A maior fábrica de iPhones do mundo está em tumulto e muitos telefones não vão chegar a tempo do Natal - TVI

A maior fábrica de iPhones do mundo está em tumulto e muitos telefones não vão chegar a tempo do Natal

  • Filipe Santos Costa
  • 26 nov 2022, 18:00
Foxconn (Associated Press)

Foxconn está a fazer tudo para salvar a produção em Zhengzhou, e até o Partido Comunista Chinês está a ajudar. Mas as restrições da covid e a revolta dos operários põem em causa o fornecimento global de iPhones

Relacionados

Se está a planear comprar um dos novos iPhone 14 como prenda deste Natal, corra já para a loja, ou deixe a prenda lá para o Carnaval ou a Páscoa. Com sorte, pode ser que se safe pelo dia de reis. É garantido que a marca norte-americana não terá capacidade de responder à procura mundial - e nem é por a procura ser assim tão grande neste Natal, é mesmo porque a produção está muito aquém do que estava planeado. 

No centro do problema, que está a dar enormes dores de cabeça à Apple, está a principal fábrica de iPhones na China, em Zhengzhou, no centro do país, operada pelo gigante taiwanês Foxconn. A causa? O habitual, quando falamos de China nos últimos tempos: as restrições impostas pela política de covid zero, ditada pelo líder chinês Xi Jinping.

Em meados de outubro foi detetado um surto de covid nas unidades de produção da Foxconn em Zhengzhou, onde estão concentrados cerca de 200 mil trabalhadores. Depois, mais surtos. O número de casos não era alarmante, mas a política de covid zero impõe, nestes casos, o isolamento da fábrica e dos trabalhadores. Foi assim que os milhares de operários da Foxconn se viram fechados nas fábricas, onde tinham de dormir e trabalhar, numa operação “em bolha”. 

Era a forma de o fabricante assegurar que a produção não parava, e das autoridades garantirem que dali não saía um surto que atingisse toda a cidade, que é a capital da província industrial de Henan (ou Honã). Em rigor, não conseguiram nem uma coisa nem outra: os trabalhadores, revoltados com a falta de condições, começaram a manifestar-se e até a fugir da fábrica, aos milhares, perturbando a produção. E Zhengzhou acabou por tornar-se mesmo um dos muitos focos da atual vaga de covid, que esta semana se tornou a vaga mais grave a atingir a China desde o início da pandemia.

“Tempos de espera mais longos”... e entregas em janeiro

A revolta dos trabalhadores da Foxconn de Zhengzhou vai afetar a oferta da Apple neste Natal. A marca norte-americana já reconheceu que os problemas relacionados com a política chinesa anti-covid vão provocar uma quebra na produção do iPhone 14, o seu modelo mais recente, lançado em setembro, e o mais procurado na época alta de compras do Natal. 

Em muitos casos, encomendas que deviam chegar a tempo das festas só serão entregues no ano que vem. No caso da China continental, que é o maior mercado de smartphones do mundo e o principal comprador de iPhones, o tempo de espera das encomendas dos modelos iPhone 14 Pro e Pro Max feitas agora está entre cinco e seis semanas - segundo o jornal South China Morning Post, é uma semana a mais do que as encomendas feitas no início de Novembro, e duas semanas mais do que as encomendas feitas no final de Outubro.

As entregas de encomendas que deveriam chegar a tempo do Natal já estão adiadas para janeiro, por volta do dia de reis. E os especialistas do mercado asseguram que tudo vai descarrilar ainda mais devido à degradação da situação ao longo deste mês.

A própria Apple assumiu, há duas semanas, que as unidades de produção de Zhengzhou estão a funcionar a uma capacidade "significativamente" inferior ao previsto, e que as restrições relacionadas com a covid estão a afetar a montagem do iPhone 14 Pro e Pro Max premium. "Os clientes experimentarão tempos de espera mais longos para receber os produtos", avisou a marca norte-americana. 

É nas fábricas da Foxconn que é montada a grande maioria dos modelos iPhone 14 Pro e Pro Max - e as unidades de Zhengzhou são as mais importantes na produção de ambos. A Foxconn é um gigante tecnológico com sede em Taiwan, mas boa parte da sua produção está localizada na China, embora também tenha fábricas noutros países, como a Índia. Este é o maior fabricante mundial de iPhones, responsável pela montagem de cerca de 70% destes telemóveis. 

No mês passado, a agência Reuters noticiou que, de acordo com fontes internas da empresa, a queda de produção na unidade de Zhengzhou durante o mês de novembro poderia ser na ordem dos 30%. 

20 mil despediram-se esta semana

"Estamos a trabalhar em estreita colaboração com o nosso fornecedor para regressar aos níveis normais de produção, assegurando simultaneamente a saúde e a segurança de cada trabalhador", garantiu a empresa liderada por Tim Cook.

A segunda parte da garantia parece longe de estar a ser cumprida, tendo em conta o que se sabe sobre as condições de trabalho, e de vida, para quem está impedido de sair das fábricas há várias semanas. Há informações, sem confirmação oficial, de que cerca de 20 mil trabalhadores estariam infectados com covid-19 - ou seja, 10% da população trabalhadora. A “bolha” e as deficientes condições de isolamento e de assistência médica aos funcionários infetados estará a ter como resultado níveis muito altos de novas infeções, e essa terá sido uma das razões por que, no início deste mês, milhares de operários decidiram forçar as portas, galgar muros e cercas, e fugir da fábrica. 

As imagens que então chegaram às redes sociais mostravam ruas cheias de gente com sacos às costas, a pedir boleia ou sem saber bem para onde ir, enquanto outros funcionários e agentes da autoridade os tentavam voltar a levar para a fábrica e o centro de quarentena. 

Para além de deixarem de produzir, os trabalhadores em fuga colocavam o risco de propagarem covid fora da fábrica. Um pesadelo tanto para os patrões como para as autoridades.

Quanto à primeira parte da frase do comunicado da Apple, sobre a Foxconn estar a fazer tudo para retomar os níveis de produção, não há dúvidas sobre isso. A primeira tentativa de estabilizar a situação foi o lockdown da fábrica, e essa não correu bem - até resultou na perda de alguns milhares de trabalhadores, embora não existam números oficiais sobre essa sangria. 

Entretanto, a Foxconn fez uma grande campanha para atrair novos trabalhadores e assegurar que os que já lá estão não batiam com a porta. No início deste mês, a administração da FoxConn prometeu quadruplicar os bónus dos funcionários que se mantivessem em funções. E prometeu também bónus específicos para os novos trabalhadores que fossem contratados.

Alguns milhares aceitaram a proposta, mas esta semana receberam a informação de que, afinal, os bónus que deviam receber agora, por altura do fim do mês, não seriam pagos. Essa foi a gota de água que provocou os protestos e os confrontos violentos desta semana.

Acossada pelas imagens dos manifestantes nas ruas com paus e bastões, a derrubar barreiras e a exigir pagamento e melhores condições de trabalho, e em confronto direto com agentes da autoridade, a administração da Foxconn tentou cortar o mal pela raiz livrando-se dos novos trabalhadores, considerados os principais agitadores deste protesto - por um lado, a empresa reconheceu que as suas reivindicações de bónus eram legítimas, e que estes seriam pagos (tudo não teria passado de um erro informático); por outro, propôs pagar um prémio aos novos funcionários que se quisessem ir embora: o equivalente a 1.400 euros para que esses supostos “agitadores” saíssem de imediato da fábrica. Segundo dados divulgados esta sexta-feira pela agência Reuters, cerca de 20 mil funcionários terão aceitado a proposta.

Com este negócio, a Foxconn terá afastado os trabalhadores que supostamente estiveram na origem dos confrontos desta semana, mas também perdeu vinte mil pares de braços - e isto é um problema, numa altura em que as suas linhas de produção em Zhengzhou precisam de um reforço de dezenas de milhares de trabalhadores.

Apesar disso, uma fonte da empresa citada pela Reuters disse que "os incidentes [de quarta-feira] tiveram um grande impacto na nossa imagem pública, mas afetaram pouco na nossa capacidade [de produção]. A nossa capacidade actual não é afectada", disse essa fonte, não identificada. "Não há assim tanta coisa que as empresas possam fazer na prevenção de pandemias... Já há algum tempo que é um problema, e é um problema enfrentado por todos".

Contudo, outra fonte conhecedora da situação diz que a Foxconn dificilmente conseguirá atingir os seus objetivos, pois os novos operários tinham sido  contratados para colmatar as lacunas na força de trabalho. "Estávamos a tentar ver se os novos funcionários podiam entrar na linha de produção até ao final de novembro. Mas, com a agitação, é certo que não podemos retomar a produção normal até ao final do mês".

Procuram-se: 100 mil trabalhadores

Não se sabe com quantos trabalhadores a fábrica de Zhengzhou está a funcionar, mas há uma semana um jornal económico chinês adiantou que a empresa precisa de contratar a curto prazo mais cem mil trabalhadores, se quer estabilizar a produção de iPhones. 

No esforço para reforçar a capacidade de resposta da Foxconn, responsáveis locais do Partido Comunista Chinês (PCC) assumiram a tarefa de ajudar na angariação de mão de obra, tanto na cidade de Zhengzhou como noutros locais da província de Henan. E as autoridades provinciais também se envolveram, apelando a que soldados na reserva do Exército Popular de Libertação (EPL) e trabalhadores do Estado se voluntariem para reforçar as fileiras da Foxconn. 

É impossível passar despercebida a ironia: o PCC e o os militares do EPL - respetivamente o núcleo político e militar do regime chinês - a darem tudo por tudo para ajudarem uma fábrica de Taiwan a produzir telemóveis de uma marca dos Estados Unidos da América.

Este esforço, porém, foi atrapalhado pela falta de espaço na gigantesca fábrica de Zhengzhou para acolher tantos mais trabalhadores quando tem, em simultâneo, uma parte considerável das suas instalações ocupada com centros de quarentena onde são isolados os trabalhadores infectados com covid-19. Um problema que obrigou os recrutadores de mão de obra a interromper esse trabalho esta semana.

Mais produção na Índia

Outra medida adotada pela Foxconn para tentar amortecer o impacto das medidas relacionadas com a covid foi desconcentrar a produção do iPhone 14. Embora Zhengzhou seja o principal local de montagem destes modelos, logo em setembro, quando o iPhone 14 foi apresentado, a Apple assumiu que, pela primeira vez, ia produzir um novo modelo também em fábricas da Índia. Desde 2017 que a Apple produz iPhones na Índia, mas apenas modelos mais antigos - nunca um modelo acabado de ser lançado arrancou com produção na China e na Índia. Uma novidade que tem a ver com as constantes perturbações sofridas pelas fábricas chinesas.

Mesmo na China, a Foxconn está a dividir a produção por diversas fábricas, em diferentes regiões, para tentar diminuir o risco associado a lockdowns. O smartphone da Apple também está a ser fabricado pela Foxconn nas regiões de Shenzhen e Jiangsu. Apesar disso, a província de Henan, onde fica a fábrica de Zhangzhou, continua a ser o fulcro da operação. 

As ações da Foxconn deslizaram 2% desde que a agitação surgiu no final de Outubro. Daniel Ives, analista da Wedbush Securities, estima que estas dificuldades possam custar à Apple cerca de mil milhões de dólares por semana em vendas de iPhone perdidas. No quarto trimestre do ano passado, as vendas de iPhone valeram à Apple quase 6 mil milhões de dólares por semana.

Em outubro, saíram da província de Henan 8,4 milhões de smartphones, menos 1,7 milhões do que no mês anterior. Uma quebra de 16,9% no momento do ano em que a procura é maior. Ao invés, as exportações de smartphones da província de Jiangsu, onde estão localizadas outras fábricas de Foxconn, cresceram 31% em comparação com setembro.

O auge de mais de um mês de caos

Este não é o primeiro Natal em que a produção da Foxconn é afetada pela pandemia de covid-19, mas com todo o mundo a retomar a normalidade, a marca norte-americana esperava que também a China voltasse à normalidade. Mas Xi Jinping tem ideias diferentes sobre como lidar com a pandemia que surgiu no seu país e que já deixou de ser notícia em todo o mundo… menos na China.

Como se não bastassem dificuldades associadas à escassez de algumas matérias-primas e componentes, ainda por causa da perturbação global das cadeias de abastecimento; como se não bastassem as interrupções de produção no verão por causa da vaga de calor e da seca que atingiu largas regiões de China, obrigando a suspender a atividades de centenas de fábricas; a insistência das autoridades chinesas na política de covid zero vem afundar ainda mais as perspectivas de um ano já repleto de sobressaltos.

Há várias semanas que o gigantesco complexo industrial da Foxconn na cidade chinesa de Zhengzhou tem sido palco de tumultos, com fuga de trabalhadores, manifestações de revolta, e repetidas convocações de polícias e militares para por ordem na fábrica. Mas os conflitos desta semana produziram cenas inéditas de Zhengzhou.

Na quarta-feira, a Kuaishou, uma plataforma chinesa de vídeos curtos mostrou em direto homens armados com paus a esmagar câmaras de vigilância e a destruir janelas no campus onde a Foxconn fabrica os smartphones da Apple. Segundo a Reuters, centenas de trabalhadores abandonaram os postos de trabalho para protestar, cantando "dêem-nos o nosso salário" e entoando outras palavras de ordem contra as más condições de trabalho e o incumprimento de promessas feitas pela administração da fábrica.

"A Foxconn nunca trata os humanos como seres humanos", disse uma das pessoas que aparecem nos vídeos. Outros manifestantes explicaram no livestream que tinham decidido protestar depois de serem informados que irão receber os seus bónus mais tarde do que fora inicialmente prometido.

Depois de semanas de “caos”, por causa das regras draconianas impostas aos trabalhadores por causa dos surtos de covid, centenas de trabalhadores escaparam ao isolamento forçado dentro da fábrica, o que obrigou a Foxconn a prometer diversos incentivos aos operários. Foi o pagamento desses bónus que, pelas informações mais recentes, terá sido adiado, provocando a fúria dos trabalhadores.

As imagens transmitidas em direto mostravam os manifestantes derrubando barreiras e enfrentando agentes da autoridade - destes, uns usavam o equipamento branco de proteção individual que se tornou comum durante a pandemia, e outros vestiam fatos de polícia de intervenção, alguns equipados com bastões, que não hesitaram em usar. 

Pouco tempo depois de as imagens terem começado a ser divulgadas em direto, acabaram por ser retiradas das plataformas, cumprindo a estrita política de censura imposta pelo governo chinês, que exerce um controlo férreo sobre tudo o que é publicado nas redes sociais. 

Quaisquer palavras direta ou indiretamente relacionadas com os incidentes de Zhengzhou estão banidas das redes sociais chinesas há várias semanas, e tudo indica que esse controlo se apertou ainda mais depois dos incidentes de quarta-feira. Apesar disso, num autêntico jogo do gato e do rato, continuaram a ser partilhados vídeos dos confrontos. Um deles, com milhões de visualizações no Ocidente, foi filmado à noite, o que indicia que os protestos se prolongaram por muitas horas, apesar da repressão policial - nessas imagens vê-se uma multidão de manifestantes, armados com o que parecem ser paus ou barras de ferro, a cercar várias dezenas de agentes da autoridade, que recuam enquanto se defendem com escudos anti-motim.

Uma reportagem da CNN Internacional ouviu uma testemunha, segundo a qual os confrontos entre manifestantes e autoridades provocaram “um rio de sangue”.

Apple mandou equipa para Zhengzhou

Nesta sexta-feira a Apple falou pela primeira vez desde os incidentes desta semana. "Temos membros da equipa da Apple no terreno nas instalações do nosso fornecedor Foxconn em Zhengzhou", disse o gigante tecnológico californiano, numa declaração por escrito. "Estamos a rever a situação e a trabalhar em estreita colaboração com a Foxconn para assegurar que as preocupações dos seus empregados são abordadas". Mas o comunicado nada disse sobre o impacto de mais de um mês de tumultos nas remessas do seu produto mais vendido na China e em todo o mundo.

Continue a ler esta notícia

Relacionados