Ainda não nascemos e já fazem a pergunta: é menino ou menina? O sexo biológico é (e sempre foi) determinante para a sociedade. É ele que dita o nosso género e acaba por definir, aos olhos dos outros, como nos devemos comportar, vestir - ou mesmo como somos tratados. O género tem sempre uma dimensão social.
Masculino ou feminino. Contudo, existe quem não se identifique nesta divisão. Entre o preto e o branco, há sempre cinzentos. No mundo do género, chamam-se não binários. É uma metáfora simples. Porque as camadas, como em tudo na vida, são muitas.
Usemos a história de Dani Bento para explicar. “Sou uma mulher trans não binária”. Dani nasceu com um corpo masculino. Foi-lhe atribuído o género masculino. Mas, como não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença, é transgénero. E não binária, porque não se reconhece nessa divisão tradicional entre masculino e feminino.
Em resumo: há o sexo biológico, assente nos caracteres sexuais. Depois há a identidade de género, que é a vivência individual e interna, com o género com que se identifica, que pode ou não coincidir ou não com o sexo biológico. Quando corresponde, trata-se de uma pessoa cisgénero. Quando não corresponde, fala-se numa pessoa transgénero. Nessa identidade, entra também o sentimento de encaixe (ou não) na divisão e visões tradicionais do que é ser-se homem ou mulher.
E depois há a expressão de género, a maneira pela qual a pessoa se apresenta ao mundo. Pelos pronomes com que o indivíduo gosta de ser tratado, pelos comportamentos, pela roupa, por exemplo. Ou pelo próprio corpo, como é o caso do peito. O género é uma espécie de papel que temos de ‘representar’ perante os outros. Mas nem todos querem estar limitados a um de dois papéis: homem ou mulher?
Ou tudo ou nada? Não binários lamentam barreiras
Há cada vez mais pessoas a afirmarem-se como não binárias em Portugal, sobretudo entre as mais jovens, confirmam as associações que trabalham diretamente com a comunidade LGBTQIA+.
Esse não reconhecimento na dicotomia homem-mulher tem um outro impacto na chamada transição: nem todos querem, nos seus processos de afirmação de género, avançar para a fase das cirurgias. Nem todos querem, como se costuma dizer, “ir até ao fim”. Há quem fique pelo acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, há quem passe também ao tratamento hormonal. Cada um decide.
Contudo, entre os que querem avançar para a última etapa, a das cirurgias, sente-se que ser não binário representa uma barreira. É o caso de Dani Bento, ativista na associação ILGA Portugal e responsável pelo GRIT – Grupo de Reflexão e Intervenção Trans.
Quis fazer uma mamoplastia [cirurgia para colocação de mamas] e foi recusada, porque eu não queria fazer uma vaginoplastia [cirurgia para a construção de uma vagina]. Foi-me dito, inclusive, que iria parecer estranho eu fazer uma mamoplastia e não fazer uma vaginoplastia. E, como tal, a minha autodeterminação sobre o meu próprio corpo foi-me negada. Isso, para mim, é uma coisa muito grave”.
Uma história na primeira pessoa, que é reforçada pelas queixas que vão chegando às associações. “Há quem esconda ser não binário para ter acesso a tratamentos e cirurgias, para não verem o seu processo parar ali”, revela.
Fica a ressalva de que, como não se identificam com os padrões de masculino ou feminino, para as pessoas não binárias, as cirurgias podem não ser determinantes. Mas quando há essa vontade, insistem os ativistas ouvidos por esta investigação, tem de haver respeito pela “autodeterminação” dos seus corpos. E não uma tentativa de “normalização” segundo as regras a que nos habituámos enquanto sociedade.
“Uma pessoa trans pode, em última instância, não querer fazer cirurgia nenhuma. E aí não é ser menos trans, nem nada”, insiste Dani Bento. Cada um decide sobre o seu próprio corpo. Será mesmo assim?
Acusações atingem todo o SNS
“Isso não é verdade. Temos várias pessoas, até mais [no processo de transição] de mulher para homem, que a única cirurgia que querem fazer é a mastectomia [retirada das mamas] e essa vontade é respeitada. Não impomos que o processo seja todo completo, do início ao fim”, reage Susana Pinheiro, cirurgiã plástica e coordenadora da URGUS- Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual. Operar pessoas não binárias, diz, é algo que se tem tornado mais comum.
O centro de referência nacional, localizado em Coimbra, é contudo, alvo de outras queixas. Como as que apresenta Helder Bértolo, presidente da associação Opus Diversidades:
As práticas que estão a ser realizadas em Portugal são ao arrepio daquilo que são as diretrizes internacionais [como as da WPATH – World Professional Association for Transgender Health]. Por exemplo, temos notícia de que estavam a dificultar mamoplastias na URGUS. Apesar de haver cartas, de sexologia e de psiquiatria, que diziam que era imprescindível uma mamoplastia naquelas pessoas. E vinham com a desculpa de que já têm muita gordurinha, com a hormona já têm uma maminha, não precisam”.
Acusações também rejeitadas pela URGUS. Contudo, as críticas estendem-se a todo o SNS. Há relatos de homens trans que tentam marcar uma consulta de ginecologia e não conseguem. Mudaram o nome no registo, mas não realizaram (ou não querem realizar) cirurgia genital. E, tendo um órgão genital dito feminino, precisam desse apoio. O sistema dificulta-lhes o acesso. E há quem só após múltiplas tentativas deixe de ser tratado pelo “nome morto”.
A própria lei, lembra Dani Bento, não reconhece as pessoas não binárias. “A Constituição fala em homem e mulher. É difícil fazer políticas públicas para pessoas não binárias, porque não existem perante a lei”.
Cirurgias de mudança de sexo a perder importância?
As cirurgias já foram mais determinantes. Já foi mais frequente a procura da nossa consulta para fazer a cirurgia. Entretanto, o que eu costumo explicar às famílias é que o mundo mudou. Já não há só o homem e a mulher. Há uma diversidade de identidades que não são conformes ao modelo social”.
A explicação é dada por Marco Gonçalves, coordenador da consulta de sexologia do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, por onde passam muitos destes jovens trans, incluindo não binários. “Essas pessoas decidem procedimentos diferentes do dito processo completo”, diz.
O psiquiatra avisa que todos nós podemos contribuir positivamente neste percurso. Desde já, deixando de julgar uma pessoa trans pelos critérios de masculinidade e feminilidade a que nos habituámos. “‘Estás parecido com um homem, estás parecido com uma mulher. Nem é carne nem peixe’. Isto é altamente ofensivo, agressivo e violento. É transfobia”.
“Há que desmistificar a ideia de que as pessoas trans têm de parecer pessoas cisgénero. Não têm. Têm é de ter o aspeto que lhes seja confortável”, reforça Helder Bértolo.
Entre os pais de jovens LGBTQIA+ há também a consciência de que o futuro será cada vez mais fluído, menos compartimentado. “Não é o nosso órgão sexual que define o nosso género”, simplifica Manuela Ferreira da associação AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. E confirma:
Há muito mais pessoas agora a não quererem avançar com as cirurgias, porque para eles o facto de fazerem a última cirurgia [genital] não é importante. Há muitos jovens que se entendem como não binários. Não era tão importante como era há uns anos”.
Apoio a pessoas LGBTQIA+
Contactos, informações e apoios
Apoio a pessoas LGBTQIA+
Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade.
É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.
Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.
Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.
Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.
Sobre suicídio
Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.
Linhas de apoio
SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660
Telefone da Amizade
16:00 – 23:00
222 080 707
Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159
Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt
Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707
Linha SNS24
808 24 24 24
Emergência Médica
112
Perguntas e Respostas
Sociedade Portuguesa de Suicidologia: www.spsuicidologia.com
Alguém próximo de mim morreu por suicídio – Leia aqui
Estou preocupado/a com alguém - Leia aqui
Fiz uma tentativa de suicídio – Leia aqui
Tenho pensamentos de suicídio – Leia aqui
Tenho pensamentos de suicídio – Leia aqui
Mais contactos e serviços disponíveis aqui