"A sociedade tem muito a ideia de que os nossos filhos nos pertencem - mas não pertencem": o que diz a lei sobre os alunos de Famalicão em suposto "perigo existencial" - TVI

"A sociedade tem muito a ideia de que os nossos filhos nos pertencem - mas não pertencem": o que diz a lei sobre os alunos de Famalicão em suposto "perigo existencial"

Ministério Público quer que duas crianças de Famalicão fiquem à guarda da escola por terem faltado a aulas de Cidadania. MP alega "perigo existencial" - mas o que é isso?

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O Ministério Público (MP) quer que os dois alunos de Vila Nova de Famalicão proibidos pelos pais de frequentarem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento sejam colocados à guarda da escola “durante o período escolar”. A situação está a gerar muita polémica, questionando-se a legitimidade da autoridade para pedir esta medida. A Justiça foi além das suas competências?

Nas alegações do processo de promoção e proteção dos dois alunos, a que a CNN Portugal teve acesso, o MP no Tribunal de Família e Menores de Famalicão diz que aquela é a única medida “que se apresenta como do superior interesse dos jovens e com potencial a, definitivamente, afastar situação de perigo existencial dos mesmos”.

A advogada Patrícia Baltazar Resende entende que isso não está em causa. Salvaguardando que não pode falar do caso em concreto, por não o conhecer, a jurista lembra que “uma das funções concretas do MP é assegurar os direitos das crianças, muitas vezes utilizando todos os meios que tem ao seu alcance”.

“É o guardião do Estado de Direito daqueles que, à partida, são os mais frágeis na sociedade, como as crianças”, acrescenta, em conversa com a CNN Portugal.

É por isso que, segundo a advogada, não existe um excesso das competências, até porque “o MP tem o dever de assegurar, com todos os meios que tem ao seu dispor, a proteção da criança”.

Patrícia Baltazar Resende sublinha que o que poderá estar em causa é que o MP considerou que os pais não estavam a zelar pela educação dos filhos, algo que é uma obrigação dos progenitores.

“O facto de estas crianças não frequentarem aquela disciplina pode ter tido uma influência tão preponderante que pode afetar as crianças”, indica, colocando-se a hipótese de o bem-estar físico e psicológico das crianças poder estar em causa. “O MP tem de se substituir aos progenitores quando estes não conseguem assegurar o bem-estar.”

O bem-estar físico pode ter sido colocado em causa, por exemplo, pelo facto de os alunos terem sido proibidos de frequentar uma disciplina que, como destaca Patrícia Baltazar Resende, era obrigatória, o que acabou por resultar no chumbo dos alunos, que só foram transitando de ano por decisão do MP, que deu ordens para a não retenção das crianças enquanto o processo não for concluído.

“Este facto, só por si, denota que o superior interesse das crianças já está a ser colocado em causa”, conclui a jurista, voltando a invocar o MP como "o garante sobre isto".

No fundo, em causa estará o primeiro ponto do artigo 3.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovem em Perigo, que esclarece que "a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo".

Pais com responsabilidades (i)limitadas

O juiz António José Fialho, que é magistrado no Tribunal de Família e Menores do Barreiro, afirma à CNN Portugal que este caso vem mostrar que "as responsabilidades parentais não são ilimitadas", ainda que admitindo que é preciso saber qual vai ser o desfecho. O magistrado sublinha que o caso deve ser julgado em particular, percebendo-se aquilo que se passou ao certo.

São os casos do direito à personalidade ou direito à imagem, diz o juiz, que refere que os tribunais devem interferir sempre que exista um exagero.

Patrícia Baltazar Resende concorda e aponta também um problema de sociedade.

"A sociedade tem muito a ideia de que os nossos filhos nos pertencem - mas não pertencem. Eles têm os seus próprios direitos e os próprios deveres", afirma.

Por isso mesmo, diz a advogada, o MP "sobrepõe-se aos progenitores" quando estiverem em causa direitos das crianças.

O “perigo existencial”

Uma das alegações do MP é a existência de um “perigo existencial” para as crianças, que, segundo Patrícia Baltazar Resende, está tipificado na lei, sendo algo “menos gravoso” que o risco, que “é uma situação de emergência total”.

“Uma coisa é o perigo iminente e outra coisa é o risco”, refere, apontando que “o perigo é algo que o MP considera que não vai sustentar o superior interesse da criança, algo em concreto da criança que acontece e não protege o superior interesse da criança”.

Sobre esta questão António José Fialho lembra que a questão dos perigos está em constante mutação. "Os perigos de hoje não são os mesmos de há 30 anos", diz, lembrando, por exemplo, os perigos existentes nas redes sociais e que entende ser da responsabilidade dos pais gerir a situação.

O MP fundamenta a "situação de perigo em que os referidos jovens se encontram" com nove pontos, entre os quais destaca que os pais "põem em perigo a sua formação [das crianças], educação e desenvolvimento"; que os jovens possam sofrer de "maus-tratos psíquicos; de os jovens "não receberem os cuidados ou afeição adequados às suas idades e situação pessoal; de os jovens "estarem sujeitos a comportamentos dos pais que afetam gravemente o seu equilíbrio emocional".

Três interesses - crianças, pais e ordem pública

Neste caso existem três partes com diferentes interesses: as crianças, os pais e a ordem pública, indica António José Fialho. O juiz aponta que é a lei que estabelece os critérios primários nesta relação, vincando que a criança terá sempre prioridade de direito em relação às outras partes, sendo que "isso não tem de passar necessariamente pelo interesse da criança".

Patrícia Baltazar Resende concorda, lembrando que deve existir uma primazia do direito da criança, até porque se trata de dois jovens com 14 e 16 anos, pelo que "frequentar uma disciplina é algo do interesse do jovem".

"Quando isso acontece o tribunal considera que estes jovens devem ser ouvidos", acrescenta.

Para os dois especialistas é crucial "ouvir os intervenientes principais: as crianças".

Tribunal adiou decisão

O Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão adiou esta terça-feira a audição das testemunhas no processo de promoção e proteção dos dois alunos.

Para o advogado da família, João Pacheco de Amorim, este adiamento prova que o tribunal considerará que “não há perigo iminente” para os menores.

Ainda não há nova data marcada para a realização da audiência, mas o advogado admitiu que poderá acontecer “lá para setembro ou outubro”.

O caso diz respeito ao ano letivo de 2018/19, que terminou há três anos.

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