria um pénis? E uma vagina? Há uma guerra sobre a melhor forma de operar cirurgias de mudança de sexo: e isso gera dúvidas e ansiedades - TVI

Como se cria um pénis? E uma vagina? Há uma guerra sobre a melhor forma de operar cirurgias de mudança de sexo: e isso gera dúvidas e ansiedades

INVESTIGAÇÃO “ESTE É O MEU CORPO” #3/6. Eris foi a primeira pessoa a fazer uma cirurgia de mudança de sexo no Hospital de Santo António, hospital do Porto visto como alternativa a um conflito antigo entre o centro de referência, a URGUS, e o médico que opera no privado, João Décio Ferreira, hoje com 79 anos. Aqui são explicadas, ao detalhe, todas as etapas por que tem de passar quem inicia este processo. Este é o terceiro de seis capítulos da investigação “Este é o Meu Corpo”, focada na comunidade trans em Portugal, nas suas dificuldades no acesso a cirurgias de afirmação de género e nas complicações delas resultantes. Este artigo contém conteúdo explícito que pode ser considerado sensível.

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“Entrei a dizer que fazia o que me pudessem dar. Mas dei a entender que queria começar pelo mais difícil, que era a vaginoplastia. É a operação mais severa para o corpo”. Após sete anos de espera, abriu-se uma porta a Eris Carvalho, hoje com 37 anos, que nem o mais criativo desespero faria antever.

Foi a primeira pessoa a ser submetida a uma cirurgia de redesignação sexual no Hospital de Santo António, no Porto. Dezembro de 2022. “Honestamente, nunca tive grande medo, porque é uma coisa que tinha de ser feita”. Mesmo que tivesse de fazê-lo sozinha, sem o apoio da família, de quem teve de afastar-se para fugir a um contexto de violência.

Muita gente lhe disse para não ser a primeira. E ela não ouviu nenhuma dessas vozes. “Já estava nisto há muito tempo. Se ninguém se chegar à frente, as coisas nunca andam para os restantes”. No dia da cirurgia, havia o burburinho normal de uma estreia. Eris olhou para todos aqueles médicos à sua volta como uma garantia: se algo corresse mal, havia mais mãos para ajudá-la.

Eris foi a primeira pessoa trans a ser operada no Hospital de Santo António, no Porto

Para que a nova vagina cicatrize, mantendo a largura e profundidade desejadas, é necessário utilizar um molde, também conhecido como dilatador. Foi num dos momentos de retirada desse objeto que sugiram complicações. Eris teve uma hemorragia e infeções. Dois meses de internamento. “Faz parte do processo, era um risco que o médico me disse que poderia acontecer. Recebi todo o cuidado que precisava”.

Hoje tenho que manter a higiene ao máximo. E de usar o molde para a cavidade não fechar ou ter outros problemas no futuro. É um bocado surreal ver que está lá, finalmente, algo que pertence. Antes sentia que tinha um bocado de carne extra que não devia estar lá. O que posso dizer é que me sinto normal agora. Sinto-me bem”.

No Santo António, existem pelo menos 25 doentes em lista de espera para estas cirurgias. Antes de ser chamada, Eris não acreditava que pudesse vir a ser operada no Serviço Nacional de Saúde. Os relatos que ouvia sobre o centro de referência, a URGUS - Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual, em Coimbra, não lhe davam a confiança necessária. Chegou a ponderar o privado, onde lhe pediam entre 7 a 15 mil euros. Durante quatro anos, deixou de viver: trabalhava para juntar tudo o que pudesse para este momento.

Hospital de Santo António começou as cirurgias de redesignação sexual em dezembro de 2022

Vários jovens transsexuais ouvidos por esta investigação, mas que optaram por não associar cara ou nome ao seu testemunho, admitem que os relatos sobre as técnicas e o serviço prestado em Coimbra lhes criam muitas dúvidas. Mas esta desconfiança face à URGUS é antiga e tem uma explicação: existem duas formas diferentes de operar em Portugal para concretizar as mudanças de sexo.

Eris até pode ter escolhido para si o nome da deusa grega do caos e da discórdia. Mas é entre as duas escolas que existem em Portugal que há uma divisão aparentemente insanável, que gera dúvidas e ansiedades naqueles que terão de passar por estes processos de transição.

Entrevista com Eris teve lugar no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto.

Breve história das cirurgias de afirmação de género em Portugal

As cirurgias de mudança de sexo estão previstas na lei desde a década de 1980 em Portugal. Mas só em 1995 é que a Ordem dos Médicos deixa de punir os profissionais que as realizassem. Quatro anos depois, o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, começa a fazê-las. Um dos nomes que se destaca neste âmbito é o de João Décio Ferreira que, em 2011, insatisfeito com as condições salariais no SNS, se reforma e passa a operar no privado, no Hospital de Jesus.

Nesse mesmo ano, em novembro, nasce a URGUS - Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual, que passa a ser encarada como a unidade de referência a nível nacional. Um ano relevante também porque coincide com a lei que permite a mudança de nome e género no registo civil – até então, era possível fazer essa disputa em tribunal.

Em 2016, o Hospital de São João no Porto anuncia que também irá fazer estas cirurgias, mas o serviço nunca se tornará permanente. Em 2018, há nova mudança na lei, permitindo a autodeterminação de menores e eliminando a necessidade de dois relatórios médicos para atestar a disforia de género.

A partir de 2021, o Hospital de Santo António, no Porto, começa a preparar-se também para esta realidade com uma equipa multidisciplinar. No final de 2022 dá início às cirurgias, com o cirurgião Abel Mesquita a assumir esta responsabilidade, aprendendo as técnicas de João Décio Ferreira, distintas da URGUS. 

Atualmente, o Hospital de São José está também a preparar-se: “Éstá prevista a integração progressiva das especialidades de urologia, ginecologia, cirurgia maxilo-facial e cirurgia geral, à medida que os profissionais terminem a formação necessária”, confirma fonte oficial.

Cirurgias de mudança de sexo têm alimentado muitas polémicas ao longo dos anos

Que passos são dados até às cirurgias? E que critérios devo cumprir?

Para iniciar o processo de afirmação de género, a pessoa trans precisa de ser referenciada no SNS. Para esse passo, deve contactar o médico de família. Ou, em alternativa, um psicólogo ou psiquiatra, que orientará nesse diagnóstico e nos passos seguintes. As associações que trabalham com a comunidade LGBTQIA+ também podem ajudar nesta fase inicial (pode encontrar contactos de apoio no final deste artigo).

De uma forma simples, depois deste primeiro passo está previsto acompanhamento na área da sexologia clínica, com um psiquiatra ou psicólogo. Há depois um reencaminhamento para a terapia hormonal, acompanhada por um endocrinologista. A última fase será a da cirurgia.

Importa ressalvar que este processo não é linear. Há muitas pessoas trans que não estão interessadas, por exemplo, nas hormonas ou nas cirurgias. Cada um gere o seu caminho, com o apoio dos profissionais de saúde, família ou amigos.

Mas, para quem a afirmação de género passa mesmo pelas cirurgias, nomeadamente genitais, há critérios rigorosos a cumprir: ser maior de idade, a avaliação de dois centros de sexologia, a avaliação da endocrinologia a atestar que não há contraindicação, pelo menos um ano de terapia hormonal, um índice de massa corporal abaixo dos 30kg/m2 e a cessação ou redução do tabaco. 

A CNN Portugal e TVI acompanharam uma das últimas cirurgias do cirurgião João Décio Ferreira

Como se faz uma vagina?

Inspirada nos métodos do centro de Gante, na Bélgica, Coimbra aplica o método de inversão: a pele do pénis desmontado é utilizada para a cavidade vaginal. A URGUS argumenta que, deste modo, não há necessidade de recorrer a outras partes do corpo para realizar esta cirurgia. Os críticos avisam para as dificuldades de lubrificação e para o facto da pele existente, ao ser utilizada no interior da vagina, se tornar insuficiente para construir outras áreas, como os grandes lábios.

João Décio Ferreira e o Santo António usam, por isso, o chamado método de jejuno: retiram uma porção do intestino delgado, entre 15 a 20 centímetros, que usam no revestimento do canal vaginal. Em média, uma vagina terá entre 12 a 14 centímetros de profundidade, com três a quatro de largura.

Importa explicar que os órgãos sexuais masculinos e femininos são mais parecidos do que se pensa. E que, na hora de transformá-los no seu oposto, essas semelhanças não são esquecidas. A glande é utilizada para a criação do clitóris, o prepúcio para os pequenos lábios e o escroto para os grandes lábios.

Nos dois métodos, a vaginoplastia é feita em apenas um momento. É mais demorada, podendo chegar às 12 horas. Inclui a falectomia e a orquiectomia: isto é, a retirada do pénis e dos testículos.

Um dos grandes desafios destas cirurgias está nas ligações vasculares

Como se faz um pénis?

Na URGUS, para a realização de faloplastias é privilegiado o chamado retalho livre. Em particular, o retalho antebraquial radial, levantado na face anterior do antebraço – até porque esta zona tem, tendencialmente, menos pelos. É também possível fazer um retalho, por exemplo, na coxa. É este pedaço de tecido corporal que dará depois forma ao pénis. Coimbra destaca que é realizado num único tempo de cirurgia e os benefícios ao nível da vascularização e da elegância do órgão genital.

Já João Décio Ferreira e o Santo António optam pelo retalho abdominal, destacando que assim se evita tecido com pelo e há aproveitamento da mucosa. E que não há cicatrizes em áreas que estão mais expostas aos olhares de terceiros.

A sensibilidade do pénis para a intimidade sexual é dada pela colocação do clitóris na base do neofalo.

Antes da realização da faloplastia, há passos prévios, como a histerectomia e a vaginectomia [remoção do útero e da vagina, respetivamente] ou a reconstrução da uretra. Depois, poderá ser necessário proceder ao refinamento da glande e à colocação de próteses testiculares e penianas.

João Décio Ferreira explica que, no método seguido pelo cirurgião, de etapa a etapa, poderão estar em causa mais de 10 cirurgias para o processo estar concluído – com um custo que pode ultrapassar os 25 mil euros. NA URGUS, fala-se em apenas dois momentos: a faloplastia e a colocação das próteses, sendo a última opcional. Há muitos homens trans que não o fazem por receio de poderem criar danos na uretra.

Este é o procedimento padrão. Porque depois há as complicações que podem surgir, juntando ainda mais etapas. Problemas de circulação sanguínea, fístulas (falhas nas ligações de canais) ou perdas de uretra são algumas delas.

“Nós temos - e a grande maioria dos centros a nível europeu, que são os centros que eu conheço melhor têm - uma grande percentagem de complicações na reconstrução da uretra, nomeadamente a formação de fístulas ou de estenoses [apertos] ureterais.  A necessidade de rever as faloplastias, sim, é frequente”, confirma Susana Pinheiro, cirurgiã plástica e coordenadora da URGUS.

Ida ao bloco é encarada como a derradeira etapa em muitos processos de transição de género

Coimbra vs Décio. Décio vs Coimbra: a luta que os trans conhecem

João Décio Ferreira tem 79 anos e continua a operar. Até já ouviu críticas de que as mãos lhe tremem. “Já devia ter parado, mas se tivesse a mínima ideia de que a minha condição me fazia correr riscos, não fazia. Ainda estou em condições. E a cabeça também está”.

Há muito que o cirurgião promete que os doentes em espera são os últimos. Mas só agora, com a passagem de testemunho ao Santo António, é que se sente realmente à vontade para dar esse passo. 

Não tinha qualquer confiança em Coimbra, na URGUS. Não estou a dizer isto por acaso. É porque as coisas que vão tendo problemas lá, os doentes depois vêm depois ter comigo. Tenho conhecimento delas ao vivo”. 

João Décio Ferreira, premiado por desenvolver técnicas próprias, dá o exemplo de clítoris e uretras mal posicionados.Já operou mais de 350 pessoas, calcula, por alto. Estas posições de João Décio Ferreira sempre foram encaradas pela URGUS como uma “campanha de desinformação” ou como “mensagens falsas” em proveito próprio, já que, ao rasgar com o SNS, o serviço público acabou por encontrar uma solução que não o integrava. O cirurgião nega esse cenário.

Porque, afinal, neste tema, como há duas escolas, há também duas versões da mesma história. À nossa investigação chegaram também vários relatos de alegados erros cometidos por João Décio Ferreira, às quais este médico responde com a capacidade de dar resposta à essas situações.

“Acredito que haja pessoas que são operadas aqui na URGUS e que não fiquem satisfeitas e que procurem uma segunda opinião. É válido. Mas também já aconteceu o contrário: a URGUS já corrigiu situações do privado”, atesta Susana Pinheiro, cirurgiã plástica e coordenadora do centro em Coimbra.

João Décio Ferreira diz que só voltou a recuperar a confiança no SNS com a passagem das suas técnicas ao Hospital de Santo António

Coimbra limitada: só não faz mais porque não tem mãos 

A URGUS é o centro de referência a nível nacional. Contudo, a equipa que a constitui não está dedicada, em pleno, a este tipo de cirurgias. Há todo um outro conjunto de realidades da cirurgia plástica e reconstrutiva que têm de assegurar no CHUC - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Um cenário que contribui para a sensação dos utentes de que as listas de espera são longas e demoradas.

NA URGUS, as cirurgias são feitas em apenas três dias por mês. Sempre à sexta-feira. Em média, calcula a responsável, serão seis a sete doentes operados por mês. Mas está também nessa escala o número de pedidos de novas consultas que chegam a cada semana. “O número de utentes que nos procuram para consulta, e depois para cirurgia, é muito superior àquilo que nós conseguimos dar resposta em termos cirúrgicos”, confirma.

A pandemia veio dificultar os balanços, mas está a ser possível recuperar o ritmo. Em 2020, foram operadas apenas 13 pessoas. Nos anos seguintes, foram já 54 e 78. A falta de profissionais é apontada como a razão pela qual este serviço não consegue ir mais além. “Tem o seu limite. A partir de determinada altura, nós não conseguimos fazer mais”.

Susana Pinheiro é a atual coordenadora da URGUS, unidade integrada nos hospitais de Coimbra

Complicações? Doentes são informados: “expectativa” é que pode ‘fazer esquecer’ 

Susana Pinheiro, que se disponibilizou para responder a todas as perguntas desta investigação, reconhece a existência de complicações associadas às cirurgias de afirmação de género, que têm gerado cada vez mais queixas junto das associações que trabalham com a comunidade LGBTQIA+. “Elas não acontecem por um ato de negligência. É algo inerente ao ato cirúrgico, está documentado na literatura que poderão acontecer”. O protocolo, diz, é sempre aplicado. Não há experiências. 

Não andamos a experimentar nem a inventar nada em qualquer um dos momentos que nós assistimos. Temos um código de ética e um juramento de Hipócrates que temos de cumprir”.

Sobre as queixas de doentes, que alegam que não são devidamente informados dos riscos que correm, a cirurgiã plástica também tem uma explicação: “o nível de expectativa e a vontade de fazer esta cirurgia é tão grande que, muitas vezes, a mensagem que passa é só da parte positiva. Esta parte negativa não é interiorizada ou entendida completamente”.

A clínica deixa ainda a garantia de que não há nenhum doente a sair da URGUS sem recomendações de como cuidar de si no pós-operatório, sabendo, por exemplo, os cuidados de higiene para a vagina ou que cremes de cicatrização deve utilizar na zona de onde foi retirado o retalho para criar o pénis. Por mais complicações que surjam, diz, nunca sentiu arrependimento em nenhuma das pessoas que operou.

Se surge alguma complicação grave, é normal. Qualquer um de nós, se passar por uma cirurgia e correr mal, pensa ‘por que é fui fazer esta cirurgia?’. Agora, arrependimento de terem feito o processo de transição, não tenho conhecimento”.

O Hospital de Santo António foi também formalmente convidado a participar numa entrevista para esta investigação, mas não mostrou disponibilidade, apenas disponibilizou dados.

Recuperação é um processo lento, de meses, devido às necessidades de cicatrização e de eventuais correções

 

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Contactos, informações e apoios

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade. 

É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.

Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.

Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.

Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.

Sobre suicídio

Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.

Linhas de apoio

SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660

Telefone da Amizade 
16:00 – 23:00
222 080 707

Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159   

Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707   

Linha SNS24
808 24 24 24

Emergência Médica
112

Perguntas e Respostas

Sociedade Portuguesa de Suicidologia: www.spsuicidologia.com

Alguém próximo de mim morreu por suicídio – Leia aqui

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Fiz uma tentativa de suicídio – Leia aqui

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