Nota do editor: se você ou alguém que conhece está a debater-se com pensamentos suicidas ou questões de saúde mental, procure apoio e utilize os contactos no final deste artigo.
Diogo Mota, 31 anos, passa os dias no sofá. Estores corridos. O televisor ligado, o comando da consola na mão. É no universo dos videojogos que está o seu escape. Um mundo onde tudo, por mais extremo que pareça, é sempre menos inesperado do que o que lhe aconteceu ao corpo. “O meu corpo depois disto tudo ficou, no mínimo, mutilado”.
“Isto tudo” é como chama à derradeira cirurgia de afirmação de género. Da faloplastia resultaria no corpo o órgão que Diogo sempre sentiu que devia lá ter estado desde nascença: o pénis. Diogo é um homem trans. Mas hoje, mais do que no passado, não consegue olhar-se ao espelho: não se reconhece.
Sinto que fui alvo de várias experiências”.
O telefonema
Diogo Mota é nome fictício, usado por vergonha de tudo o que lhe aconteceu. Recuemos no tempo para perceber como uma cirurgia de mudança de sexo acabou em meses e meses de infeções e numa incapacidade de 85%. E pior, como arrebatou a saúde mental de Diogo: aos 31 anos, com aquilo que esperava ser toda uma nova vida pela frente, Diogo diz que o único caminho que admite para acabar com o sofrimento é o suicídio ou a eutanásia.
Janeiro de 2020. Diogo recebe um telefonema do Hospital de São João, no Porto, a marcar a cirurgia genital. Ele estranhou, porque não era seguido naquela unidade. “Nem sabia que estava numa lista de espera”, conta.
Então como é que o hospital tinha os dados dele? A resposta é simples. Na altura em que mudou de género no cartão de cidadão, eram exigidos relatórios médicos de duas unidades diferentes – uma exigência que caiu em 2018. Diogo dirigiu-se então ao São João, para ter esse segundo relatório. Na altura, questionaram-no se estaria interessado na cirurgia. Ele disse que sim. Seria chamado para uma consulta de cirurgia, muito rápida, conta, em 2017. E, depois, silêncio.
Até ao telefone tocar naquele dia de fevereiro de 2020. “Disseram-me que seria tudo feito de uma vez e que no espaço de cinco dias teria alta. Não fui avisado de qualquer tipo [de risco] de complicação. Fiquei todo contente, era tudo o que queria ouvir”. Porque Diogo já estava há praticamente 10 anos à espera. Fez a mastectomia [remoção das mamas] no privado e uma histerectomia [remoção do útero] noutra unidade pública. Só faltava a etapa final. “A transição só fazia sentido se fosse efetivamente até ao fim”.
A longa cirurgia (e a longa lista de complicações)
No dia marcado, em fevereiro de 2020, Diogo apresentou-se no sétimo piso do São João. Houve sinais de alerta, como um dopler ou uma ressonância com contraste que “foram inconclusivos”, sobre qual seria a melhor perna para retirar o retalho de pele que se transformaria no seu pénis.
Eram 10 anos disto. E, no desespero absoluto, porque não tinha solução, disse que sim. Esperei que tudo corresse bem. Estava mais desesperado do que desconfiado”.
Foram 13 horas de cirurgia mais de 30 no recobro. E uma recuperação em que, “além de tudo o que podia ter corrido mal ter acontecido, ainda aconteceu mais um bocadinho”. Diogo tem tudo documentado, numa linha do tempo que cita quase de cor, e que replicada na íntegra tornaria este texto demasiado longo e explícito. Entradas e saídas atrás de entradas e saídas nas urgências. Durante meses.
Infeções, fístulas (falhas na conexão de canais, neste caso a uretra), necroses (morte de tecidos corporais), perda da uretra, coágulos nas algálias. Estas são algumas das complicações que Diogo refere, mas cujos riscos assegura que nunca lhe foram transmitidos, tal como os cuidados que devia ter no pós-operatório.
Tenho dores intermináveis, tenho internamentos intermináveis. Tudo o que podia ter acontecido de errado, aconteceu. E ninguém sabia lidar com as complicações de uma cirurgia desta dimensão. Cada vez que lá entrava, pior de lá saía. Não só foi negligência como erro médico”.
Alvo de experiência? Ou de falta de experiência?
Os especialistas médicos ouvidos por esta investigação reconhecem que as cirurgias de redesignação sexual, tal como qualquer outra cirurgia, acarretam riscos e potenciais complicações. Formação de coágulos e outras falhas de circulação da corrente sanguínea, necroses, fístulas, estenoses (apertos dos canais, como o vaginal) ou perda da uretra são apontados nesta lista.
Mas uma combinação como a que aconteceu a Diogo surpreende mesmo os mais experientes. Foi ao cirurgião plástico João Décio Ferreira - que fazia estas cirurgias no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e passou a fazê-las depois no privado, no Hospital de Jesus, após se reformar – que Diogo recorreu quando sentiu que no serviço público já não havia nada a fazer para resolver seis meses de complicações sucessivas.
“É inexplicável, quase, uma infeção que demore meses e meses e não se atue no sentido de corrigir a causa. Se não se consegue corrigir qualquer situação complicada que surja, podemos sempre pedir a qualquer outro colega que tenha experiência no assunto ou tenha a ideia de como fazer aquilo. Agora, não podemos é estar à espera que se resolva sozinho. Nesse sentido, sinto que pode haver negligência”, diz o médico.
Diogo sente que foi alvo de uma “experiência”? Será ir longe de mais? “Às vezes pode não ser experiência nenhuma, pode é ser falta de experiência de quem está a fazer, talvez, não sei”, responde o cirurgião.
Para João Décio Ferreira, a quem chegam casos como o de Diogo, “há coisas que não são complicações, são coisas que foram logo mal feitas, situações aberrantes. Tenho conhecimento. Não só conhecimento como documentação”.
Uma sensação que é partilhada pelas associações que trabalham diretamente com a comunidade LGBTQIA+, como a Opus Diversidades, através do ativista Helder Bértolo:
Temos casos de homens trans que estão algaliados há mais de dois anos. Isto não é normal”.
No caso de Diogo, foram precisas três cirurgias no privado para estabilizar a situação. “Para que o meu corpo parasse de apodrecer e de ter infeções recorrentes”, diz Diogo que, ao todo, se submeteu a uma dezena de operações.
Mas o cirurgião plástico já não conseguiu recuperar a ligação da uretra ao neofalo. Hoje Diogo urina sentado, tem a uretra no períneo: uma opção que vários centros internacionais a desenvolver estas cirurgias, dizem os especialistas, já oferecem à partida aos homens trans. Porque a uretra de um corpo que era feminino é mais curta e a sua extensão até ao pénis pode não ser possível.
A perna “desfeita”
Na parte de cima da perna esquerda de Diogo, na coxa, nem mesmo o calção consegue tapar o ‘declive’ na totalidade. Era a perna que usava nas atividades que mais gostava, como tocar bateria, fazer artes marciais, jogar ténis ou conduzir. “O pedaço de carne que me falta na perna é o pedaço de carne que tenho aqui”. A mão aponta para a zona genital.
“Tenho um pedaço de carne cheio de pelo que não serve para rigorosamente nada. É isto que eu tenho. Zero. Não tenho sensibilidade nenhuma. Se puser neste momento isto em cima da mesa e alguém o cortar, eu não sinto”.
Depois de estabilizado, um ano depois de ter começado este processo, Diogo recorreu a uma junta médica, que lhe reconheceu uma incapacidade de 85%. Perdeu a uretra e tem incontinência urinária. Há condicionantes na mobilidade devido ao desnível da perna esquerda, que está também a pressionar a coluna, uma vez que é difícil manter-se sentado direito. Não há qualquer função sexual. Diogo diz viver a morfina para aliviar as dores. E tem stress pós-traumático.
Ainda assim, continua a trabalhar todos os dias, porque quer pagar os custos das cirurgias que fez no privado bem como o processo judicial que está a preparar contra o São João. A pensão de invalidez, de 400 euros, não lhe permitiria honrar esses compromissos.
São João não revela números, garante “apoio” a utentes e não comenta este caso
A CNN Portugal e a TVI contactaram o Hospital de São João. Num primeiro momento, para questionar sobre o número de cirurgias de redesignação sexual realizadas naquela unidade. O início desta atividade tinha sido em 2016, como mostram esta notícia da altura e este registo do próprio hospital.
O São João não indicou o número de cirurgias realizadas. Na resposta, referiu que a URGUS, em Coimbra, é o centro de referência e que o Santo António tinha recentemente adicionado esta valência.
“Mantemos o apoio às e aos utentes que se encontravam a ser tratados, e que pretendem continuar a ser seguidos no CHUSJ, de forma a completar os processos, com confiança e qualidade”, respondeu fonte oficial.
Voltámos depois ao contacto, insistindo no número de cirurgias e apresentando mais de uma dezena de questões sobre as acusações feitas por Diogo Mota. Neste caso, foi apresentado o nome real do doente, o contexto do caso e feita a ressalva de que a sua identidade seria protegida.
“Relativamente ao pedido de dados, não vamos acrescentar mais informação ao que já foi dito antes. Quanto às acusações de negligência, não comentamos publicamente casos particulares, pelo superior interesse dos utentes”, respondeu fonte oficial.
O “sim” mais difícil da vida que ele quer terminar
Não há qualquer pedido de desculpas que me possam fazer que me vá devolver o que me tiraram: a minha vida. Foi o maior erro que eu cometi na minha vida, foi ter dito sim. Não pelo processo de transição. O arrependimento é precisamente pela última cirurgia, a última cirurgia que me ia dar, finalmente, paz e eu poder viver uma vida normal”.
Nos relatórios de internamento, numa fase final da passagem pelo São João, Diogo é descrito como tendo “comportamentos erráticos” e chega a ser sugerida a transferência para o centro de referência nacional, a URGUS.
Diogo rejeita que o seu comportamento tenha contribuído para a existência de complicações. E, admite que, no desespero de passar por tudo isto praticamente sozinho, uma vez que o mundo enfrentava a pandemia de covid-19, chegou a pensar atirar-se de um dos pisos do hospital.
Não o fez. Mas ainda fala, com uma certeza que arrepia, em ser ele a decidir quando termina a sua vida. Diogo espera que o processo judicial contra o hospital esteja fechado. Quer depois passar os bens para a namorada. E tomar a derradeira decisão:
Só preciso de recorrer ao suicídio assistido ou à eutanásia. Não há mais nada que faça sentido. Recuso-me a viver assim. É só isso. Perdi a vontade de viver, a pessoa que eu era, a pessoa que poderia vir a ser”.
Diz estar num “ponto de não retorno”. Mesmo que os cirurgiões admitam que é sempre possível tentar reverter os danos já existentes. “E que garantias é que tenho de que agora vai correr bem?”.
Contactos, informações e apoios
Apoio a pessoas LGBTQIA+
Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade.
É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.
Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.
Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.
Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.
Sobre suicídio
Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.
Linhas de apoio
SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660
Telefone da Amizade
16:00 – 23:00
222 080 707
Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159
Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt
Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707
Linha SNS24
808 24 24 24
Emergência Médica
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Perguntas e Respostas
Sociedade Portuguesa de Suicidologia: www.spsuicidologia.com
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