"É o chegar à Lua do século XXI". A descoberta de energia através de fusão nuclear é muito mais que ciência - é também uma corrida na nova Guerra Fria - TVI

"É o chegar à Lua do século XXI". A descoberta de energia através de fusão nuclear é muito mais que ciência - é também uma corrida na nova Guerra Fria

Xi Jinping e Joe Biden, Cimeira de Bali (AP Photo/Alex Brandon)

Anúncio de uma "conquista histórica" por parte do governo dos Estados Unidos também foi uma manobra de marketing político. Mas tudo pode vir a mudar na economia e na forma como os norte-americanos vão voltar a tentar ser os líderes do mundo

Relacionados

Foi anunciado como um “grande avanço” na procura de uma energia limpa e que pode ser revolucionária na luta contra as alterações climáticas e na transição energética que o mundo tem de acelerar para atingir o objetivo da neutralidade carbónica em 2050. Mas o ganho de energia através da fusão nuclear por confinamento inercial vai muito para além da ciência, entrando num campo onde também se joga muita política.

Nuno Gouveia não tem dúvidas: num contexto de uma nova Guerra Fria em que os Estados Unidos lideram o Ocidente contra a China e a Rússia, o especialista em Relações Internacionais garante à CNN Portugal que os norte-americanos “querem mostrar aos parceiros estratégicos e aos adversários que estão na vanguarda”, desta vez na luta por uma tecnologia que pretende imitar a geração de energia no sol.

“Este é o chegar à Lua do século XXI, conseguir chegar à transição energética”, afirma, lembrando uma luta titânica entre os Estados Unidos e a União Soviética na exploração do Espaço. Começou por ser colocado um homem em órbita, para depois Neil Armstrong dar o “pequeno passo para o Homem” que foi “um grande passo para a Humanidade”. A busca pela hegemonia, que teve os seus pontos altos entre 1957 e 1975, também incluiu fortes corridas ao armamento, com cada país a fazer testes e anúncios cada vez mais temíveis, sempre numa lógica dissuasora do oponente.

Conhecedor de ambas as realidades (da ciência e dos Estados Unidos), Mark Nelson garante à CNN Portugal que o anúncio feito pelo governo norte-americano foi muito baseado em marketing político: "Nunca me conheceu e nunca tinha falado comigo até ao anúncio da fusão nuclear", ironiza o diretor de consultoria em energia do Radiant Energy Group, que tem um mestrado em Energia Nuclear pela Universidade de Cambridge, e que se confessa cauteloso quanto ao verdadeiro significado desta descoberta para a ciência. Para o norte-americano, os oponentes dos Estados Unidos sabem que, para já, isto não tem um significado prático. Mas o mesmo pode não se aplicar a quem não esteja por dentro do assunto.

"Claro que os russos e os chineses vão perceber imediatamente que não vamos ter uma central de fusão nuclear em breve. Eles também têm os seus cientistas e percebem que isto também é para as manchetes dos jornais", observa, admitindo que o mesmo pode não acontecer com o povo. "Se as pessoas da China ou da Rússia virem a América a dar passos no sentido da fusão nuclear podem existir ramificações políticas."

Luís Guimarãis concorda que poderá ser algo similar a um anúncio da ida à Lua aquilo a que estamos a assistir. O doutorado em Fusão Nuclear refere à CNN Portugal que o anúncio do Departamento de Energia dos Estados Unidos não é o mesmo que dizer que vão colocar um homem na Lua, mas é dizerem que o vão conseguir fazer em breve. Continuando a comparação, é como o anúncio de John F. Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, de querer “pousar um homem na Lua e devolvê-lo em segurança à Terra”.

“Em termos científicos estamos ainda muito longe. O que o Departamento de Energia diz é que os Estados Unidos são a terra das possibilidades, que se alguém faz avanços são os Estados Unidos. Basicamente, são eles a dizerem que são o número 1 no mundo”, explica o físico.

No fundo, parte do anúncio também surge como uma espécie de marketing político. É que, ainda antes da oficialização, todos os jornais de referência dos Estados Unidos tiveram a mesma informação: que estava para chegar um grande anúncio do Departamento de Energia. A isso Nuno Gouveia chama “criar expectativa”, aumentando logo o peso do anúncio da informação ainda antes de a mesma ser oficial.

“É evidente que quando os Estados Unidos anunciam alguma coisa deste género envolvem sempre tudo num pacote como se fosse algo único e que mais ninguém tem”, acrescenta.

De facto, não é totalmente assim. Luís Guimarãis recorda que, em fevereiro deste ano, o consórcio Europeu de Fusão fez um anúncio no Reino Unido acerca de novos resultados obtidos no JET, a maior máquina do mundo de confinamento magnético. Só que não foi tão sinalizado pela comunidade internacional. Estes resultados dão confiança para o projeto ITER, que pretende ser a derradeira máquina de investigação em fusão por confinamento magnético, antes de um protótipo comercial. “Houve um anúncio de fusão nuclear importante na Europa em fevereiro, mas foi pouco mais do que uma apresentação de dados melhores que os anunciados em 1996. No entanto, os resultados foram obtidos em condições mais adversas, mas muito mais próximas daquilo que será um reator comercial. Os resultados são fascinantes, mas o problema é que o público em geral facilmente poderá pensar que desde 1996 pouco se fez”, refere. No fundo, o que distingue a descoberta norte-americana é a dimensão da energia criada e a forma como isso foi conseguido.

Uma vantagem competitiva (e o inshoring)

Além da dimensão política existe uma outra claramente importante: o papel dos Estados Unidos na economia mundial e uma tentativa de segurar, de forma indiscutível, a liderança, quando a China ameaça alcançar esse lugar mais tarde ou mais cedo.

“O que transparece deste anúncio é que os Estados Unidos pretendem utilizar a descoberta como uma vantagem competitiva numa altura em que tanto se discute a transição para energias limpas”, sublinha Nuno Gouveia, que fala mesmo numa “encenação” quando se refere ao anúncio e às notícias que o antecederam.

É aqui que entra o conceito de inshoring, uma definição que passa por localizar a produção em território doméstico. Luís Guimarãis recorda parte considerável da produção industrial dos Estados Unidos está localizada em países estrangeiros. Esta descoberta poderá vir a mudar isso. É que muitos cidadãos europeus e de outros países podem sentir uma atração pelo mercado de trabalho norte-americano na área da energia, nomeadamente na investigação nuclear.

“Os Estados Unidos pensam: ‘temos os recursos, energia, capacidade… vamos utilizar os cérebros do mundo'”, diz o físico, que não está a trabalhar na sua área de formação, mas que admite que pensaria numa eventual ida para os Estados Unidos para trabalhar neste tipo de projetos caso estivesse noutra fase da sua vida.

Segundo Mark Nelson, houve algo que mudou o paradigma: o aumento do custo das energias renováveis, indústrias cujo investimento também é avultado, em grande parte porque muitas empresas não estão a conseguir os lucros que desejavam. O norte-americano explica que os Estados Unidos nunca abandonaram uma estratégia energética baseada no nuclear, pelo que isso significa uma vantagem competitiva para o país. E existe ainda outro problema: "Está a ficar claro que não importa quantas infraestruturas construímos de energia solar ou eólica, porque continuamos a precisar de gasodutos e outros equipamentos para a rede energética", acrescenta o especialista, referindo que isso significa um custo mais avultado, além de haver um grande caráter de sazonalidade nas energias renováveis.

"Com a eliminação dessas alternativas as pessoas estão a olhar para outras soluções. As centrais nucleares que operam na Europa podem ter muitos lucros", sublinha o defensor da instalação de centrais nucleares de fissão para minimização dos custos energéticos.

Mark Nelson defende, assim, a instalação de uma rede energética baseada em centrais nucleares, afirmando que a Europa fica para trás ao não fazer esta aposta. "O governo [norte-americano] beneficia muito em ter uma operação nuclear. É uma das razões para a América estar melhor, em termos financeiros, do que Portugal, por exemplo." O norte-americano dá mesmo o seu exemplo: vive em Chicago, no Estado do Illinois, "onde os preços da energia estão estáveis ou mesmo a descer", ao contrário do resto do mundo, onde sobem desde a invasão russa da Ucrânia.

É que a produção de um modelo que possa ser viável para comercialização da fusão nuclear implica anos e anos de investigação que terá por detrás milhares e milhares de milhões de dólares do governo norte-americano, mas também dos privados. Só o Ato de Redução da Inflação lançado por Joe Biden prevê um investimento de 370 mil milhões de dólares (um pouco menos em euros) para subsidiar investigações que encontrem formas de produzir energia sem produção de dióxido de carbono. Isso significa investir em material, mas também em capital humano, nomeadamente em cientistas que sejam formados noutros países e que queiram trabalhar na área.

"Existe um grande interesse privado, existe investimento público e estamos a trabalhar. Agora que ficámos mais perto, o setor privado também está muito investido. O presidente [Joe Biden] tem o objetivo de ter um reator comercial em dez anos. Numa década podemos chegar lá, claro que temos um objetivo de ter neutralidade carbónica em 2050. Agora os cientistas podem trabalhar neste tipo de solução", disse a secretária da Energia, Jennifer Granholm.

Tudo porque a guerra na Ucrânia e o consequente escalar dos preços da energia mudou o paradigma: hoje os Estados Unidos têm um dos setores energéticos mais baratos, em grande parte porque as reservas de gás natural fazem com que aquele país tenha uma situação energética muito melhor que grande parte do resto do mundo, altamente dependente dos combustíveis fósseis que chegavam da Rússia.

“A energia está cara em todo o Ocidente, exceto nos Estados Unidos. Agora estão a trazer a indústria que tinham nos outros países, porque lhes fica mais barato e é politicamente popular”, destaca Luís Guimarãis.

Independência é a palavra certa: Nuno Gouveia lembra que se falou muito na necessidade de importação de energia, algo que os Estados Unidos não têm tanto como outros países. “Eles conseguiram essa independência e hoje têm essa capacidade, ainda que de energias não limpas”, diz o especialista.

“Este anúncio pode vir a permitir a tal independência energética em energias limpas. Os Estados Unidos poderão transformar-se num país energeticamente independente com recurso a energias limpas”, conclui.

Para já, diz Mark Nelson, é importante perceber qual o verdadeiro ganho energético que pode surgir desta descoberta. "O número de grandes passos necessários desde este passo até uma central nuclear é gigante, e não sabemos se algum dia lá chegaremos. A resposta só chegará daqui a dez anos, ou mais."

Continue a ler esta notícia

Relacionados